Badiou: política, seres e magias

As ideias do filósofo franco-marroquino. Partindo de Maio de 1968, ele pensou a política entre matemática e poesia. Por mais fugaz que seja a vida, dizia, a filosofia sugere “viver como imortais”. Tentar mudar o mundo nunca deixará de valer a pena
18 de março de 2025
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Badiou: política, seres e magias
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Por Justin Clemensm, com tradução na Revista Opera

Se há uma convicção fundamental compartilhada pelos filósofos antigos, é a de que, seja lá o que o pensamento for, ele é vital para uma vida boa. O infame lema de Sócrates “a vida não examinada não vale a pena ser vivida” é o epítome dessa atitude. O mais importante é que essa ética não é – ou não deveria ser – uma preocupação meramente pessoal com a automodelação e o engrandecimento pessoal, nos moldes da atual moda de renascimento do estoicismo cognitivo-comportamental das redes socais, que efetivamente torna a ordem neoliberal exterminadora da Terra a carruagem atrás da qual todos devem correr o mais rápido que puderem. Não desistam, fracos, e parem com suas lamentações inúteis! Contrariando essas imagens populares do uso da filosofia – que, em sua maioria, são indissociáveis das exigências tirânicas de nos acomodarmos aos aspectos mais violentos do presente – a ética clássica se preocupava com os poderes da ação virtuosa, infundidos e dirigidos pelo pensamento, e com a vinculação desses poderes a um destino social e até mesmo cósmico. A única questão real era: como desenvolver modos eficazes de pensamento-ação?

Essa também é a pergunta de Alain Badiou. Sim, ele é um filósofo francês contemporâneo. Sim, ele também diz coisas como diferendosdiferenças e diferenciações, como fizeram J.-F. Lyotard, Jacques Derrida e Gilles Deleuze. Ele também fala, como Luce Irigaray, de um sexo que não é um e, como Barbara Cassin, dos efeitos sofisticados das linguagens. Mas, ao contrário de todas essas figuras, ele mantém um compromisso rigoroso com o universalismo, a igualdade, a disciplina e a organização. Será que isso o coloca no campo nostálgico dos reacionários que ainda falam da necessidade de ordem, de hierarquias, do Estado de direito (ou, alternativamente, do domínio do mais forte), de um estado securitário, da superioridade ou, pelo menos, dos benefícios especiais do Iluminismo ocidental? Não é o caso. De fato, contra essa propaganda “parlamentar-capitalista”, Badiou continua a afirmar as possibilidades reais e ativas hoje do que ele chama de “hipótese comunista”[1].

No entanto, Badiou também se aproxima do que ainda é condenado como “pensamento pós-moderno” por intelectuais públicos tão diversos como Jordan Peterson, Noam Chomsky e até mesmo uma certa parcela de comentaristas da revista Arena. Notório por seu ativismo maoísta nas décadas de 1960 e 1970, Badiou retornou à filosofia “dura” nos anos 1980, de onde emergiu como o último grande filósofo francês do século XX com uma série de tratados gigantescos que incluíam O Ser e o Evento (1988), Lógica dos Mundos (2006) e Imanência das Verdades (2018), bem como diversas obras menores, que reavivaram uma forma quase inimaginavelmente ambiciosa de metafísica para os nossos tempos. Baseando-se simultaneamente nos desenvolvimentos mais antigos e mais contemporâneos em campos tão diversos como matemática, lógica, amor e sexualidade, artes e política, bem como em sua própria experiência de compromisso ativista, essas obras atravessam as confusões e ilusões do presente para oferecer uma visão poderosa e esclarecida da ação política hoje.

O histórico de Badiou é semelhante ao de muitos expoentes da filosofia francesa do século XX – aqueles que Niilo Kauppi certa vez chamou sardonicamente de Nobreza Intelectual Francesa.[2] Como Louis Althusser, Albert Camus e Jacques Derrida, ele nasceu no norte da África – no seu caso, em Marrocos, em 1937. Seu pai, Raymond, era um intelectual notável, um matemático formado na famosa elite da École Normale Supérieure (ENS), que lutou na Resistência Francesa e, após a Segunda Guerra Mundial, tornou-se prefeito de Toulouse; sua mãe, Marguerite Rouxbédat, também se formou em literatura na ENS. Assim como seus pais, Badiou estudou na ENS; seus professores, incluindo Georges Canguilhem, estavam entre os mais eminentes filósofos e acadêmicos do Estado francês.

No mundo fechado, porém cosmopolita, da academia francesa, Badiou fazia parte de um meio exclusivo de esquerda radical. Aluno de Althusser, seus compatriotas incluíam Étienne Balibar, Pierre Macherey e Jacques Rancière, todos contribuintes em 1965 para os estudos inovadores que compunham o Lendo o Capital[3]. Entre 1965 e 1968, ele trabalhou em um programa de TV no qual entrevistou alguns dos filósofos mais influentes da época, incluindo Michel Foucault, que mais tarde indicou Badiou para um emprego na nova e radical universidade de Vincennes. [4] Seus artigos acadêmicos de meados da década de 1960 se baseavam simultaneamente na filosofia política contemporânea, na literatura e na lógica matemática, fundindo critérios formais com sentimentos de revolta. Como todo bom pós-sartreano, Badiou também escreveu peças de teatro e romances; suas ficções em prosa chamaram a atenção de Sartre e de Beauvoir.

Mas o principal evento da vida de Badiou acabou sendo os acontecimentos de maio de 68. Rompendo quase que imediatamente com Althusser e o althusserianismo, Badiou tornou-se um maoísta francês do tipo mais comprometido. Ainda é possível sentir o gosto do militantismo do dia em um texto escrito em plena luz de 1968, ao mesmo tempo analisando e condenando o curso dos “eventos”:

“Graças a uma inversão que estava longe de ser paradoxal, quando a ideia de organização finalmente surgiu, ela era estreita, aristocrática, ‘vanguardista’ e militar. Não levava em conta a demanda das massas por organização e por uma estrutura ideológica. A incerteza que é característica da pequena burguesia pode ser vista nas disputas entre o infrabolchevismo da espontaneidade das massas e o hiperbolchevismo da vanguarda intelectual. Se tivesse sido absolutamente preponderante, a teoria de Mao Tsé-tung sobre a necessidade de uma linha de massas poderia, é verdade, ter posto fim a essa vacilação.”[5]

Em busca dessa linha de massas, Badiou, com seus camaradas Natacha Michel, Sylvain Lazarus e outros, fundou a Union des communistes de France (marxiste-léniniste) (União dos Comunistas da França – Marxista-Leninista, ou UCFML) em 1969, uma rival dos grupos maoístas mais famosos que eram o Parti communiste marxiste-léniniste français (Partido comunista marxista-leninista francês) e o Gauche prolétarienne (Esquerda Proletária), e passou bem mais de uma década se dedicando à luta[6]. Diferente de seus companheiros de viagem maoístas, a UCFML estava inequivocamente comprometida com a Revolução Cultural e deu ênfase crucial às ações e conquistas da Comuna de Xangai de 1967, que havia se inspirado expressamente na Comuna de Paris de 1871; isso significava que, em vez de seguir estritamente as diretrizes dos revolucionários chineses, a prioridade era a aplicação do pensamento maoísta à singularidade das lutas locais francesas.

