Milei: o choque de realidade

Javier Milei - Foto: Bloomberg/Erica Canepa
Javier Milei - Foto: Bloomberg/Erica Canepa

Por Aram Aharonian, no Other News | Tradução: Rôney Rodrigues

Alheio aos interesses, anseios e sofrimentos de 46 milhões de argentinos, o governo do presidente Javier Milei mais uma vez se chocou com a realidade e contra a sua própria arrogância. A greve geral de 8 de maio, após a gigantesca marcha dos estudantes contra a privatização da educação, e a deriva da Lei Ônibus no Senado anunciaram um ponto de inflexão no respaldo que o libertário teve até agora.

O colapso da economia traduziu-se numa tragédia social e transformou o país que era o celeiro do mundo no único da região que cai continuamente enquanto os seus vizinhos crescem. A Cepal informou que a queda do PIB argentino este ano será superior a três pontos, o mesmo valor do crescimento dos países vizinhos, como o Brasil.

Duas questões desequilibraram o governo: liberou preços e tarifas, mas teve que recuar nas contas pré-pagas e nas tarifas de energia em geral, para as quais teve que postergar os últimos aumentos. A ruptura da decisão irredutível que tinha sustentado para não intervir nos preços foi o marcador da outra ruptura, a da sua credibilidade.

O movimento operário enfrentou o governo com a segunda greve geral em cinco meses de governo, numa altura em que o seu apoio se desfazia nas classes médias e no setor empresarial, que estava cheio de alarmes sobre o preço da eletricidade, da água, gás e rendas. Não há luz no fim do túnel: tudo parece obscuro.

Cinco meses se passaram e agora Milei não pode usar o que realizou para alimentar a épica de sua grande adaptação. “Fizemos”, disse ele, “o maior ajuste na história da humanidade” e vangloriou-se da sua bravura ao afrontar os protestos. Mas a imprensa internacional já não fala das suas “proezas”, mas sim das suas falácias e fracassos.

Falácias e ficções

A disseminação de falácias xenófobas e econômicas por parte de Milei e do seu exército de bots reflete a tendência para o autoengano daqueles que ganham o poder. Milei orgulha-se dos aplausos pelas suas intervenções em fóruns internacionais de extrema direita que a sua equipe de comunicação descreve como uma reunião com grandes investidores. Mas suas turnês, que chamam a atenção mais pela pirotecnia do que pela lucidez, não renderam um único dólar ao país, mas sim despesas avultadas para suas comitivas alegres e turísticas.

Aproveitou a memória da revolta do gueto de Varsóvia (8 de maio de 1943) para tentar confundir um feito de valor universal com a sua pretensão particular. Ao seu apelo para “tomar partido (como) uma obrigação moral”, uma frase que fora do contexto pode ser tão nobre quanto ambivalente, ele acrescentou a sua oferta para presidir a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto.

Na Fundação Milken, nos Estados Unidos, ele pediu: “Ajudem-me, vocês que são a encarnação do progresso humano, que fará da Argentina a nova Roma do século XXI”. Michael Milken fez fortuna no setor financeiro na década de 1980, apostando nos chamados “títulos podres”, ou seja, ativos financeiros de qualidade e solvência duvidosas, e cobrando comissões enormes para colocá-los no mercado.

O excedente fiscal é fictício, construído com base em incumprimentos e em privações sociais e regionais insustentáveis. O nível e a estabilidade do dólar oficial são fictícios, sustentados com base na recessão, na postergação de pagamentos de importações e em fraudes especulativas transitórias de curto prazo. Portanto, o nível de reservas “acumuladas” apresentado pelo governo também é fictício.

E também é fictícia a estabilização dos preços, que por enquanto é apenas uma redução da velocidade do seu aumento, forçada pela forte contração do mercado interno, pela queda da procura e pela artificialidade da âncora cambial. Toda esta ficção só é sustentada pela condescendência dos poderes econômicos locais e dos seus meios de comunicação com um governo que lhes prometeu uma enorme piñata empresarial.

Depois dos seus ataques e das grotescas desqualificações dos governantes democráticos progressistas da região, a BBC britânica disparou a sua análise na realidade. Intitulou sua nota sobre a Argentina de “Carne, leite e erva-mate: as quedas históricas no consumo argentino (e como aumentaram as exportações desses produtos)”. Parece que em Londres, apesar do nevoeiro, estão enxergando a realidade.

