Ciência e Historia

Era uma vez uma estrela no céu

Podemos dizer com bastante certeza que a nossa vontade de dialogar com os céus através das estrelas, próximas de divindades detentoras de poderes que não controlamos, mas que queremos favoráveis, remonta à Pré-História

Os três Reis Magos, mosaico bizantino na Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena, Itália. Créditos: Wikimedia Commons
Os três Reis Magos, mosaico bizantino na Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena, Itália. Créditos: Wikimedia Commons

“Era uma vez…” é uma rubrica quinzenal sobre Ciência e História, assegurada pela arqueóloga Sara Cura.

O Natal termina no dia 6 de janeiro, com o dia de Reis. Conta o evangelho de S. Mateus que uma estrela, a estrela de Belém, brilhava intensamente no céu anunciando o nascimento de Jesus. O astro terá guiado os reis Magos até este outro rei, recém-nascido algures na Terra Sagrada, não muito longe de Jerusalém. Mas será que essa estrela existiu mesmo? Ou terá sido outro fenómeno astronómico?

Estas são questões que há muito ocupam estudiosos, desde uma perspectiva religiosa ou histórica, mas também científica. Relacionar a narrativa bíblica com eventos históricos é um campo complexo de estudo, que atrai interesse, muitas vezes apaixonado, dentro e fora do meio académico. E nesta discussão da Estrela de Belém há, claro, os crentes e os não crentes, mas o ponto não é legitimar ou desmentir a Bíblia, é antes estudar da forma mais imparcial possível os dados históricos e astronómicos em torno desta menção no Evangelho de S. Mateus.

A relação entre nós, humanos, e as estrelas é, no entanto, bem mais antiga do que a época do relato do nascimento de Jesus Cristo. Uma longa e rica história de relações e interpretações cósmicas, de natureza ritual, mitológica, filosófica e religiosa, com muita reverência, superstição e poder divinatório (ainda hoje a astrologia é tida, para muitos, como verdadeira), precede os olhares de Galileu ou Kepler em direção ao céu estrelado.

Podemos dizer com bastante certeza que a nossa vontade de dialogar com os céus através das estrelas, próximas de divindades detentoras de poderes que não controlamos, mas que queremos favoráveis, remonta à Pré-História. A que momento preciso da Pré-História? Não é possível afirmar com certeza.

Há quem a veja nas famosas pinturas de Lascaux, sugerindo que uma mancha de pontos pretos por cima de um dos muitos auroques ali pintados, é uma representação das Plêiades que os caçadores paleolíticos veriam com enorme clareza nos céus noturnos de há quase 20 000 anos.

Pormenor das Pinturas da Gruta de Lascaux, c. 19 000 anos, França Créditos: Wikimedia Commons
Pormenor das Pinturas da Gruta de Lascaux, c. 19 000 anos, França Créditos: Wikimedia Commons

Contudo, esta é uma sugestão altamente controversa. O que já não é controverso é a evidente relação entre as paisagens celestes e as comunidades neolíticas de há, pelo menos, 5 000 anos. Neste tempo de agricultores e pastores, mas também construtores de arquiteturas que rasgavam o território, a ligação entre o céu e a terra é inequívoca.

Desde logo com o Sol que tem uma importância simbólica, porventura religiosa, dominante. Isso é evidente numa grande variedade de expressões artísticas, parietais e móveis, e nas decorações de recipientes cerâmicos. No Neolítico, o Sol e outras estrelas tinham também uma influência determinante nas arquiteturas, funerárias e não só, que marcavam e organizavam as paisagens.

Vaso com motivos solares e lunares proveniente do Sepulcro 2 do recinto dos Perdigões. Créditos: Programa Global de Investigação dos Perdigões, Era Arqueologia S.A.
Vaso com motivos solares e lunares proveniente do Sepulcro 2 do recinto dos Perdigões. Créditos: Programa Global de Investigação dos Perdigões, Era Arqueologia S.A.

Há mesmo um ramo da arqueologia, controverso e nem sempre consensual, a Arqueoastronomia, que se dedica a estudar a relação dos povos antigos com objectos e fenómenos celestes, que teve a sua origem precisamente no estudo de padrões das direções preferenciais de construções funerárias que representariam alinhamentos astronómicos, com o Sol e os seus equinócios, e demais estrelas.

Mesmo que o primeiro pensamento sobre este tema provavelmente vá para Stonehenge, não precisamos de sair de Portugal para encontrar sinais desta milenar relação, tanto nas serras, como nas planícies.

Em plena planície alentejana, nos arredores de Monsaraz, encontra-se o recinto de fossos dos Perdigões, um impressionante sítio cerimonial, com uma longa ocupação de 1400 anos entre 5400 e 4000 anos antes do presente.

Com uma área de cerca de 16 hectares, os Perdigões, com as suas inúmeras fossas, fossos, sepulcros e vestígios de um impressionante recinto central de madeira, localizam-se num anfiteatro natural virado para o Sol, enquadrando assim todo o seu horizonte entre os solstícios ao nascer do sol. Para António Valera, arqueólogo e coordenador científico das investigações, a linha do horizonte deste local seria um autêntico calendário solar. Acresce que nela, a elevação de Monsaraz está numa relação de 90 graus com o recinto, marcando desta forma os equinócios. Assim, desde o interior do recinto o nascimento do sol seria visível durante todo o ano, levantando-se todos os dias no horizonte para onde se abre o anfiteatro, também todos os dias descia nas suas costas. Dificilmente se entenderá este sítio, e o que ele representaria simbolicamente para as comunidades que agregava de forma cerimonial, mas também social e económica, sem considerar a sua localização precisa, estando esta profundamente ligada aos ciclos da nossa estrela mais próxima.