Os escritos de Badiou dessa época são, não surpreendentemente, dominados pela questão da ação revolucionária. Totalmente alinhado com a essência da práxis “marxista-leninista”, Badiou sustenta que nenhuma política eficaz é possível sem uma análise adequada da situação na qual se está intervindo, e que nenhuma análise adequada é possível sem recorrer – como fizeram Lênin e Mao – a conceitos-chave da filosofia idealista resolutamente abstrusa de G. W. F. Hegel (sobre o qual falaremos mais adiante).[7] Como diz Mao em O Livro Vermelho:

“Para haver revolução, deve haver um partido revolucionário. Sem um partido revolucionário, sem um partido construído com base na teoria revolucionária marxista-leninista e no estilo revolucionário marxista-leninista, é impossível liderar a classe trabalhadora e as amplas massas do povo para derrotar o imperialismo e seus cães de guarda.”

Para parodiar uma proposição bem conhecida da Crítica da Razão Pura de Immanuel Kant: a política sem pensamento é cega; o pensamento sem política é vazio.

Os textos de Badiou da década de 1970 são densos, mas incisivos: relê-los hoje é ficar impressionado com sua clareza, inteligência e arcaísmos doutrinários:

“A prática estatista da organização de todos é a condensação da experiência socialista, ou são as revoluções culturais que constituem as formas políticas supremas da luta de classes, visando à dissolução do Estado? O maoísmo vai direto ao ponto: é a política proletária e revolucionária que continua sendo o fenômeno-chave ao longo de toda a transição socialista. O Estado deve ser avaliado a partir da luta de classes do proletariado, e não o contrário.”[8]

Mas o principal resultado filosófico dos anos vermelhos de Badiou veio com seu declínio, derrota e dissipação. Do ponto de vista externo, no final da década, Mao estava morto, a Revolução Cultural havia fracassado, o Caminho Capitalista estava de volta com sentimentos de vingança e a grande onda planetária de revoluções anticoloniais do período pós-guerra estava claramente se dissipando. Se o maoísmo francês também não estava indo muito bem, era igualmente claro que um novo período de reação estava em pleno vigor em todo o mundo e que talvez tivesse chegado o momento de fazer um novo balanço da situação – de retomar a luta no âmbito do pensamento.

Em 1982, Badiou publicou seu primeiro (autodenominado) “grande livro”, Teoria do sujeito, sob a ascendência estatal do abominado presidente francês François Mitterand, para Badiou o emblema da reação e da restauração. Apesar da genialidade desse pesado tomo – ele tem mais de 360 páginas na tradução para o inglês – um miasma de confusão impera no conjunto da obra. Ela emerge de uma época e de um lugar que representa o centro de uma derrota histórica para a esquerda vermelha. O prefácio de Badiou é amargo e desarticulado: ele confessa, de forma memorável, que “é sem dúvida mais instrutivo escrever sobre o que não se quer ser a qualquer preço do que sob a imagem suspeita do que se deseja tornar”[9] – lembrando o venerável filósofo Alasdair MacIntyre.[10] O que se segue é ao mesmo tempo brilhante e desconcertante. O livro tenta repensar as possibilidades da política em uma era de reação, reconstruindo os fundamentos filosóficos e práticos do que um sujeito propriamente político pode ser hoje, evitando tanto a Cila do sujeito niilista de Sartre quanto o Caríbdis do sujeito (pós)estruturalista descentralizado e disciplinado. O livro contém comentários extraordinários sobre Hegel, é claro, mas também tiradas sobre os Santos Padres, o hermético simbolista francês Stéphane Mallarmé, as diferenças na teoria do sujeito em Ésquilo e Sófocles, glosas enigmáticas sobre álgebra e topologia e muito mais, salpicado de paradoxos e fervilhando com um espírito melancólico mordaz.

Apesar de tudo, nada no livro, por mais deslumbrantes que sejam suas percepções e estilo, provavelmente induzirá alguém a uma conversão política ou a uma revelação filosófica. Talvez você aprecie os sonetos de Mallarmé de forma mais refinada; talvez até repense o significado político e poético da interpretação de Friedrich Hölderlin da Antígona de Sófocles; mas provavelmente não se convencerá da verdade e da grandeza internas do maoísmo francês, nem de que Badiou é um pensador da mesma estatura de seus compatriotas pós-modernos mais conhecidos.

Mas para explicar isso é necessário – minhas desculpas! – um breve desvio pelos arcanos da absorção, pela academia francesa, do pensamento de Hegel no século XX. Enquanto grande parte da Europa, incluindo Itália, Grã-Bretanha, Alemanha e Rússia, desfrutou de um florescimento hegeliano no século XIX – até mesmo o jovem Bertrand Russell flertou com uma forma de hegelianismo –, a França rejeitou resolutamente qualquer compromisso com o autor, preferindo, por uma série de razões, o grandioso positivismo das ciências sociais de seu próprio Auguste Comte et al. Se o hegelianismo europeu estava dividido entre ramos revolucionários e reacionários, a linha forte do primeiro veio por meio de Marx, principalmente por causa de seus confrontos com os jovens hegelianos de esquerda, como Ludwig Feuerbach e Bruno Bauer.

A Revolução Russa foi necessária para mudar essa situação. Não só o sucesso da Revolução incentivou a esquerda francesa pós-Primeira Guerra Mundial a aderir aos compromissos intelectuais e práticos da Revolução – de fato, o Partido Comunista Francês foi criado no final de 1920 em apoio ao Comintern de Lenin (Hõ Chí Minh foi um de seus membros fundadores) – como também a consequente aparição de emigrados russos eruditos em Paris provocou um novo interesse acadêmico na obra de Hegel. Os mais importantes deles foram os dois Alexandres, Koyré e Kojève (anteriormente Kozhevnikov), que, ao lado de nativos como Jean Wahl, começaram a dar palestras e publicar sobre Hegel. Kojève, em particular, deu uma série de palestras na década de 1930 que posteriormente apareceram como Introdução à Leitura de Hegel, eletrizando toda uma geração de intelectuais franceses, incluindo André Breton, Georges Bataille, Jacques Lacan e muitos outros. [11] Kojève – que mais tarde se juntou à Resistência Francesa e atuou como um importante burocrata, decisivo para a formação da União Europeia (recebeu a Legião de Honra de Valery Giscard d’Estaing)[12] – fez uma intervenção única ao apresentar a Fenomenologia do Espírito de Hegel (1807) como uma dialética antropológica do desejo fundada em uma luta por reconhecimento por figuras que se cristalizariam em senhor e escravo. De fato, a História nada mais é do que os meandros dessa luta: o mestre, que vence a luta ao enfrentar a morte – “o Mestre Absoluto” – é por conseguinte condenado por sua superioridade a uma vida de prazer, enquanto o perdedor, o escravo, conhece a dificuldade do trabalho forçado que, no entanto, transformará não apenas o mundo, mas o próprio escravo, no prenúncio igualitário de um fim (quase) socialista.

