Baixada de Jacarepaguá (Biblioteca IBGE/Internet)

A região de Jacarepaguá tinha uma das piores reputações nas primeiras décadas do Século XX. Para alguns um verdadeiro “pântano”, para outros um “logar esquecido”, “foco de miasmas e pestilências”, “terra de infelizes”. Outros ainda a consideravam uma espécie de “Matto Grosso” encravada em pleno Distrito Federal. Do jeito que era tratada, nem parecia que fazia parte do Rio de Janeiro, então capital da República. Nenhum literato desse período teve a pachorra de ambientar alguma história sua em Jacarepaguá ou em outro ponto do Sertão Carioca, como Guaratiba ou Santa Cruz. Nem mesmo Lima Barreto ou Marques Rabelo – tão identificados com o subúrbio carioca – o fizeram.

Curiosamente, foi essa característica de lugar inóspito e longínquo que justificou a fixação da nova sede da “Colônia dos Psicopatas” (atual Juliano Moreira) em Jacarepaguá, transferida da Ilha do Governador no início da década de 1920 para a área antes ocupada pela fazenda Engenho Novo, perto de Curicica.



Parece incrível, mas essas imagens ainda eram dominantes quando a “sorte” de Jacarepaguá começou a mudar. E foi exatamente na mesma época da publicação no Correio da Manhã de um compilado de reportagens sobre a região, que o autor denominaria de Sertão Carioca. Foi com essa emblemática palavra (Sertão), atravessada por tantos significados, que o naturalista autodidata, escritor e jornalista Armando Magalhães Correa decidiu qualificar a zona rural da então capital da República. A partir dos seus textos, publicados originalmente em 1932 e 1933, que a população carioca das zonas sul, norte e central passou a ter conhecimento da existência de uma área quase selvagem, onde viviam pessoas que exerciam atividades e um modo de vida marcadamente rural. Além do modo de vida, impressiona nos relatos de Magalhães a riqueza e a exuberância da flora e fauna de uma área localizada a poucos quilômetros de um dos maiores centros urbanos da América Latina, e quiçá, do mundo. Em bela síntese sobre o trabalho do homem que trabalhava como conservador na seção de História Natural do Museu da Quinta da Boa Vista, Felipe Migliani escreve:

O Sertão Carioca” é uma obra que combina crônica, etnografia e alerta ecológico. Corrêa descreve com precisão a paisagem natural de Jacarepaguá, incluindo solos, rios, lagoas e a vegetação remanescente da Mata Atlântica. Ele também documenta a vida dos sertanejos, suas fazendas, igrejas, represas e técnicas de produção, oferecendo um retrato detalhado de uma região em transformação (“Magalhães Corrêa: O Cronista do Sertão Carioca”, https://www.agencialume.com/post/magalhaes-correa-o-cronista-do-sertao-carioca).

Foto de Armando Magalhães Correa. Fonte: https://ecomuseusertaocarioca.blogspot.com/2014/08/o-sertao-carioca-de-magalhaes-correa.html.
Foto de Armando Magalhães Correa. Fonte: Ecomuseusertaocarioca.blogspot.com

Tais reportagens seriam compiladas num volume único pelo Instituto Histórico-Geográfico Brasileiro em 1936.

Frontispício do livro de 1936. Fonte: https://ecomuseusertaocarioca.blogspot.com/2014/08/o-sertao-carioca-de-magalhaes-correa.html
Frontispício do livro de 1936. Fonte: Ecomuseusertaocarioca.blogspot.com/2014/08/o-sertao-carioca-de-magalhaes-correa.html

O sucesso de tal publicação seria notável, tanto assim que toda a imprensa carioca passaria a chamar a região exatamente de Sertão Carioca. E aquilo que antes era deplorado como sendo símbolo de atraso e incultura como a existência de palhoças, atividades agrícolas, trânsito de carros de boi pelas estradas centenárias da região etc., passou a ser positivado, enaltecido como característica que tornava a região singular em termos de beleza paisagística e como uma fronteira aberta para investimentos imobiliários.

Não à toa muitas das imagens e expressões utilizadas por Magalhães Correa em seus textos seriam incorporados ao longo das décadas pelas companhias imobiliárias que passariam a avançar com seus loteamentos na região.

A grande ironia é que a incorporação urbana sancionada por aquelas companhias poria em risco exatamente as belezas naturais tão apregoadas pelo escritor. Ironia que se mostraria trágica a partir dos anos 1950 com a avalanche de loteamentos que passa a ameaçar a existência do cinturão verde carioca, por meio, inclusive, do despejo de milhares de famílias de pequenos lavradores.

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Professor Associado 4 do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense/ Campos dos Goytacazes. Também realizei na UFF meu mestrado (2005) e doutorado (2009) em História. Minhas pesquisas versam basicamente sobre as relações entre o espaço rural e urbano e suas implicações em termos de políticas públicas e configuração de grupos sociais. Sou pesquisador do Instituto Histórico-Geográfico da Baixada de Jacarepaguá e editor-chefe da Revista Convergência Crítica.