Olhar sobre o deboche, arma da ultra direita

Enquanto outras formas de humor convidam a questionar o poder, a chacota zomba dos fracos, testa os limites da violência “aceitável” contra eles e constroi identidades coletivas brutais. Por isso, é tão importante encontrar antídotos

Redacao
Por Redacao
11 Min Read

por Gabriel Bayarri em Outras Palavras – Eram 14h em um subúrbio do Rio de Janeiro, em outubro de 2022. Um vira-lata, magro, sem dono, pedia comida na manifestação em apoio a Bolsonaro. Um manifestante gritou: “Cuidado com esse cachorro: se Lula ganhar, teremos que chamá-lo de picanha!”. Ao redor, dezenas de pessoas começaram a rir alto, e enriqueceram a piada: “Se Lula ganhar, ele será o primeiro a comê-lo!” gritou um homem vestido de amarelo. “Teremos que tomar cuidado ao comprar um cachorro-quente!”, disse um jovem com uma camiseta de seu líder. Nesse momento, Bolsonaro apareceu no palco. Milhares de bandeiras do Brasil, verdes e amarelas, se levantaram ao grito de “Mito, mito, mito!”, esquecendo o cachorro de rua.

Em outra parte da América Latina, na periferia de Buenos Aires, um seguidor de Milei dizia durante sua campanha em setembro de 2023: “Milei é bom, é um homem que gosta de cães”. “Seus cães fazem parte do seu pensamento”, dizia outro rapaz que havia participado da marcha com sua bicicleta do Uber Eats. “Mas os kirchneristas comem gatos, em breve estaremos comendo cachorros se essa máfia continuar governando!”, exclamou, mais assustado, um homem de meia-idade. “Corremos o risco de ser como a Venezuela, um país risível, um país comunista!”, apontou entre risos e indignação uma mulher idosa.

Essas piadas assustadoras viajaram pelo mundo. Viveram transmutacões e adaptações, até chegar em 2024 ao momento em que Donald Trump afirmou, em um debate presidencial contra Kamala Harris, que os haitianos residentes nos EUA “estão comendo os cães”. A risada de Harris foi sua primeira reação, pois encontrou no discurso do oponente o absurdo retórico que só poderia ser compreendido como chacota. Logo depois, ela mudou de expressão, tentando levar Trump para um terreno mais “sério”.

Neste artigo, analiso o papel que o humor – em especial, sua descaída patife, o deboche — desempenha nos processos de polarização e radicalização política das extremas direitas, especificamente as latino-americanas. Bukele, Milei, Bolsonaro, Kast… não se conectam apenas por seu militarismo, por seu componente autoritário, por seus discursos violentos, pela defesa de várias vertentes de um capitalismo ou pela apropriação do aparato estatal. Eles também o fazem pelo uso do deboche, como influenciadores políticos diretos, e como pontos em torno dos quais seus seguidores constroem relatos humorísticos, principalmente nas redes sociais.

O “sério” vs o “humorístico”

A codificação do discuro a partir das chaves de “seriedade” ou “humor” estrutura-se a partir da suposta dicotomia entre modelos de comunicação opostos. Se o “sério” nos leva a compreender a comunicação de forma direta, de sentido literal, sem interpretação, o humor seria um código comunicativo caracterizado pela interpretação ambígua dos significados, e pela flexibilidade de conceder ou não credibilidade ao conteúdo das informações transmitidas. Elementos humorísticos também podem produzir, com base em sua interpretação múltipla, desinformação e conteúdo falso.

Talvez esse último elemento seja o que melhor representa o perigo que o deboche pode exercer no terreno político. Indicar que as pessoas estão ou estarão em breve comendo cachorros pode ser interpretado de diversas maneiras: ao serem perguntados sobre essa questão, alguns manifestantes no Brasil garantiam, com medo (apesar das risadas anteriores), que não queriam comer cachorros nem qualquer outro animal doméstico; outras pessoas dissecavam o humor, separando o elemento fictício, e indicavam que se tratava apenas de uma zombaria para rir do adversário político. De qualquer uma das interpretações, concluía-se que o humor agia como um potente antidepressivo, construindo amplamente identidades coletivas e normalizando uma violência muito concreta: que a esquerda não teria aquilo que Cardoso de Oliveira chamava de uma “substância moral digna”, e seria um espaço político que não mereceria ser considerado “humano”, pois quebraria o tabu social de se alimentar de animais de estimação e seres com os quais se estabeleceu um vínculo afetivo.