As interpretações de Kojève, que eram notoriamente tendenciosas, provocaram tanto entusiasmo entre os intelectuais que grande parte da filosofia francesa do século XX pode ser considerada uma reação intensamente ambivalente ao seu trabalho[13]: Althusser atribuiu uma “ruptura epistemológica” ao Capital de Marx, por meio do qual Marx teria se separado brutalmente do legado hegeliano e, assim, introduzido uma abordagem propriamente científica no campo da política. Voltaremos a essa divisão entre “ciência” e “ideologia” em breve, mas basta dizer aqui que os franceses não conseguiram deixar Hegel de lado, mesmo quando o repudiavam explicitamente. Um sintoma digno de nota, como apontou o linguista Jean-Claude Milner, é que a escrita acadêmica francesa mudou, na década de 1930, da clareza que havia prevalecido de Descartes a Bergson, contorcendo-se sistematicamente em uma “fraseologia dialética” propriamente dita – aqueles marcadores estilísticos rebarbativos que continuam sendo criticados hoje por anti-“pós-modernos” como Noam Chomsky[14].

Contudo, essa história não é apenas acadêmica. Na medida em que o marxismo emergiu do hegelianismo, até mesmo os detalhes mais minuciosos da organização socialista muitas vezes ficavam presos na fenda entre a especificidade das situações e a história como totalidade, os atores ao mesmo tempo energizados e confundidos pela astúcia da razão que, de acordo com um dos mais conhecidos jogos de Hegel, desfaz os melhores planos dos homens ao mesmo tempo em que projeta a sociedade para além dela mesma. Mas enquanto Hegel se preocupava em desenvolver uma filosofia idealista obscura do conhecimento absoluto que fosse ao mesmo tempo enciclopédica e conceitual, Marx estava, como proclama a notória Tese 11 – e precisamente no contexto de uma crítica a Feuerbach, um dos mais inovadores e influentes jovens hegelianos – expressamente preocupado não em interpretar o mundo, mas em mudá-lo.

Ainda assim, Marx, e o marxismo em geral, mantiveram algo decisivo de Hegel. A história continuou sendo o lugar da realização da razão no mundo. Essa história, que hoje em dia é frequentemente descartada como opressivamente “linear”, “racionalista” ou “ocidental”, ainda assim guardava uma série de características cruciais que seria díficeis de serem abandonadas por qualquer pensamento histórico hipotético se livrar sem abandonar completamente seu caráter histórico. Uma delas foi sua ênfase na irreversibilidade dos eventos, apesar das determinações dominantes da repetição. Tais “eventos” eram relativamente raros historicamente, mas eram, de fato, os principais pontos de rota da história como tal. Fosse Sócrates saindo na ágora ateniense, Jesus sendo crucificado no Oriente Médio ou Napoleão se metendo em confusões na gélida Moscou, uma vez que tal evento acontecia, não havia como voltar atrás. Qualquer retorno aparente a um estado inicial ou anterior seria apenas uma aparência ou um falso retorno. Outra característica crucial era o papel desempenhado pelo antagonismo: a negação era o motor da história, e nada poderia surgir que não fosse uma resposta negativa a uma situação anterior, nem poderia evitar, por sua vez, ser negado. Toda concordância aparente seria, portanto, parcial, equivocada, ilusória ou evasiva. Em terceiro lugar, e talvez paradoxalmente, essa irreversibilidade e esse antagonismo não impediram a possibilidade de que, eventualmente, todos os antagonismos tivessem que ser totalmente expressos: ou seja, o antagonismo se voltaria irreversivelmente contra si mesmo. Essa é a questão da totalidade ou, alternativamente, o Fim da História.

Quer Hegel tenha ou não projetado o fim da história na forma contemporânea do estado prussiano, quer Marx tenha ou não preservado formalmente quaisquer convicções homólogas, havia necessariamente, em ambos os casos, devido às operações da dialética mencionadas acima, um compromisso conceitual inegociável com uma certa indeterminação nos assuntos humanos. Salientemos como esse compromisso, independentemente das diversas inflexões políticas e conceituais que possa receber – e tem recebido – pressiona todos os nossos modos de ação e compreensão em nome do futuro que agora se desenvolve indiscutivelmente no coração do próprio presente. No entanto, toda ação ainda precisa ser dirigida por um compromisso – por definição, algo que ultrapassa nosso conhecimento atual – com o futuro como um fim, seja ele o triunfo da Forma do Estado em si ou o desaparecimento definitivo do Estado após o sucesso da revolução proletária. Essas são, portanto, as operações fundamentais da notória dialética hegeliana, pelo menos nas formas dominantes que ela teve na França do século XX: a primazia da história dos eventos; a centralidade da contradição como propulsora de tais eventos; e as reivindicações de uma totalidade temporalizada como o fim sem fim da própria história, o contexto final de todo o devir.

É nesse ponto que podemos voltar a Badiou.

Em 1982, portanto, não está claro que outra interpretação de Hegel – outra metafísica, por mais radical, por mais original, por mais maoista que seja – seja capaz de competir com a massa de interpretações francesas existentes da obra de Hegel. Os “pós-modernos” – Deleuze, Derrida, Foucault, Kristeva, Lacan, Lyotard – que certamente eram todos antimarxistas de uma forma ou de outra –, lidaram com o legado de Hegel em detalhes alucinantes, criticando decisivamente a existência da dialética, seus supostos poderes de recuperação, suas determinações da história, sua violência repudiada, seu regionalismo branco e ocidental autoafirmativo disfarçado de universalismo. Como Derrida, por exemplo, declarou em Mitologia Branca, usando Anatole France: “O que é metafísica? Uma mitologia branca que reúne e reflete a cultura ocidental: o homem branco toma sua própria mitologia (isto é, a mitologia indo-europeia), seu logos, ou seja, o mythos de seu idioma, para a forma universal daquilo que ainda é seu desejo inescapável chamar de Razão”.[15] Em outras palavras, o maoísmo de Badiou estava agora se apresentando como uma psicopatia política francófona esclerótica, inadequada aos desafios do presente.[16]

Curiosamente, é precisamente devido a uma autocrítica viciosa de seus próprios fracassos em Teoria do Sujeito que Badiou acaba se tornando Badiou. O livro presume, em vez de justificar, a existência e a necessidade do próprio sujeito que está em questão; esse sujeito é, em última análise, inteiramente político; de fato, o político funciona como um significante-mestre injustificado em todo o livro. Hegel continua sendo o limite do pensamento, ainda que de um jeito anômalo e claramente partidário. Uma tentativa de romper com o impasse do período, ele havia se tornado apenas uma extensão da crise. Era necessário repensar a filosofia – algo que transcendesse genuinamente as suposições das quais Badiou não conseguia escapar até então.

