As soluções e limitações da PEC que aumenta a presença do governo federal na segurança pública dos estados

Medidas visam enfrentar a violência no Brasil.

Redacao
Por Redacao
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Robson Rodrigues, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

Segundo os dados de uma pesquisa Quaest, a violência é hoje o segundo maior problema para os brasileiros, ficando atrás apenas da economia, ultrapassando a saúde e demais questões sociais inclusive.

Não poderia ser diferente. A percepção geral é de que o Estado e seu aparato de força são incapazes de enfrentar uma criminalidade crescente a olhos vistos e diariamente registrada na imprensa e nas redes sociais.

No Brasil, o crime percebido nas periferias como “organizado” só é relativamente organizado, ou seja, é tão organizado quanto mais desorganizado é o Estado para enfrentá-lo.

O fato é que o crime mudou, proliferou-se nas entranhas do capitalismo tardio e se expandiu na esteira da globalização. O Estado, por sua vez, com uma estrutura de segurança pública anacrônica e reativa, tem ficado atrás nessa corrida civilizatória.

Nesse contexto, alguns governadores têm apontado para as responsabilidades do governo federal, principalmente quando enfrentam desgastes pelo aumento da criminalidade e da violência – inclusive a policial – em seus estados.

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, por exemplo, tem reclamado frequentemente das armas pesadas que entram ilegalmente no país e, invariavelmente, chegam às mãos de traficantes de drogas em seu estado.

Apesar da simplificação do problema e das barbeiragens de sua gestão frente à segurança pública local, Castro não está de todo equivocado.

Sua cobrança mais recente ocorreu em outubro passado, após duas operações policiais desastrosas terem deixado um rastro de violência em áreas importantes da capital fluminense, com ônibus sequestrados por criminosos, em Jacarepaguá, e pessoas inocentes mortas na mais importante via expressa do estado.

Até então o governo federal respondia a esses apelos locais com “ajudas” paliativas ou improvisadas; ora enviando a Força de Segurança Nacional, ora decretando, em situações mais extremas, as controversas ações de Garantia da Lei e da Ordem – GLO, reforçando a ideia de senso comum que atribui aos estados a responsabilidade pela segurança pública.

Desta vez, porém, a reação do poder central foi diferente e até inusitada. Ao invés de “ajudar” com a Força Nacional, como de costume, o presidente Lula convidou os governadores para uma reunião no Palácio do Planalto onde, em tese, seriam discutidas soluções para problemas estruturais da segurança pública no país.

Nessa reunião, no entanto, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, causou surpresa e desconforto aos governadores presentes por apresentar uma proposta de emenda constitucional para a segurança pública, antes mesmo dos debates.

Houve reações, sobretudo de governadores de oposição que apontaram naquela proposta uma tentativa de restrição à autonomia federativa dos estados.

Ainda que Lewandowski alegasse tratar-se de um anteprojeto em construção, cujo objetivo era apenas de iniciar os debates, o palanque político estava armado, tudo o que o tema da segurança pública não precisava no momento

Após as críticas dos governadores, o governo federal acenou com um novo texto, agora reforçando expressamente a autonomia dos estados no âmbito da segurança pública. Mas mantendo os demais pontos do texto original. Aí é que mora o perigo, quando a celeuma da autonomia federativa distrai a opinião pública para aspectos secundários da questão.

Segundo o anteprojeto do governo, o objetivo da PEC é ampliar as atribuições da União na segurança pública e melhorar a integração das polícias com a constitucionalização do SUSP , o Sistema Único de Segurança Pública, criado pela Lei nº 13675/2018, mas que até agora não saiu do papel.

Para financiar as ações do sistema, a PEC sugere ainda unificar o Fundo Nacional de Segurança Pública e o Fundo Penitenciário Nacional, com a partição dos recursos entre os três níveis federativos, o que talvez tenha sido o único consenso naquela reunião.

Embora a constitucionalização do SUSP seja um avanço considerável, nada garante que a medida, por si só, resolverá os problemas da criminalidade que assola o país. Entraves estruturais crônicos não foram abordados na PEC e, o que é pior, problemas históricos foram reforçados.

Como especialista e estudioso da segurança pública, chamo a atenção para duas dessas medidas, para além da celeuma criada em torno da autonomia federativa: a criação de uma polícia ostensiva federal a partir da extinção da Polícia Rodoviária Federal e a “extensão” das atribuições da Polícia Federal.

A primeira foi motivada, segundo o anteprojeto, porque “o modelo de duas polícias, considerado efetivo nos Estados, merece ser replicado no âmbito federal”; a segunda não passa de uma falácia como veremos adiante.

A justificativa das duas polícias foi defendida pelo ministro da justiça na reunião com os governadores. Segundo Lewandowski, “o modelo dos Estados e do Distrito Federal é um modelo de sucesso, claro, observadas as suas imperfeições, e que merece ser replicado no âmbito da União. Então o que nós estamos propondo é que a União também tenha uma polícia ostensiva tal como têm os estados e o Distrito Federal”.

Ora, tal justificativa soa desconectada das evidências haja vista os números da criminalidade homicida no país e suas baixas taxas de elucidação, que claramente depõem contra a eficácia do modelo policial brasileiro.

