Carla Habif, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
“Estou voltando para casa, mas gostaria de não estar. Meus filhos se foram, e estamos todos devastados. Nenhum dos meus familiares restou; todos se tornaram mártires na Cidade de Gaza. Para quem eu volto? Não tenho casa nem ninguém”.
Esse foi o relato de Saadiya AbdulAl para a CNN, enquanto voltava para o norte de Gaza em uma carroça puxada por um burro carregando seus pertences.
Foram 467 dias de incursões violentas por parte do exército israelense na Faixa de Gaza após o 7 de Outubro de 2023. Passados 15 meses de ataques aéreos e terrestres, no último dia 16 de Janeiro foi enfim anunciado um acordo de cessar-fogo, iniciado no dia 19 do mesmo mês.
O acordo mediado pelos Estados Unidos durante o governo do ex-presidente Joe Biden, pelo Egito e pelo Catar foi dividido em três fases. A primeira, já em vigor, prevê um cessar-fogo completo, o retorno de 33 reféns israelenses mantidos em cativeiro pelo Hamas e a libertação de cerca de 1900 prisioneiros palestinos detidos por Israel.
Ainda durante esta primeira fase, está prevista a retirada das forças israelenses das áreas povoadas, o direito de retorno dos milhares de palestinos que foram deslocados à força ao longo da atual escalada de violência e a garantia de permissão de entrada de ajuda humanitária em grande escala no território. As fases seguintes, ainda em negociação, prevêem passos mais complexos, como um cessar-fogo permanente, retorno de todos os reféns israelenses e retirada completa do exército de Israel da Faixa de Gaza.
A terceira fase prevê, ainda, a reconstrução de Gaza. Reconstrução essa que pode e deve levar dezenas de anos pela frente.
Geralmente, quando estudamos História as guerras são um tópico de muito interesse. Curiosamente, os livros trazem páginas e páginas sobre as trocas violentas, batalhas específicas, estratégias e, enfim, como os confrontos chegam ao fim. Usualmente, há a adição de alguns parágrafos que falam do pós-guerra.
Eles costumam ser parágrafos generalistas, que mencionam o número de mortos, o impacto social dele e a crise econômica que se seguiu, bem como os acordos assinados entre as partes. Não estamos acostumados a entender o longo processo do pós-guerra. O luto, os traumas, as doenças, a fome que se segue. Os rostos de cada uma das pessoas por trás dos números mencionados nos livros. A assinatura de um cessar-fogo é, quase sempre, o início de uma longa trajetória, repleta de dificuldades e sofrimento. Também repleta de resistência e resiliência.
O acordo anunciado no dia 16 de Janeiro contém muitos pontos problemáticos e sensíveis, o que mantém o cessar-fogo em um lugar de bastante tensão. Ainda assim, ele é melhor do que nenhum acordo. Isso porque a cada dia de confronto armado pessoas estão perdendo suas vidas, perdendo seus parentes, perdendo suas casas.
Algumas dessas pessoas encontraram um alívio durante a última semana. Até o momento, 7 mulheres israelenses até então mantidas reféns pelo Hamas retornaram a Israel e se reuniram com as suas famílias. 300 prisioneiros palestinos também foram libertados e puderam voltar aos seus lares. E no início desta semana palestinos residentes de Gaza que foram forçosamente deslocados do norte da região durante as investidas violentas receberam autorização para voltar para suas residências. Embora isso possa significar sinal de alívio para muitas dessas pessoas, é impossível não considerar o vazio dessa permissão. Para quais casas eles vão voltar?
Estima-se que cerca de 70% dos edifícios de Gaza tenham sido destruídos ao longo destes últimos 15 meses. Além de casas, estes edifícios eram escolas, hospitais e centros comerciais. O que quer dizer que os residentes estão iniciando o retorno, mas provavelmente não terão onde morar e não há qualquer infraestrutura nesse momento para apoiá-los em um processo de reconstrução.
O suporte até então tem vindo por parte de frotas de ajuda humanitária que, até o momento, têm entrado na região desde o dia 19 de Janeiro conforme previsto pelo acordo. A questão é que com uma população de cerca de 2.3 milhões de pessoas na Faixa de Gaza, quase todas afetadas diretamente ao longo dos mais de 450 dias de confronto, esta ajuda humanitária ainda não é suficiente – e está longe de ser.
Além de uma precariedade muito grande de alimentos, itens de higiene e roupas, a ajuda humanitária é composta de coisas básicas, para a sobrevivência dos civis. Faltam alimentos que sejam suficientes em valores nutricionais, como vegetais por exemplo. Não podemos nos esquecer que estamos falando de uma população que inclui crianças e centenas de pessoas acometidas por questões de saúde, agravadas ainda mais pelo conflito. Os caminhões de ajuda humanitária ainda enfrentam outros desafios, como a qualidade das estradas, estando muitas, inclusive, destruídas e a falta de combustível para deslocamentos mais longos.