Assim, ele passa a década de 1980 repensando todos o material que já tinha à sua disposição – lógica e matemática de ponta, ativismo político, amor pela literatura, o desafio da psicanálise e assim por diante –, o que culmina no vasto tratado publicado em 1988 como Ser e Evento (526 páginas em inglês e, para Badiou, o segundo de seus “grandes livros”).[17] O que faz desse livro a obra de filosofia mais importante do final do século XX, uma obra-prima conceitual absoluta? Simplificando, por sua absorção de todas as críticas e defesas da verdade desencadeadas pelos pós-modernos e seus inimigos – e por sua recusa em aceitá-las, e seu desejo concomitante de reconstruir uma justificativa filosófica da verdade universal imune a essas críticas. Observe especialmente os termos-chave do título, que, ao aludir tanto a Ser e Tempo (1927), de Heidegger, quanto a Ser e Nada (1943), de Sartre, deve dar uma ideia da ambição de Badiou.

A matemática e a ciência física voltaram a entrar na filosofia de uma nova maneira no final do século XIX, principalmente por meio do trabalho de Russell, que, apesar de ter começado como hegeliano, adotou os novos desenvolvimentos em matemática e lógica associados a nomes como Georg Cantor e Gottlob Frege, repudiando fundamentalmente qualquer lógica hegeliana de negação e contradição. Russell tornou-se um dos fundadores da chamada “filosofia analítica”, juntamente com Ludwig Wittgenstein e outros, cujos herdeiros são encontrados na filosofia da linguagem comum de Oxford e no Círculo de Viena. Esse tipo de filosofia tendeu a privilegiar uma imagem específica da ciência – as chamadas “ciências exatas”. Ao fazer isso, apesar de também ter passado por uma “virada linguística” significativa em suas invenções de conceitos como o “performativo” de J. L. Austin e a “implicatura” de H. P. Grice, ela também repudiava o que chamava ironicamente de “filosofia literária”.

Mas. para Badiou, recorrer à matemática para obter um guia filosófico significou um desvio. A valorização irrefletida do significante “ciência” era algo que o pensamento francês, incluindo os pós-modernos, abominava particularmente. Nesse aspecto, eles estavam no rastro dos alemães. Como Theodor Adorno colocou em uma formulação exemplar:

“A sociedade burguesa está universalmente situada sob a lei da troca, das contas de igual para igual que se igualam e que não deixam nenhum resíduo. Em sua própria essência, a troca é algo atemporal; como a própria razão, como as operações da matemática de acordo com sua forma pura, elas eliminam o aspecto do tempo”[18].

Embora só ocasionalmente estivesse disposta a admitir isso, a Escola de Frankfurt não podia deixar de se inspirar em Martin Heidegger, cuja famosa virada neorromântica para a prioridade da poesia no reino do pensamento, bem como seu nazismo inveterado, dependia de uma profunda reconstrução histórica do surgimento do regime deletério da tecnociência. Uma parte crucial dessa reconstrução estava voltada a mostrar que a época moderna – ou seja, nossa época, do esquecimento da questão da verdade do Ser – era particularmente destituída na medida em que estava sob o reinado planetário da tecnologia, ela própria uma consequência da matematização do Ser realizada precisamente por figuras como o próprio Descartes. A virada romântica do final do século 18 na arte e na filosofia repudiou isso: Hegel submeteu a forma do conhecimento matemático à “ideia propriamente filosófica”. A história e a poesia eram mais verdadeiras do que a tecnologia e a ciência, uma posição ainda defendida fundamentalmente por muitos dos chamados “filósofos continentais” de hoje.

Portanto, temos um emaranhado de posições fortemente antagônicas. Heidegger afirma que a verdade emerge dos eventos constituídos pela poesia e não pela tecnociência, reexaminando a questão do ser usando métodos poético-filológicos. As tradições marxistas – ou, de modo mais amplo, as tradições do radicalismo político – defendem a política em detrimento da interpretação, exigindo a subordinação do pensamento sobre o mundo às categorias, como burguês e proletariado, da política em si. Ao mesmo tempo, os analíticos mantêm as ciências exatas como uma imagem ideal para o pensamento, pois também voltam sua atenção para a análise linguística minuciosa. Por sua vez, os pós-estruturalistas, por meio de leituras atentas da tradição filosófica, desestabilizam as reivindicações de verdade por meio de uma crítica das oposições binárias e da negação de qualquer legitimidade à categoria da totalidade. O que Badiou faz em meio a esse tumulto carnavalesco? Ele pega algo de cada uma dessas tendências, enquanto inverte ou desvia o sentido herdado delas. Seu trabalho pode ser visto como uma síntese cuidadosa e uma transcendência das tradições de pensamento herdadas da modernidade para criar uma nova metafísica que, ao se estabelecer como um materialismo, se afirma como leitura essencial para aqueles que buscam possibilidades rotuladas como “políticas” no século 21.

O ponto central desse imperativo é um par de divisões correspondentes: a do Ser – o mundo como ele deve ser – e a dos eventos. O campo dos seres – não o Ser heideggeriano, alguma qualidade transcendente misteriosa, mas a multiplicidade total do mundo – pode ser analisado por meio das investigações da matemática, uma vez que a matemática é uma forma racional de verdade que revela estruturas universais. Os eventos não são meras ocorrências e processos pelos quais o mundo passa; essa é a província do ser. Os eventos são acontecimentos grandes e pequenos – tudo, desde a Revolução de Outubro até algumas palavras duras em um simpósio ou em um mercado de um vilarejo – que abrem novas possibilidades no mundo. Os eventos escapam à determinação – eles não existem por si só – e, portanto, oferecem a possibilidade de que coisas radicalmente novas aconteçam. Se o ser é capaz de ser pensado pela matemática, os eventos têm uma estrutura poética – um termo para a arte em geral.

Essa dupla – matemática-ser e poesia-eventos – é complementada por dois outros campos. Com base na virada pós-moderna, Badiou considera que o amor oferece um modelo de como as diferenças radicais podem se encontrar e se sustentar mutuamente. E as tradições da revolução se orientam para a transformação política em massa que excede o conhecimento. De fato, Badiou reconcebe a própria verdade como uma forma de ação comprometida, não apenas como adequação ou revelação.