A normalização da violência

A normalização da violência por meio do deboche tem sido uma técnica eficaz utilizada, às vezes de forma planejada, outras vezes espontânea, pelas chamadas extremas direitas. Tanto os espaços orgânicos desses partidos políticos, quanto as bases militantes (por meio de memes e outras expressões humorísticas em espaços digitais) encontraram no humor uma forma de introduzir na agenda pública e política uma série de temas que, através de códigos “sérios”, não teriam encontrado o espaço ou a oportunidade necessária. Zombar de pessoas que passam fome e estariam dispostas a fazer qualquer coisa para comer, propor a pena de morte por meio de imagens e piadas de guilhotinas com figuras públicas, ridicularizar as violações contra mulheres ou a violência física e psicológica contra a população sem-teto, LGTBIQ+ ou racializada, sempre é mais fácil através do humor.

Esses códigos comunicativos, geralmente considerados pela literatura acadêmica como “códigos suaves”, são, na verdade, a ponta de uma lança contra os direitos humanos: por meio dessas piadas, pode-se fazer a primeira exposição e penetração das ideias mais violentas que podemos ouvir ou ver. Trata-se de um mecanismo de controle social, que investiga novas formas mais arriscadas e violentas de consenso sobre o que é “aceitável”. Isso ocorre porque o humor sempre permite um passo atrás. Se essa violência velada for acusada por alguém, por exemplo, de racismo ou machismo, o transmissor da mensagem humorística poderá sempre se refugiar na ideia de que “é só uma piada”. Ao dizer isso, ele estaria, de um lado, tentando evitar qualquer tipo de responsabilidade moral sobre a mensagem transmitida, enquanto diria à outra pessoa que “não entendeu a piada, que não tem senso de humor”. Não ter senso de humor seria um pequeno estigma, caracterizado pela incapacidade de interpretar as mensagens de forma descontraída, e, com isso, um apontamento à pessoa como carente de habilidades sociais recreativas para compartilhar esses códigos.

A verdade é que, por meio dessas mensagens debochadas, está sendo fortalecida uma série de discursos, metáforas e quadros cognitivos que, posteriormente, uma vez comprovada sua aceitação ou rejeição social, podem ser usados explicitamente na construção da agenda política. Ou seja, a violência velada do deboche ocorre primeiro, para depois ser construída uma violência explícita e direta. O humor, assim, torna-se um potente elemento na transição entre discursos ainda não aceitos socialmente e aqueles que já são, um espaço de liminaridade em que influenciadores, políticos e/ou simpatizantes, haters e trolls testam suas habilidades como criadores e difusores de mensagens de ódio.

Particularidades latino-americanas e o contexto colonial

Partir da premissa de que o deboche colabora na normalização de várias violências implícitas nos leva a entender esse código como algo legível apenas a partir de sua perspectiva cultural. No caso latino-americano, a condição pós-colonial se torna central para entender as particularidades do uso do humor no contexto da polarização política. Normalizar, por meio de piadas, a ideia de que “um bom bandido é um bandido morto” (Brasil de Bolsonaro), de que um presidente pode ser também “um ditador legal” (El Salvador de Bukele) ou de que “a venda de órgãos é apenas um tipo de mercado” (Argentina de Milei) só pode ser entendido através da compreensão de uma violência histórica caracterizada pela desigualdade, pelo racismo e pelo autoritarismo.

A militarização da esfera pública, relacionada a essa lógica colonial, também tem um efeito humorístico capitalizado pelas extremas direitas: fortalecer a categorização amigo-inimigo, distorcendo as características do “inimigo”, animalizando-o, desumanizando-o e transformando-o em um ser que pode ser fisicamente e/ou socialmente exterminado. Frequentemente, piadas e memes atravessam essa dicotomia de opostos, utilizando figuras que representam autoridade e hiper-masculinidade: policiais, militares ou heróis de Marvel e DC esmagando os oponentes, transformados em animais, como ratos ou baratas, algo que, para muitas pessoas, é “divertido”. Esse foi um dos elementos centrais da propaganda fascista e nazista do século XX, exportado e latinoamericanizado em ditaduras como a de Pinochet ou Videla.

O deboche é, portanto, um código que deve ser analisado e estudado com cautela, especialmente em um contexto de fragilidade democrática, onde os símbolos podem esconder ataques a setores da população e suas instituições. O contexto latino-americano atual, caracterizado por amplos movimentos reacionários, é o terreno perfeito para que o humor se torne um elemento-chave na radicalização política, na construção de uma agenda cultural e identitária própria e nas demandas desestabilizadoras das instituições públicas e democráticas. A internacionalização da cultura debicgada está em andamento na extrema direita latino-americana, tornando urgente estudar formas de regulação e educação sobre o uso desses códigos “suaves”, que desempenham um papel central nos processos de radicalização política.

Gabriel Bayarri

Gabriel Bayarri é espanhol, doutorando em antropologia e escritor. Cursa seu doutorado pela Universidade Complutense de Madri e pela Universidade Macquarie de Sydney. Durante o período 2015-2018 foi conselheiro eleito pelo partido Si Se Puede!, integrante do movimento Podemos na Espanha.

Compartilhe esta notícia