A taxa de mortes violentas no Brasil, de 22,8 homicídios por 100 mil habitantes em 2023 , é quase quatro vezes maior do que a taxa mundial de 5,8 mortes por 100 mil habitantes. Quanto ao esclarecimento criminal, somente 35% desses crimes ocorridos entre 2015 e 2021 foram solucionados, representando uma taxa muito aquém da média global de 63%.

Além de replicar um modelo malsucedido nos estados, a proposta vai ainda de encontro a outras propostas em tramitação no Congresso Nacional que tratam justamente da correção desse modelo, como a PEC PEC 51/2013 e a PEC 127/2015.

Exceção à brasileira

É importante lembrar que a Polícia Militar recebeu o monopólio do policiamento ostensivo durante a Ditadura cívico-militar (1964-1985), não obviamente para para assegurar direitos e garantias individuais, mas para fins de controle político-social; e que a Polícia Civil, até então responsável por tal atribuição nos estados, passou a atuar somente na investigação criminal por meio dos anacrônicos inquéritos policiais, o que transformou as delegacias policiais em balcões cartorários pré-judiciais.

Com a redemocratização, pouco desse arcabouço constitucional foi alterado. O trabalho policial permanece até hoje dividido nos estados e no Distrito Federal entre duas polícias: uma ostensiva, a Polícia Militar, que atua patrulhando as ruas, mas não tem o poder de investigar; e outra judiciária, a Polícia Civil, que investiga o crime depois que ele ocorre, mas não atua mais preventivamente nas ruas, como fazia antes dos “anos de chumbo” da ditadura cívico-militar.

Alguns entendem que esse foi um processo normal de especialização da polícia. No entanto, o modelo está mais para uma exceção que a regra nos Estados racionais contemporâneos; uma espécie de exceção “made in Brasil.” O jeito (brasileiro) para resolver essa dicotomia, foi a “integração” das polícias, que está mais nos discursos que nas práticas.

Das duas, uma: ou o Brasil está certo e o resto do mundo desenvolvido errado, ou o mundo está certo e o Brasil caminhando na contramão.

A falácia da extensão de atividades do governo federal

Por outro lado, uma polícia ostensiva federal segundo as justificativas da PEC absorveria parte das atuais atribuições da PF, a parte mais espinhosa, diria, pois é sua inobservância recorrente que tem motivado boa parte das críticas contra o governo federal.

Na verdade, o suposto aumento das atribuições da União alegado no anteprojeto não passa de um mero ajuste, pois, se de um lado promete-se avançar no combate ao crime ambiental e às milícias, por outro, transfere-se essas atribuições espinhosas da PF para a nova polícia ostensiva.

Pior que isso, a proposta faz “chá de sumiço” com boa parte do artigo 144 da constituição, especialmente a que trata de funções vitais para um combate eficaz ao crime organizado e a violência armada no país, tais como “prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho”; e, ainda, “exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras”.

Conclusões

Há que se louvar a iniciativa do governo federal. De fato, é preciso um trabalho coordenado que busque, em comunhão de esforços com os demais entes federativos, organizar o Estado para o adequado enfrentamento dos problemas da segurança pública do país.

No entanto, a precipitação do governo na apresentação unilateral de sua proposta suscitou ruídos e discussões desnecessárias, que em nada contribuem para uma discussão que deveria estar acima das vaidades políticas, o que é o primeiro ponto de um nó intrincado a ser desfeito.

No mérito, a PEC da Segurança ainda é tímida, não avança em questões fundamentais para a solução de problemas históricos da segurança pública no país.

Tampouco ela deveria enveredar na tentativa de desonerar a União de atribuições espinhosas mas fundamentais para o desempenho do papel que pleiteia na coordenação do SUSP.

Já há uma polícia de ciclo completo no âmbito federal, a Polícia Federal, que, além de investigar determinados crimes, atua de forma ostensiva em operações policiais e como polícia administrativa, em searas importantes para a segurança pública, como a polícia marítima (que não realiza), e a prevenção ao tráfico de drogas de caráter transfederal e transestadual (no que deixa a desejar).

Mais razoável seria, portanto, manter a Polícia Federal com suas atuais atribuições, investindo em sua modernização com a necessária ampliação e qualificação de seus quadros; e ao mesmo tempo, conceder o ciclo completo à Polícia Rodoviária Federal para que ela passe a também investigar delitos ocorridos em sua área de atuação preventiva, as rodovias federais, ao invés de se criar outra polícia, replicando os mesmos equívocos do modelo policial dos estados.

É preciso criar o ambiente para uma discussão assertiva, apartidária, sobre os reais problemas da segurança pública em vez de palanques políticos que distraem nossa atenção com discussões secundárias e pouco contribuem para um diagnóstico adequado desses problemas.

Se em 1988 perdemos uma grande oportunidade de seguir em uma direção mais criativa no debate sobre a segurança pública no país, não podemos repetir esses mesmos erros agora.

Robson Rodrigues, Coronel da reserva da Polícia Militar, antropólogo, doutor em ciências sociais e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência (LAV-UERJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

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