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quarta-feira, março 12, 2025
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A verdade veio à tona, no córrego sob a ponte

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por Luiz Eduardo Soares – Policial militar de São Paulo arremessou um jovem da ponte. Mais um ato criminoso de brutalidade da corporação comandada por Tarcisio-Derrite? Não. O impacto na opinião pública demonstra que houve aí algo diferente. Tão diferente que jogou o governador do alto de sua arrogância no chão da oficina de reparos de imagem, onde calçou as sandálias da humildade e admitiu erros.

A cena mal dirigida, absolutamente inconvincente, típica de ator canastrão, pretendia realizar duplo procedimento: harmonização facial na máscara fascista (eis aqui o membro mais original da fauna ideológica: um fascista fofo e moderado, capaz de reconhecer seus erros) e uma lanternagem política que disfarçasse o fato de que os tais equívocos matam e mataram muita gente. Sabe-se que a chamada “política de segurança” do governador é um dispositivo análogo à “ponte para o futuro” de Michel Temer: brevê para tripular a próxima campanha eleitoral, saciando a sede de vingança do imaginário punitivista, em diálogo com o medo, devidamente editado pelas redes bolsonaristas para servir ao aprofundamento do racismo e da dominação de classe.

Lembremo-nos de que no mesmo dia, também em São Paulo, um rapaz negro foi assassinado com onze tiros pelas costas por outro policial militar. Motivo da “pena capital”: furto de sabão líquido. Quantos outros crimes covardes têm sido sistematicamente cometidos por agentes do Estado, sob o aplauso da dupla Tarcisio-Derrite? Aplausos, justificativas, minimização, desprezo pelas vítimas e suas famílias são atitudes que fazem com que os policiais se sintam autorizados, quando não instados, a proceder com violência arbitrária. Por isso, toda a cadeia de comando deve ser responsabilizada.

Há cena mais abjeta do que a intimidação policial à família do pequeno Ryan, no momento devastador de sua despedida? A arrogância de quem declara “Podem ir à ONU ou à Liga da Justiça, não tô nem aí” ecoa no menosprezo pela morte de uma criança e pela dor de seus pais. Forma-se uma corrente que conecta gestos políticos, palavras, exaltação de valores e afetos negativos e ações na ponta. Forma-se a liga da indiferença à vida dos pobres, em especial da população negra.

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Resta saber o que a cena bárbara da ponte traz consigo e a torna singular, em meio a um cenário tão vasto de atos perversos. A meu ver, a performance do PM desnudou a realidade essencial e mais profunda que, por vezes, é rasurada ou desfocada nas mais variadas manifestações da violência policial. Lançar o jovem do alto da ponte significa apenas isso: um descarte. Tratava-se de descarte. Descarte de mais uma vida descartável. A simplicidade do gesto, a ausência da tradicional coreografia da brutalidade policial, deixaram o movimento e seu sentido plenamente acessíveis (ao menos, no plano da comunicação inconsciente): nada além de descarte. Não estiveram presentes na cena o corpo ferido pelo choque, o sangue, armas e tiros, cassetetes, os pontapés habituais, as convenções típicas da linguagem que conhecemos nas reportagens, nos jogos eletrônicos e no entretenimento audiovisual, que abusam dessa gramática até normalizá-la.

Um homem arremessa outro homem para o vazio por sobre a mureta de uma ponte, como quem se livra de um saco de lixo. Nada fora da rotina. Um gesto asséptico, que não destoa da natureza, não altera a ordem das coisas como são e devem ser -um era policial, o outro, só alguém da periferia. No Rio, há alguns anos, certo coronel disse que sua polícia era um inseticida social. O que deveria soar como confissão de atrocidades a exigir a mais forte repulsa da sociedade e das autoridades, a começar pelo Ministério Público, acomodou-se às expectativas e dissolveu-se na paisagem.

Um jovem foi arremessado, e por ser o movimento tão ostensivamente perceptível como descarte, a verdade radicalmente política da violência policial veio à tona, no córrego sob a ponte.

Luiz Eduardo Soares

Antropólogo, cientista político, escritor e ex-secretário nacional de segurança pública

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