Um outro ponto essencial que merece atenção em relação a entrada de ajuda humanitária na região é o fato de que o governo de Israel anunciou na última terça-feira, dia 28/01, que encerrará qualquer contato com a UNRWA, a agência da ONU para os refugiados palestinos. De acordo com a declaração do representante israelense na ONU, Danny Danon, a agência tem até dia 30 de Janeiro para cessar suas atividades no país.
Não se sabe ainda o que isso vai significar para a Faixa de Gaza. As preocupações são referentes a UNRWA ser responsável por grande parte do transporte e distribuição da ajuda humanitária no território e por ser um órgão que atua lá há muitos anos e tem a confiança de boa parte da população. Como sabemos, os caminhões levando ajuda humanitária precisam passar pelo território israelense para chegar em Gaza, o que pode ser impedido a partir do dia 30.
O fato de que milhares de pessoas não têm casas para voltar, estrutura básica para viver e a falta de itens necessários, como comida e roupas, é um contexto agravado pelas questões talvez ainda mais complexas: o luto, o trauma, o medo.
Muitas dessas pessoas que receberam direito de retorno para o lugar onde viviam quando a escalada de violência começou estão retornando sem algum ou qualquer um dos seus parentes. Ao longo dos últimos 15 meses, cerca de 50 mil palestinos foram assassinados, estimando-se que a maioria dessas pessoas tenham sido mulheres e crianças. De acordo com o UNICEF, ainda em Novembro de 2024 o número de crianças assassinadas desde Outubro de 2023 já era de 13 mil.
Não há dúvidas de que existir um acordo de cessar-fogo é uma boa notícia. De que palestinos possam voltar para as localidades de onde foram forçosamente deslocados, de que reféns israelenses estejam voltando para suas famílias e de que haja um fim nessa violência desenfreada que testemunhamos nos últimos 15 meses. Mas é importante manter a consciência de que a situação é ainda muito delicada e complexa. Os civis sobreviventes em Gaza ainda terão que enfrentar inseguranças relativas ao cessar-fogo tenso e delicado, luto, trauma, falta de moradia, ausência de hospitais, escolas, doenças e possível situação de fome.
O caminho a ser pavimentado a partir daqui é extremamente difícil. Todos os direitos humanos foram violados nesse contexto desde o 7 de Outubro de 2023. Todos. O direito à vida, à liberdade, à segurança. As leis de proteção de civis em zonas de conflito previstas pelo Direito Internacional Humanitário foram deixadas de lado, bem como a Convenção sobre o Direito das Crianças.
O mais drástico é que o mundo viu tudo isso acontecer. Os últimos 15 meses foram a demonstração de como o mundo pode testemunhar a violação profunda de direitos humanos de forma passiva. Organizações não governamentais, agências de governos específicas e setores das sociedades civis se mobilizaram para apoiar e intervir de alguma forma, mas a maior parte da sociedade internacional testemunhou sem tomar qualquer tipo de ação.
E, diferente de muitos dos contextos violentos que ocorreram no passado, esse tem sido altamente documentado e compartilhado em tempo real. Não faltaram vídeos, fotos e relatos de quem estava diretamente sendo violentado. E enquanto pessoas, dentre eles milhares de crianças, tinham seus direitos completamente violados, boa parte do mundo ficou presa em discussões narrativas que contrapunham civis dos dois lados do conflito, no embate pela validação de um sofrimento sobre o outro, como se isso fosse de alguma forma justificar a dor causada a um dos grupos. No meio dessa disputa – e como parte dela – sobre qual dor era mais válida ou maior, coisas graves aconteceram. Dentre elas, inclusive, a eleição de políticos que fortalecem o descaso com os direitos humanos de diversos grupos de pessoas.
Em meio à destruição em massa da estrutura local, da falta de recursos humanos e materiais, das incertezas sobre o que vai se desenrolar, do luto e do trauma, a sociedade de Gaza ainda tem um longo caminho desafiador com esse marco do cessar-fogo. Mas não é só Gaza que precisa ser reconstruída. A sociedade internacional, testemunha de todas as violações possíveis no âmbito de direitos humanos ao longo desses 467 dias, também tem toda uma moral e concepção de perspectivas coletivas e sociais a serem reconstruídas. Em ambos os casos, serão precisos recursos, mão de obra, comprometimento, criatividade e resiliência.
Carla Habif, Doutora em Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)
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