O uso da matemática por Badiou foi provavelmente o mais controverso, mas também o mais radical de suas propostas. Ele chega a dizer isso como uma pequena equação: matemática = ontologia. O que isso poderia significar? Uma característica fundamental da chamada matemática “pura” é que ela é a base da ciência moderna – de toda ela. Não existe física sem matemática: como o próprio Galileu disse certa vez, “o livro do mundo está escrito em linguagem matemática”. Por que isso é certo é obviamente um debate histórico-mundial, mas também é verdade que a matemática que a física utiliza é apenas um pequeno fragmento da realidade matemática; em outras palavras, os poderes e o alcance da matemática estão muito além de qualquer possível implementação empírica. O argumento de Badiou inverte os tratamentos materialistas e fenomenológicos padrão das matemáticas complexas que começaram a surgir na Renascença, que as tratam como abstrações aninhadas no real. Em vez disso, ele argumenta que essas descobertas revelam extensões mais amplas de possibilidades reais, das quais o real é simplesmente um subconjunto.

Tomemos um dos desenvolvimentos mais importantes da matemática do final do século 19 como exemplo: a invenção da teoria dos conjuntos por Cantor. Em resumo, Cantor mostrou que o infinito dos números naturais (ou seja, os inteiros 1, 2, 3… infinitos) é “menor” que o infinito do contínuo (ou seja, todos os números entre 0 e 1). E não é só isso: quando se começa a gerar números infinitos, é possível continuar a fazê-lo… infinitamente. Além disso, os números infinitos não agem exatamente como os números finitos: embora possa parecer que o conjunto de números inteiros ao quadrado (ou seja, 1, 4, 9, …) deva ter muito menos números do que o conjunto de números inteiros (ou seja, 1, 2, 3, …), isso não é verdade; esses dois conjuntos de fato são iguais. Essas demonstrações surpreendentes tiveram um grande custo pessoal – Cantor entrou e saiu de asilos durante toda a sua vida – ao mesmo tempo em que revolucionaram a matemática moderna.

Para Badiou, esse desenvolvimento mostra que – ao contrário de Hegel, que dedicou um grande esforço em sua Ciência da Lógica para provar que o pensamento matemático contemporâneo do infinito em relação ao cálculo era ao mesmo tempo necessário, mas defeituoso em comparação com o da filosofia (o infinito “ruim” versus o infinito “bom”)[19] – a matemática é uma forma de razão pura que, ao contrário das leis da lógica, que também são comparativamente puras, também faz afirmações sobre a existência. Nesse caso, a matemática prova não apenas que o infinito existe, mas que infinitos infinitos existem, sem limite superior. É com essa matemática que podemos ver como um pensamento consistente, mas contraintuitivo, da existência pode ser racionalmente afirmado.

Além disso, esse estado de coisas arruína qualquer conceito consistente de “totalidade”. Com diferentes meios em mãos e fins em mente, o próprio Russell já havia dado uma demonstração lógica disso com seu famoso paradoxo, que pode ser resumido da seguinte forma: o conjunto de todos os conjuntos inclui a si mesmo? Se inclui, não inclui; se não inclui, inclui. O paradoxo mostra que o conceito de “totalidade” é logicamente insustentável; qualquer tentativa de totalização é, portanto, irracional; sendo irracional, trai sua violenta desigualdade. Em suma, para Badiou, em vez de criticar a matemática, a filosofia deve aprender com a matemática e ser condicionada por ela.

Assim, a matemática é ontológica, embora não apenas ontológica. No entanto, por mais impressionantes que sejam suas provas a respeito do infinito, a matemática também banaliza e dessacraliza o infinito. Em vez de Deus ser infinito, como defendiam alguns teólogos católicos medievais, tudo o que existe é, por assim dizer. Ou ainda, o finito deve ser considerado como uma restrição dos infinitos que o precedem, em vez de ser a base do infinito. Além disso, e exatamente por isso, também podemos dizer que o que conta como tecnociência contemporânea é uma ideologia materialmente fundada na redução infinita de nossas infinitas possibilidades de pensamento. Por maiores que sejam os conjuntos de dados, por mais supostamente poderosos que sejam os algoritmos que a Inteligência Artificial emprega atualmente, eles estão exatamente tão distantes do pensamento infinito quanto Anthony Albanese ou Barnaby Joyce; por outro lado, para Badiou, qualquer matemático em atividade já está necessariamente pensando de uma forma que vai além dos poderes de qualquer possível inovação tecnocientífica. Em outras palavras, já temos ideias verdadeiras que estão literalmente em excesso infinito do reinado da tecnociência, das quais a própria tecnociência depende, mas que ela encobre (recouvrement, um termo técnico para Badiou); nossa tarefa é desenvolver essas ideias para combater as extrações alienantes da constrição capitalista da tecnologia, que é essencialmente uma falsidade finitista.

Para ser claro: Badiou não está dizendo que a natureza e a história podem ser expressas simplesmente pela descoberta de suas estruturas matemáticas, o que seria um cientificismo reducionista. Em vez disso, a matemática de campos, limites, conjuntos e assim por diante – uma investigação contínua e complexa demais para ser resumida aqui – revela as estruturas necessárias do real. A matemática moderna surge como um evento histórico, mas os infinitos descobertos devem ser considerados reais e não apenas um produto da investigação. O processo que outras tradições representam como alienação ou reificação é o capitalismo pós-revolução científica se apoderando das tecnologias que a matemática pura possibilita para reordenar o mundo de acordo com sua própria imagem violenta e redutora, ao mesmo tempo em que trabalha para ocultar os verdadeiros poderes da matemática à vista de todos. Nos termos matemáticos mais básicos, o capitalismo está obcecado em garantir a finitude dos indivíduos, das identidades, que ele também busca proliferar e minar. Embora a relação entre a matemática e a ontologia seja “invariante” para Badiou – a matemática “fala o ser” na Babilônia da mesma forma que em Boston –, o aparente domínio da tecnociência sob o capitalismo é um momento histórico específico.

A advertência de Heidegger, a partir da direita, era de que o avanço tecnológico encheria o mundo de técnicas direcionadas a seres e entidades, o que nos faria esquecer a questão do Ser e, portanto, nossa capacidade de existência autêntica. Levada para os Estados Unidos, essa abordagem tornou-se parte da Nova Esquerda e se espalhou globalmente. Ela foi criticada, por sua vez, pelos pós-estruturalistas, que defendiam a prioridade da diferença irredutível e da textualidade. Badiou também critica a noção de Ser de Heidegger, mas não a partir da posição de indeterminação total dos pós-estruturalistas. Em vez disso, ele vê as reivindicações de um absoluto indefinível como o “Ser” que se baseia em modos metafóricos mistos que devem ser combatidos subordinando o privilégio de “corpos e linguagens” aos conceitos tão fortemente construídos pela matemática. O infinito matemático não é um “jargão de autenticidade”, pelo qual Adorno certa vez condenou Heidegger, mas um discurso rigoroso, racionalista e aberto que é ao mesmo tempo mais preciso sobre a existência e mais real.

