Não somente me recordo como se tivesse sido ontem, como também sou capaz de sentir a brisa no meu rosto, como se hoje fosse.
Era o final de uma noite de outono. Daqueles outonos cariocas que anunciam o inverno de sua maneira, de uma maneira carioca, onde tardes de muito calor, às vezes tórridos, são silenciados por noites que aliviam, entrecortadas por ventos que acalmam e temperam.
Mas isso foi em 1991. Lembro bem. Sei que foi em junho porque naquele momento estava assistindo ao O Sorriso do Lagarto, na Globo. Passava bem tarde. Bem depois da novela das 8, que na época começava antes das 9. Bem, na verdade, sei que começou em junho porque recorri ao Google.
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Além do vento, havia muito mais naquela noite agradável e refrescante de outono, tinha a vista das árvores balançando, pra lá e pra cá, entre um vento e outro, as folhas sendo levantadas ao longo da rua (Acapurana, a primeira rua da minha vida), tinha o silêncio, eu via as pessoas que passavam ou pela minha rua ou pela “rua Principal” (Menta, a grande artéria de Gardênia Azul), e que dava pra ver lá do portão do “terreno”, como era chamada a vila onde morava, onde havia várias outras casas.
E tudo se devia a um fato essencial: eu estava ali não para desfrutar a noite em si, mas porque esperava ansioso pelo retorno de minha Mãe, que sempre voltava tarde para casa. Depois do trabalho (Banco Bradesco),ela ainda conseguia tempo para correr atrás dos estudos – ela fazia supletivo, num curso noturno na Taquara.
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E disso tudo me lembro. E sempre lembrei, mesmo passadas mais de três décadas.
Essa recordação sempre funcionou comigo como aquela típica lembrança de tempos imemoriais de nosso passado íntimo, que não precisavam conter eventos marcantes ou acontecimentos capitais, mas que tinham o condão de despertar na gente uma sensação gostosa, como um abracinho que nos acalenta. Memória boa, que para nos fazer bem, não precisa de muita explicação. E talvez por isso sempre nos acompanhe.
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O que mudou é que hoje sou capaz de entender a razão dessa memória sempre estar viva comigo. Na verdade, me arrisco a tentar explicar.
Pois o cenário dessa minha lembrança não existe mais, não só porque ele ficou no passado. Mas porque muito daquilo desapareceu do cenário, social e geográfico, de Gardênia.
As folhas já não mais existem, simplesmente porque quase já não há árvores na minha rua, e de nenhuma outra de lá. As noites de outono já não são refrescantes. A cidade está mais quente e abafada. E a região de Jacarepaguá mais ainda. Muito em razão do processo desordenado de verticalização do bairro, que foi bloqueando todo o vento que vinha lá da praia da Barra.
E hoje me parece pouco crível que as noites na Gardênia Azul sejam vividas de maneira tão serena. Até porque elas são muito mais barulhentas. Carros, motos, gritos, som alto, tiros. Não poucas vezes, juntos e misturados.
E não apenas no outono…
E antes o problema de lá fossem apenas as noites quentes e abafadas
Acho que a memória desta noite fala menos de um tempo que não existe mais e mais do que perdemos.
Fala muito de como as mudanças que nós provocamos saem de controle, como o clima e o ambiente. De como elas podem piorar nossas vidas. Ao invés de melhorar.
A memória fala no fundo do perigo de uma mudança que destrói nosso presente.
Quem sabe ela teime em persistir não para condenarmos a mudança em si, e sim para que possamos imaginar um processo de mudança que beneficie a vida das pessoas, que seja plena e que ajude a frutificar um futuro, fortalecendo o presente.
Nem tudo em Gardênia era perfeito naquele outono de 1991. Mas ela não precisava ter piorado tanto. A mudança não precisa ser contra a gente.
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E naquela noite, minha mãe chegou bem. “Acordado a essa hora, menino?” – ela me perguntou, surpresa, assim que me viu.
Ela completou seus estudos poucos anos depois.