Recinto dos Perdigões. Créditos: Programa Global de Investigação dos Perdigões, Era Arqueologia S.A.
Recinto dos Perdigões. Créditos: Programa Global de Investigação dos Perdigões, Era Arqueologia S.A.

Mais a norte não há como escapar à imponente Serra da Estrela, agora, tal como no passado. A estrela, no caso, poderá ser Aldebarã e também brilhava nos céus de há 4 mil anos.

Fábio Silva, formado em Astrofísica e com diversos trabalhos em Arqueoastronomia, debruçou-se sobre os conjuntos de monumentos megalíticos da região do Mondego, e identificou um padrão de orientação destas construções funerárias com a Serra da Estrela. A questão arqueoastronómica seria, portanto, qual o evento que poderia ocorrer no intervalo dos azimutes medidos nestes monumentos?

Ora, recuando à época da construção destes monumentos, a estrela de Aldebarã nasceria exatamente nesta faixa do horizonte. Esta estrela, cuja primeira aparição é de madrugada, imediatamente antes do Sol, tinha um período em que não era visível, após o qual tinha o seu nascimento heliacal em finais de abril e início de maio. Tendo estas comunidades neolíticas uma economia muito baseada na pastorícia, o que é normal numa geografia montanhosa, o investigador avança a ideia de que o nascimento heliacal de Aldebarã poderia ter sido um marcador temporal do movimento cíclico dos rebanhos para pastagens mais altas. O ritmo da terra e o ritmo do céu estariam assim juntos na expressão simbólica e ritual das construções funerárias destas comunidades.

Se é então certo que as estrelas teriam uma importância maior desde a Pré-História, não acharemos, portanto, estranho que uma estrela seja também protagonista de uma das mais marcantes histórias da Humanidade.

E voltamos, então, à pergunta inicial: poderia ou não ter havido uma estrela a guiar Baltazar, Gaspar e Belchior? E era uma estrela ou outro fenómeno astronómico?

Não há resposta definitiva, lamento dizer. Há, no entanto, algumas hipóteses.

Sendo mais fracas as ideias de que poderia ter sido um cometa, uma supernova ou um meteoro, a ideia com mais probabilidade histórica e científica é a de que poderia ter sido uma conjunção de dois planetas. As conjunções ocorrem quando dois objectos estelares (por exemplo, os brilhantes Júpiter e Saturno), se aproximam no céu noturno da Terra. Na realidade estão longe de estar perto um do outro, no entanto, de onde os vemos eles parecem estar – e com um brilho muito intenso.

A ideia de que uma conjunção entre estes planetas brilhantes poderia explicar a Estrela de Belém não é nova. Uma nota nos Anais da Abadia de Worcester, datada de 1285 d.C., menciona um alinhamento de Júpiter e Saturno que teria acontecido na época do nascimento de Jesus. E o próprio Johannes Kepler explorou essa ideia no século XVII. De facto, há evidências astronómicas de que houve algumas conjunções planetárias em torno da data historicamente aceite como a do nascimento de Jesus.

Uma hipótese sugere que uma conjunção de Júpiter e Saturno pode ter ocorrido em abril do ano 6 a.C. Esta, por vários motivos, entrelaça-se na narrativa histórica. Em primeiro lugar, porque ocorreu nas primeiras horas da manhã, e a descrição da Estrela de Belém é a de uma estrela matutina. Além disso, conta o evangelho, que os Magos a perderam temporariamente de vista, para depois encontrá-la indicando o local onde estava Jesus. Tal pode ser explicado pelo movimento retrógrado de Júpiter, que cria a ilusão de mudança de direção no céu noturno quando a órbita da Terra o ultrapassa.

Terá sido assim? Não sabemos ao certo e a pergunta permanece. A verdade é que, no que à Estrela de Belém diz respeito, nem a história nem a ciência podem, por enquanto, desvendar a sua existência. Mas nem as estrelas terão deixado de brilhar no céu há dois mil anos, nem o Natal terá por isso, todos os anos, menos magia.

Por Sara Cura

Biografia do autora: Sara Cura é arqueóloga e investigadora em Pré-História com trabalho desenvolvido em Museologia, Património Cultural e Gestão do Território. Lecionou Arqueologia no Instituto Politécnico de Tomar (2003 –2019) e trabalhou no Museu de Arte Pré-Histórica de Mação (2003-2020). Integrou e integra projetos de investigação internacionais e é autora/co-autora de publicações científicas. Como comunicadora de ciência desenvolve o Podcast Let’s Rock -um podcast da Idade da Pedra e é cronista de Ciência e História no jornal mediotejo.net. Atualmente é Gestora de Ciência na Escola Superior de Comunicação Social/ Instituto Politécnico de Lisboa.

Fonte: Independent Media InstituteEste artigo foi produzido pela mediotejo.net (https://mediotejo.net/era-uma-vez-uma-estrela-no-ceu/) e o autor colabora com a Human Bridges