Portanto, apontar ao excesso constitutivo da matemática sobre as tecnologias que atualmente nos dominam é um sinal de que os materiais e as ideias para uma resistência mais radical à dominação já estão aqui. Pois o que consideramos como “realidade” é apenas uma parte infinitesimal do universo descrito pela matemática, e a primeira está sempre sujeita a ser rigorosamente transformada pela matemática, que pode parecer não apenas inaplicável no momento, mas de fato flagrantemente impossível. Considere o exemplo bem conhecido do número imaginário i, a raiz quadrada de -1 – desdenhosamente nomeada como tal por ninguém menos que o próprio René Descartes – que tem aplicações cruciais na análise de formas de onda e, portanto, em uma variedade surpreendente de campos, incluindo a física quântica e a computação. Em outras palavras, a própria “realidade” é o resultado não apenas do que é possível, mas também do que é (considerado) impossível.

No entanto, nem tudo é matemático; nem tudo pode ser pensado matematicamente; a matemática pode ser universal, mas não pode ser total (como ela mesma prova); há aspectos essenciais da vida em que a matemática não pode chegar ou se mostra inútil. Além disso, para Badiou, a matemática oferece uma forma particularmente rigorosa de necessidade. Ou nos conformamos com suas provas ou a abandonamos completamente. Mas também sabemos que às vezes as coisas acontecem, ou seja, acontecem além de qualquer captura pela matemática. Isso é o que Badiou considera o reino dos eventos, das ocorrências que excedem ou contradizem o que existe, mesmo no âmbito radicalmente expandido do infinito matemático.

Universal, mas nunca total: como Badiou também demonstra em Ser e Evento, dado que a matemática é autodeterminadamente incapaz de pensar as peculiaridades de experiências contraditórias, porém reais e afetivas – ou seja, eventos, sejam eles grandes ou pequenos –, ela precisa ser complementada pela poesia, entendida no sentido mais amplo como invenção artística. Afinal de contas, através de vastos abismos de tempo e cultura, como o próprio Marx notoriamente sustentou, ainda é possível ser dominado pelo drama grego ou pela poesia de Tang. E o pensamento pós-romântico, desde os irmãos Schlegel, passando por Samuel Taylor Coleridge e Ralph Waldo Emerson, até Heidegger, está convencido de que a poesia é um modo de pensamento absolutamente crucial. Pois a poesia oferece uma forma de pensamento que excede o que existe (como dado matematicamente); como tal, ela rompe os mundos em que vivemos com a atualidade de inexistências estranhamente cativantes. Esses inexistentes não podem ser reduzidos a nenhuma categoria de identidade recebida; de fato, eles mostram que todas essas categorias – empíricas, sociológicas, experienciais, etc. – são incapazes de compreender os paradoxos revelados pela arte.

Nesse sentido, a poesia/arte não é uma “ordem” separada simplesmente porque pode recombinar partes da realidade em coisas que não existem – um leão azul, uma estrela falante – mas também porque pode conectar qualquer possibilidade concebível a qualquer outra possibilidade concebível… a possibilidades anteriormente inconcebíveis. Nesse sentido, a arte é sempre um evento, seja escrita, pintada e assim por diante, ao abrir o que o ser nunca poderia produzir por si mesmo. Em outras palavras, tendo começado com o que podemos saber sobre o ser usando a matemática, Badiou volta-se para o que podemos dizer sobre o não-ser usando a poesia. Pois um poema pode ser enigmático, afetivo, inconsistente, menor, pensativo, irracional, tudo ao mesmo tempo e, ao ser capaz de ser assim, ele também apresenta versões de paradoxos incompreensíveis, mas ativos, nos limites do pensamento. A poesia ocupa a zona do não-atual; ela fornece uma sugestão do não-matematizável. Para Badiou, a poesia pode, portanto, ser considerada como uma forma de nos oferecer modelos de como podemos pensar sobre o não-ser ou, mais precisamente, sobre o que não é nem simplesmente ser nem não-ser, nem aparecer nem desaparecer: o evento.

Mas se a matemática pensa em termos de ontologia e a poesia em eventos, Badiou também quer afirmar as reivindicações do amor e da política. O amor em todas as suas formas – eros, ágape, maitri budista e assim por diante – mostra que conexões novas e inesperadas são possíveis entre as pessoas, apesar das divisões que as cercam, de origem, identidade, linguagem e assim por diante, e que algo novo, inesperado, pode ser forjado no mundo por meio do trabalho de amor. O amor é uma terceira ordem necessariamente distinta, separada do ser e do evento: a realidade do amor não pode ser reduzida ou preenchida por nenhum desses elementos, seja qual for a combinação. Além disso, Badiou não vincula o amor a nenhum sentimento ou afeto específico; o amor não designa uma fusão de opostos, um tipo particular ou limitado de prática sexual ou um conjunto heteronormativo. Em vez disso, Badiou enfatiza a luta criativa entre as diferenças que o amor exemplifica. Sua existência prova que podemos e iremos mudar nossas vidas de maneiras antes inimagináveis com base em eventos inesperados e que, ao mudar nossas próprias vidas, também lutamos contra a inércia ou até mesmo a hostilidade do próprio mundo. O crucial aqui é que, para que haja alguma conexão – por mais paradoxal que seja – entre o reino do ser e o não-reino dos eventos, algum tipo de sujeito precisa construí-la. Que melhor imagem de tal sujeito do que um alguém (ou dois alguéns!) apanhado pelas vicissitudes de eros, que sustenta o difícil trabalho de continuar a fazer novas conexões (reais) do que está atualmente separado no mundo?

A política, o quarto campo, é para Badiou exatamente o oposto do que se supõe que ela signifique: a ciência de uma ordem necessária. Isso é chamado de economia. A política não é imediata ou diretamente uma questão econômica de escassez, de oferta e demanda, ou de questões de autoridade e direitos, de constituições e seus mecanismos. Em vez disso, é a disciplina da luta pela igualdade, considerada em suas formas mais radicais. A igualdade é o fim infinito que surge da profunda igualdade estrutural dos seres humanos em nossa forma no mundo; o comunismo é a forma geral dessa igualdade, parcialmente expressa no amor (para Badiou, “o amor é a forma mínima do comunismo”), mas que só pode ser plenamente expressa no registro político, dos vários registros existentes. Assim, Badiou assume os desafios de um pensamento não-hegeliano, pós-marxista e quasi-maoísta do comunismo. Para Badiou, o comunismo é o núcleo de qualquer política verdadeira, mas essa política deve ser separada do que a teoria política normalmente considera “político”. Em vez disso, a luta pela igualdade pode é o único critério para uma ambição política que não apoie o status quo (ou seja, as hierarquias da ordem, a boa governança, a coesão social e assim por diante) e que nem considere, anarquicamente, a fomentação do caos radical um fim em si mesmo.

