Análise: Brasil tem a chance de liderar coalizão por comércio justo, financiamento sustentável e nova governança multipolar

Os Estados Unidos transformaram as tarifas alfandegárias em instrumento de pressão política e chantagem estratégica.
Imagem: Danielo/Shutterstock
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Armando Alvares Garcia Júnior, UNIR – Universidad Internacional de La Rioja

O que antes se anunciava como uma disputa comercial, hoje é uma guerra aberta contra o próprio sistema que sustentou a ordem global nos últimos setenta anos. Os Estados Unidos transformaram as tarifas alfandegárias em instrumento de pressão política e chantagem estratégica.

O governo Trump elevou suas tarifas sobre produtos chineses para até 145%, justificando-se com o argumento da crise do fentanil, mas na verdade operando em uma lógica de desestabilização geral. As consequências dessa política não recaem apenas sobre a China. O mundo inteiro já sente os abalos da ruptura.

As declarações do próprio presidente norte-americano não deixam margem para dúvidas. Admitiu publicamente que as tarifas “não sairão de graça”, que haverá “custos de transição inevitáveis”, e que os “efeitos colaterais” sobre a economia americana são reais.

Enquanto isso, Wall Street mergulha em sucessivos colapsos, ignorando as promessas de pausa de 90 dias nas tarifas para alguns países. Os investidores já não confiam nos gestos simbólicos do governo dos EUA. Os dados do mercado falam mais alto: Nasdaq, Dow Jones, S&P 500 — todos em queda livre, mesmo diante de indicadores positivos como o controle da inflação. A desconfiança tomou conta do centro financeiro do capitalismo.

Europa oscila entre dependência dos EUA e cooperação com a China

A Europa, pressionada entre sua dependência tecnológica dos EUA e sua crescente cooperação com a China, oscila. Espanha, Itália e Alemanha pressionam por pragmatismo comercial, enquanto Bruxelas responde de maneira desigual, ora retalhando, ora recuando. A União Europeia chega ao ponto de suspender suas contramedidas diante da ofensiva tarifária norte-americana, ao mesmo tempo em que Pequim se aproxima de chanceleres europeus, de esta vez com mais força, para negociar um pacto de eliminação de tarifas sobre veículos elétricos.

No vácuo dessa desorientação, países como Marrocos começam a ocupar espaços inesperados. A perda de competitividade da Espanha nas exportações de azeite para os EUA é simbólica: com tarifas de 20%, cede espaço a Rabat, que, com tarifas de apenas 10% (o mínimo global aplicado pelos EUA na segunda era Turmp), conquistará novas fatias de mercado. A geoeconomia não perdoa.

Nesse novo cenário de blocos comerciais esgarçados, o Brasil tem mais a perder com a paralisia do que com o engajamento. A retórica do “equilíbrio entre potências” já não basta. O mundo não está mais dividido entre modelos ideológicos clássicos, mas entre quem formula regras e quem apenas reage a elas. Permanecer no segundo grupo é assinar a rendição estratégica.

Novo arranjo comercial global

A guerra tarifária colocou em movimento um novo arranjo global, em que a previsibilidade comercial, a segurança energética e a autonomia regulatória se tornaram os principais ativos nacionais.

O Brasil tem meios para ocupar uma posição de liderança. Possui peso regional, canais abertos com China, EUA e União Europeia, assento nos BRICS e uma capacidade produtiva rara entre os países em desenvolvimento. Mas isso não bastará se o país continuar operando como fornecedor de matéria-prima em um sistema internacional que exige voz própria na formulação de normas.

A nova batalha será regulatória, e não aduaneira. Ela se travará na definição dos padrões técnicos, das novas plataformas digitais, da segurança de dados, da regulação da inteligência artificial e da arquitetura monetária do século XXI.

Reações chinesas

A China, embora afetada diretamente pela guerra de tarifas, reagiu sem perder o foco. Além de anunciar novas contramedidas, que afetam os produtos americanos entre 84% e 125%, convocou a Índia a formar uma frente comum e reafirmou sua disposição para uma “abertura de alto nivel” com novos parceiros. A lógica indica que o BRICS Plus ganhará peso neste cenário. A ofensiva diplomática chinesa é clara: sinalizar estabilidade enquanto Washington implode sua própria credibilidade.

Em meio a tudo isso, Trump recusa se responsabilizar pelos efeitos de sua política. “Não vi as quedas de Wall Street, estive trabalhando”, afirmou com frieza, no mesmo dia em que o Dow Jones despencava mais de mil pontos. A negação do colapso não o impedirá de ocorrer.

O Brasil não deve repetir a paralisia estratégica da Europa, nem se contentar com um papel secundário diante de uma Ásia em reconfiguração, impulsionada pela liderança crescente da China e, em breve, também da Índia — potências que disputam protagonismo regional e global e que, ao lado do Brasil e da Rússia, fundaram o BRICS.

Papel ambicioso do Brasil

Diante desse cenário, o país precisa articular uma agenda própria, ancorada em objetivos estratégicos claros e posicionamento assertivo. Caso contrário, corre o risco de ser arrastado pelas dinâmicas impostas por outros atores e de ver seu papel reduzido no novo arranjo global em formação.

O Brasil deve assumir sua própria ambição estratégica. Isso significa liderar uma coalizão pelo comércio justo, pelo financiamento sustentável, pela construção de uma governança multipolar que não reproduza a lógica de dominação do século passado. Significa também investir pesado em infraestrutura logística, em autonomia energética e em soberania tecnológica. A multipolaridade não é um conceito; é uma batalha em curso — e o Brasil não pode entrar nela desarmado.

Os tempos que virão não serão de estabilidade. Serão tempos de disputa, de reconfiguração abrupta e de instabilidade permanente. Nesse contexto, a neutralidade passiva será confundida com irrelevância. O Brasil, se quiser ser ouvido, terá que falar alto — e com coerência.

Armando Alvares Garcia Júnior, PDI. Derecho Internacional Público y Relaciones Internacionales, UNIR – Universidad Internacional de La Rioja

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

Redacao

Equipe de jornalistas do Jornal DC - Diário Carioca

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