Os felinos fazem parte da nossa história. Uma relação de medo e fascínio com estes bichos que, grandes ou pequenos, têm uma elegância e um charme que nós admiramos há milénios.
A bióloga evolutiva Anjali Goswami do Museu de História Natural de Londres diz que os felinos são o cúmulo da perfeição evolutiva. O que para os amantes de gatos, e existem muitos casos de paixão aguda, é só a ciência a confirmar o óbvio.
A suprema arte evolutiva dos felinos reside, pasme-se, na sua simplicidade. Calma, não estou a dizer que os gatos são criaturas básicas. Nada disso, os gatos são o bicho mais misteriosamente contraditório, conseguem ser distantes e carinhosos, preguiçosos e indomáveis, sedutores e exasperantes, e nós morremos de amor pelo seu temperamento independente e atitudes desconcertantes.
Eles são perfeitos porque, enormes ou pequenos, são incrivelmente similares e extremamente especializados. A sua falta de variação faz deles animais incríveis porque encontraram a fórmula perfeita, não precisam de diversidade para serem bem-sucedidos. Alcançaram um design que nunca falha.
Estima-se que mais de 600 milhões de gatos vivam entre humanos. Não sei quantas casas portuguesas têm gatos, mas sei que são muitas. Mas quando, como e porque é que começou esta convivência?
Ao contrário de outros animais domésticos, a origem da nossa história com os gatos não tem sido a mais fácil de desvendar. Tem lógica, porque haveria de ser fácil se o bicho é tão enigmático e sofisticado? Tinha de se fazer difícil, claro.
Quando pensamos na domesticação dos gatos talvez logo nos venha à memória o Antigo Egipto. Lá chegarei. Contudo, a história começa muito antes, e para a desvendar entra em cena a arqueologia e, claro, a genética.
Durante muitos anos, a ciência indicava que toda a variedade de gatos descenderia de uma espécie de gato selvagem – Felis silvestris –, mas qual, exatamente? Para tentar resolver esta questão foi analisado o ADN de cerca de mil gatos selvagens e domésticos. O estudo indicou a existência de cinco grandes grupos entre os gatos selvagens, mas também indicou que os domésticos se agrupavam só com um desses, o F. silvestres lybica, isto é, o gato selvagem das regiões do Médio Oriente.
Está então a história da domesticação do gato ligada a uma região que encerra a história de muitas domesticações, desde plantas a outros bem conhecidos animais domésticos, como as cabras e as ovelhas.
Mas aqui começa a outra parte desta história fascinante, onde entra a arqueologia. É que, ao contrário de cabras, ovelhas, porcos ou vacas, ou até mesmo os cães, os gatos pouco ou nada contribuem para a nossa sobrevivência. Então como e porque é que se aproximaram de nós e porque é que nós os acolhemos? E já agora, há quanto tempo é que isso aconteceu?
Parece que há pelo menos cerca de 10 000 anos. É o que indica uma descoberta de um enterramento humano acompanhado de um gato na ilha de Chipre, com 9 500 anos. Em Shillourokambos, arqueólogos do Museu de História Natural de Paris escavaram os restos de um esqueleto humano acompanhado de artefactos, conchas e um pedaço de ocre, que tinha a cerca de 40 centímetros de distância os restos de um gato.
Estes achados provam uma evidente proximidade intencional entre os humanos e os gatos. Ora estes últimos, já sabemos, não são nativos desta ilha, e lá teriam chegado de barco vindos de outras partes, provavelmente do Crescente Fértil, já como nossa companhia.
E lá voltamos à mesma pergunta, porque é que eram uma companhia tão próxima? E de tal forma chegada que, uns poucos milhares de anos depois, já eram criaturas sagradas e adoradas no Antigo Egipto?
Ao contrário da maioria dos animais que foram domesticados na Pré-História, os gatos não vivem em grupos, nem têm hierarquias sociais: são livres e solitários. Caçadores exímios e protetores dos seus territórios. Não são características de bons candidatos à domesticação.
Se pensar no seu gatinho, ele gosta muito da sua companhia, mas é só quando quer, certo? Até passa bem sem si, desde que nutrido, durante longos períodos. E por muito caseira que seja a sua gata, haja uma janela aberta, ou uma varanda, e grandes possibilidades há de ela caçar um pobre passarinho.
Por outro lado, se lhe consegue dar ordens, é uma excepção à regra, porque os gatos, regra geral, marimbam-se para as ordens dos donos.
Pois é, nós não os escolhemos por nos serem úteis, foram eles que nos escolheram a nós. E fizeram-no lá para os lados do Crescente Fértil há cerca de 10 mil anos. A razão é talvez simples: os ratos. Os novos povoados Neolíticos, que aqui surgiram quando nos tornamos agricultores e pastores, eram muito apetecíveis para ratinhos que se deliciavam com restos de comidas e com os silos de cereais que existiam nestes aglomerados. Claro está que não há Jerry sem Tom e estes ratos, os Mus Muculus domesticus, lá atraíram os gatos.
Além de ratos para caçar, havia restos de comida, portanto os gatos selvagens que melhor se adaptaram a esta novo modo de vida tornaram-se improváveis companhias dos humanos. Não imediatamente no sentido de animais de companhia domésticos ou privilegiados, como viriam a ser no Antigo Egipto. Mas a eficácia em despachar ratos indesejáveis, o seu apelo natural resultante da sua fisiognomonia elegante e o seu ar adorável quando pequeninos, naturalmente terão despertado o carinho dos humanos.
Tanto assim foi que, há cerca de 3 600 anos, no grandioso período do Império Novo do antigo Egipto, as imagens de gatos, sobretudo pinturas, são cada vez mais abundantes, provando que eram não só companhia comum, mas também que os egípcios os criavam propositadamente. Mas tornaram-se mais do que isso. Passados uns séculos, foram promovidos a divindades na forma da deusa Bastet, sendo sacrificados, mumificados e enterrados em lugares sagrados dedicados a esta Deusa protetiva e da fertilidade. Em Bubastis, o seu principal local de culto, foram encontradas milhares de múmias e estatuetas de gatos.
Os gatos foram adorados durante séculos no antigo Egipto e foi mesmo proibida a sua exportação para fora dos domínios do império. Já se sabe que as proibições nunca são totalmente eficazes e o Império Egípcio não era fechado ao comércio no Mediterrâneo e, a bordo de navios, onde eram úteis a caçar ratos, lá terão chegado a Roma. Aqui, já sabemos, estava para nascer outro grande império territorial, cujos soldados terão levado os gatos por essa Europa fora.
Nós e os gatos em Épocas Históricas é outra conversa, de amor e ódio – bem o podem dizer os gatos pretos. Mas fica para outra oportunidade.
Biografia do autora: Sara Cura é arqueóloga e investigadora em Pré-História com trabalho desenvolvido em Museologia, Património Cultural e Gestão do Território. Lecionou Arqueologia no Instituto Politécnico de Tomar (2003 –2019) e trabalhou no Museu de Arte Pré-Histórica de Mação (2003-2020). Integrou e integra projetos de investigação internacionais e é autora/co-autora de publicações científicas. Como comunicadora de ciência desenvolve o Podcast Let’s Rock -um podcast da Idade da Pedra e é cronista de Ciência e História no jornal mediotejo.net. Atualmente é Gestora de Ciência na Escola Superior de Comunicação Social/ Instituto Politécnico de Lisboa.
Source: Human Bridges
Este artigo foi produzido pela mediotejo.net (https://mediotejo.net/era-uma-vez-o-gato/) e o autor colabora com a Human Bridges.