A história não determina nossas situações, nem a economia ou a tecnologia; na verdade, nada totaliza nossas situações; no entanto, os recursos para que possamos permitir uma transformação radical dessas situações já existem. Nossa tarefa não é assumir o comando nem esmagar o Estado, mas seguir uma linha de pensamento de massas além das restrições (por exemplo, divisões, identidades, demandas) do presente, e não ceder diante das objeções do que já existe. De dentro da tradição comunista, esse é o desafio de Badiou a Marx e aos marxistas. Seu comunismo se afasta do marxismo strictu sensu como controle analítico, principalmente na medida em que o último mantém um compromisso com a totalização (por exemplo, seja do trabalho e da produção ou da revolução estatal realizada). Em uma era que terminou com o colapso da Revolução Cultural da China, a prisão da “Gangue dos Quatro” e a subsequente virada capitalista, as formas de raciocínio político que buscam a determinação de uma situação são exatamente o oposto do que é necessário, que é uma orientação para a possibilidade infinita. Essa política deve ser um trabalho de igualdade universal, de equalização além da história, da economia e do Estado; caso contrário, ela permanecerá presa aos interesses próprios e às afiliações tribais. O ponto em que Badiou difere da afirmação pós-estruturalista das diferenças e dos sujeitos disseminados é precisamente na medida em que todas essas diferenças são, em princípio, transformadas no curso de um processo político num “mesmo” ou “igual” – não como uma redução a uma identidade, mas a construção de uma prática que é “para todos”. Essa construção nunca pode encontrar um fim, pois, sendo infinita, ela não tem fim, mas opera imediatamente “como universalidade subjetiva”[20].

Dada a injunção de Badiou de pensar infinitamente, hoje é possível saber que somos, de fato, infinitos – graças, em parte, aos avanços da própria matemática – e, uma vez afirmado isso, decretar formas até então inimagináveis de igualdade infinita no presente. Significativamente, é exatamente aqui que Badiou se vê como continuador de uma tradição radical do comunismo e, ao mesmo tempo, desfazendo algumas ilusões. A ênfase de Badiou está na continuidade da ação criativa disciplinada. Como ele diz em seu Segundo Manifesto para a Filosofia:

“Duas coisas já estão claras a partir das experiências políticas em andamento que tiraram as consequências da história política do século anterior e têm raízes sólidas na realidade dos trabalhadores e do povo: primeiro, que é possível implementar uma política que mantenha distância do Estado, sem que o poder esteja em jogo nem o parlamentarismo seja sua estrutura, e, segundo, que essa política propõe formas de organização que estão muito distantes do modelo do partido que dominou todo o século XX.” [21]

Esse duplo movimento político – não estatista e organizacionalmente inventivo – significa que as possibilidades do sucesso político não são mais definidas pela tomada do poder, mas pela disciplina igualitária contínua de uma organização preocupada em agir de acordo com o desafio de eventos como as Comunas de Paris ou Xangai, outubro de 1917 ou a Revolução de Agosto. Badiou rejeita totalmente a ideia de que a política se trata de regimes melhores ou piores, de melhorismo ou gerenciamento. Como ele afirma no início de Ser e Evento, não podemos mais nos satisfazer, na atual conjuntura, com práticas de crítica, revolução ou retorno. Em termos de libertação, essas práticas podem ser vistas como concluídas. Tampouco podemos nos satisfazer com teorias que consideram a política sujeita à necessidade ou a um determinismo de qualquer tipo.

É por isso que o conceito de evento é tão importante para Badiou: os eventos, por mais ambíguos que sejam, por mais mínimos que sejam, oferecem uma possibilidade de ação que não está totalmente sujeita à necessidade, por mais ambivalentes que sejam suas consequências. Badiou não está, de forma alguma, oferecendo um mero manual estratégico para os radicais. Seu argumento, extraído do colapso da política existente no final do século XX, é que é absolutamente essencial repensar as estruturas históricas e mundiais. Não só é preciso entender que os quatro campos de Badiou não são arbitrários – como às vezes se supõe –, mas processos necessários de pensar e agir no mundo, como também é preciso entender que se ater a teorias radicais herdadas é absolutamente prejudicial à possibilidade radical.

A importante é não substancializar o evento. Observei acima que Badiou toma a poesia como modelo para o evento: isso não é para fazer da poesia um modelo para a política, mas sim para enfatizar que todos os eventos têm essa natureza precária, surpreendente, contraditória e de desaparecimento. Permanecer fiel – um termo-chave de Badiou – ao que os eventos que desaparecem revelaram é, portanto, trabalhar no mundo guiado por perguntas como: “se esse evento que me compele foi de fato real, o que isso significa para essa luta local que está ocorrendo agora?” Estar em um processo de verdade, para Badiou, é uma ação de questionamento interminável de como se deve agir – o que, à medida que é feito, necessariamente tem efeitos no mundo e sobre ele.

No entanto, Badiou insiste que ainda é um materialista de algum tipo, ou melhor, um proponente de uma “dialética materialista” contra o que ele vê como o degradado “materialismo democrático” de nossos tempos. Que tipo de materialismo poderia ser esse? Afinal, a grande trajetória da filosofia e da teoria no século XX tem sido argumentar que as categorias filosóficas ideais são expressões de processos materiais, físicos e atuais, desde a construção fenomenológica de Husserl da matemática complexa como desenvolvimentos sucessivos de uma geometria fundamentada no mundo até o desenvolvimento de Sohn-Rethel da noção de Marx da mercadoria como uma “abstração real”, a fim de criar uma teoria mais ampla da abstração conceitual como decorrente de relações abstratas reais.

A resposta de Badiou a isso é que o infinito não é uma abstração; em vez disso, é o finito que é uma abstração. Como tal, ele às vezes prefere o termo “subtração”, já que as verdades se subtraem e não podem ser totalmente capturadas pelas operações de identidade de qualquer mundo em que surjam. Badiou também não acredita que as abstrações conceituais surjam de relações abstratas reais; afinal, ele acha que o que chamamos de “realidade” é um resultado restrito dos processos materiais mais fundamentais que são as verdades. E os vários exemplos que ele dá de tais verdades-eventos – seja o desenvolvimento da teoria dos conjuntos por Cantor, o ativismo da Comuna de Paris, os experimentos extraordinários da poesia de Mallarmé ou sua análise da questão do amor – são todos precisamente direcionados a mostrar que tais verdades têm um efeito radical sobre o próprio real.

Como eu disse em outro lugar, a filosofia de Badiou é uma filosofia CAAP: A Ciência, o Amor, a Arte e a Política são todos necessários para que haja qualquer filosofia.[22] Elas são as verdades às quais a filosofia deve atender. Se elas se cruzam, se afetam, às vezes até rivalizam ou tentam dominar umas às outras, como certamente acontece, esse aspecto ôntico das verdades não impede que a filosofia reconheça e tente capturar suas irredutibilidades umas em relação às outras em um conjunto de ideias articuladas. Como tentei sugerir acima, essas ideias não são algo que simplesmente surge em sua cabeça. Uma ideia não é apenas uma opinião, não é apenas uma observação interessante, não é apenas um predicado ou um significante principal que supostamente constitui a realidade. Em vez disso, uma ideia é uma nova organização material do que existe na situação em que se vive, fundando um trabalho infinito em princípio que, ao ser finitamente realizado aqui e agora, transforma totalmente essa situação. Em seus dois grandes livros subsequentes – Lógica dos Mundos (2006) e Imanência das Verdades (2018) [23] – Badiou leva esses pensamentos ainda mais longe, baseando-se em descobertas recentes da lógica matemática para fazer isso.

Badiou declara com frequência que, embora agora saibamos que o universo em si é finito e que todos os esforços humanos terminarão em pó e cinzas, participar de um processo de verdade nunca deixará de valer a pena. Por mais fraca que seja, por mais transitória que seja, por mais comprometida que seja a nossa situação, a filosofia ordena que os seres humanos “vivam como imortais”. As ideias de ação que nos são dadas pelos processos de verdade que são a ciência, o amor, a arte e a política nos mostram que isso é possível. Então, por que não tentar? Para reformular um pouco uma das grandes linhas d’A Internacional: “não somos nada, sejamos infinitos.”

(*) Tradução de Raul Chiliani


[1] Veja, entre outros, o livro com esse nome: Alain Badiou, The Communist Hypothesis, D. Macey e S. Corcoran (trans.), Londres e Nova York: Verso, 2010.
[2] Niilo Kauppi, French Intellectual Nobility: Institutional and Symbolic Transformations in the Post-Sartrian Era, Albany: State University of New York Press, 1996.
[3] Agora publicado em inglês como Louis Althusser et al., Reading Capital: The Complete Edition, Ben Brewster e David Fernbach (trans.), Londres: Verso, 2016.
[4] As transcrições das entrevistas de TV de Badiou foram publicadas em inglês como Badiou and the Philosophers: Interrogating 1960s French Philosophy, Giuseppe Bianco e Tzuchien Tho (trans.), Londres: Bloomsbury, 2013.
[5] Badiou, The Communist Hypothesis (A Hipótese Comunista), pp. 88-89.
[6] Veja a extraordinária reconstrução das lutas políticas cotidianas de Badiou por Bryan Cooke e Robert Boncado em ‘“Long live the International Proletariat of France!”: Alain Badiou and the SONACOTRA Rent Strike 1975-1979”, Philosophy Today, 62(4), 2018, pp. 1139-1163 e seu ”1967: The Shanghai Commune, French Maoism & the Case of Alain Badiou”, Australia and New Zealand Journal of European Studies, 9(3), 2017, pp. 68-84.
[7] Veja os textos agora publicados como The Red Years (Londres: Bloomsbury Academic, 2017). Se me permitem um pouco de ressentimento antípoda: apesar do aviso de que esses textos estavam “até agora indisponíveis em inglês”, a reimpressão da editora local de Melbourne já havia disponibilizado The Rational Kernel of the Hegelian Dialectic (2011), bem como outros textos de Badiou. Talvez também valha a pena observar que uma das principais inovações althusserianas foi a negação de que o marxismo estivesse em dívida com o hegelianismo: para o marxismo, a ruptura com a ciência veio com a supressão dos resíduos da hegeliana.
[8] Alain Badiou et al., The Rational Kernel of the Hegelian Dialectic: Translations, introductions and commentary on a text by Zhang Shiying, Tzuchien Tho (ed. and trans.), Melbourne: re-press, 2011, pp 64-65.
[9] Alain Badiou, Theory of the Subject, Bruno Bosteels (trans.), Londres e Nova York: Bloomsbury, 2009, p. xl.
[10] Alasdair C. MacIntyre, Against the Self-Images of the Age: Essays on Ideology and Philosophy, Notre Dame: University of Notre Dame Press, 1971.
[11] Uma versão em inglês está disponível em Alexandre Kojève, Introduction to the Reading of Hegel, Raymond Queneau e Allan Bloom (eds.), James H. Nichols (trans.), Nova York: Basic Books, 1969. O feminismo, o decolonialismo, a sociologia e a filosofia franceses foram moldados pela influência de Kojève em pensadores como Beauvoir e Fanon, Aron e Merleau-Ponty.
[12] Consulte Luis J. Pedrazuela (ed.), Alexandre Kojève: A Man of Influence, Lanham: Lexington Books, 2022 e Jeff Love, The Black Circle: A Life of Alexandre Kojève, Nova York: Columbia University Press, 2018.
[13] Veja, entre outros, Bruce Baugh, French Hegel: From Surrealism to Postmodernism, Nova York: Routledge, 2003, e Michael S. Roth, Knowing and History: Appropriations of Hegel in Twentieth Century France, Ithaca: Cornell University Press, 1988. E, para que não nos esqueçamos, o primeiro livro de Judith Butler foi exatamente sobre esse tópico: Subjects of Desire: Hegelian Reflections in Twentieth-Century France, Nova York: Columbia University Press, 1987.
[14] Consulte Alain Badiou e Jean-Claude Milner, Controverse: Dialogue sur la Politique et la Philosophie de Notre Temps, Paris: Seuil, 2012, p. 174.
[15] Jacques Derrida e F.C.T. Moore, ‘White Mythology: Metaphor in the Text of Philosophy”, New Literary History, 6(1), 1974, p. 11.
[16] Para mais detalhes sobre isso, veja meu artigo “Badiou, Hegel and the Thinking of Modernist Thought-Action” em Arka Chattopadhyay e Arthur Rose (eds.), Understanding Badiou, Understanding Modernism, Londres: Bloomsbury, 2024, pp. 37-49.
[17] Alain Badiou, Being and Event, Oliver Feltham (trans.), Londres e Nova York: Continuum, 2005.
[18] Theodor W. Adorno, “The Meaning of Working Through the Past”, em Critical Models: Interventions and Catchwords, Lydia Goehr (intro.), Henry W. Pickford (trans), Nova York: Columbia University Press, 2005, p. 90.
[19] Ver G. W. F. Hegel, The Science of Logic, George di Giovanni (ed. e trans.), Cambridge: Cambridge University Press, 2010, passim, por exemplo, pp 108-125; 204-234.
[20] Alain Badiou, Metapolitics, Jason Barker (trans.), Londres: Verso, 2005, p. 143.
[21] Alain Badiou, Second Manifesto for Philosophy, Louise Burchill (trans.), Cambridge: Polity, 2011, pp. 122-123.
[22] Veja Justin Clemens, “Had We But Worlds Enough, And Time, This Absolute, Philosopher…”, Cosmos and History, 2(1-2), 2006, pp. 277-310.
[23] Apenas para registro, Logics of Worlds (Alberto Toscano (trans.), Londres: Continuum, 2009), tem 617 páginas em inglês e Immanence of Truths (Susan Spitzer e Kenneth Reinhard trans., Londres: Bloomsbury, 2022) 612 páginas.

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