Na Espanha não ficaram surpresos com uma de suas falácias. Braço direito de Adolf Hitler, a frase principal de Joseph Goebbels era “Mentira, mentira, mentira, algo permanecerá, quanto maior for uma mentira, mais as pessoas acreditarão nela”. A inclusão de dados biográficos falsos sobre Javier Milei na edição espanhola do seu livro O caminho do libertário levou o Grupo Editorial Planeta a decidir retirar os exemplares do mercado.

Na aba do livro, Milei afirma ser graduado pela Universidade de Buenos Aires e ter feito doutorado na Califórnia. Mata Hari já disse: a vida é sempre um pouco mais fácil se deixarmos de lado a verdade. Milei e o seu gabinete de desinformação e propaganda não gostaram de ser descobertos e intensificaram a disseminação de falácias xenófobas e econômicas sobre Espanha, razão pela qual não há um bom clima para receber o presidente argentino na Espanha, onde viaja para se encontrar com a extrema direita do Vox.

Deputados progressistas e grupos de residentes argentinos apelaram ao repúdio à visita de uma figura que nega os crimes do regime de Franco, o genocídio de Netanyahu contra o povo palestino, bem como as mortes e desaparecimentos da ditadura civil-militar da Argentina.

O governo de Javier Milei já tinha tomado consciência de que o combustível que poderia atear fogo às suas reivindicações era a classe média, que foi quem consolidou a sua vitória no segundo turno. A indignação de um setor da classe média levou a extrema direita a reverter o aumento dos medicamentos pré-pagos.

E agora ouviu o silêncio – politicamente ensurdecedor – de uma nova greve geral: não só a classe média, mas também os trabalhadores deixaram claro que “o país não está à venda”. Os trabalhadores já disseram basta! e se põem a marchar…

A Lei de Bases

A comunidade empresarial do “círculo vermelho” digital e financeiro internacional aguarda a possível aprovação do megaprojeto de lei de bases no Senado, especialmente para o Regime de Incentivos aos Grandes Investimentos (RIGI), um marco legal para a fuga de moeda sem controle e lucro à custa da apropriação privada dos recursos do país.

O contraponto é a reforma trabalhista e previdenciária, que envolve a consolidação de uma brutal transferência de renda do bolso dos trabalhadores e aposentados, a destruição da rede de pequenas e médias empresas e a legalização da informalidade trabalhista, que “vai aprofundar o grave quadro de pobreza estrutural e indigência que assola a nossa comunidade”, como apontaram as centrais sindicais.

O que acontece depois da Lei de Bases com a atual formação do governo? Será que se a lei cair haverá mudanças de gabinete? No governo acreditam que por trás da pressão por demissões de alguns ministros está a figura do ex-presidente neoliberal Mauricio Macri, líder da Proposta Republicana (PRO), com uma grande bancada parlamentar, que já rejeitou a ideia de um “co-governo”.

Uma pesquisa realizada pelo cientista político Pablo Javier Salinas mostra que o governo Milei, desde que assumiu o cargo, a cada seis dias um alto funcionário renunciou. Segundo o jornal conservador La Nación, depois de mais de cinco meses de governo, 16% dos cargos de gabinete ainda precisam ser nomeados e 63% dos gabinetes do Estado Nacional não foram completados.

O governo dos Irmãos Milei – o protagonismo de Karina, a irmã, continua a crescer em detrimento de “Vamos fazer com que Milei conheça a realidade de Misiones”, dizem ministros e políticos do anarcocolonialismo (definição do ex-presidente Cristina Kirchner). Já se resignou ao fato de o Congresso não sancionar a Lei de Bases antes de 25 de maio, dia em que pretende reunir-se com alguns governadores nos Tribunais de Córdoba, para assinar um decálogo de generalidades que chama de Pacto de Maio, a base daquilo que ele descreveu como um novo contrato social.

A verdade é que alguns destes princípios condenariam o país à estagnação definitiva e outros exigiriam maiorias legislativas que neste momento estão fora do alcance do governo, enquanto o ministro do Interior Guillermo Francos e a “irmã presidencial” negociam com diferentes blocos do Senado a introdução de alterações que permitam a sanção geral do projeto.

Analistas locais apostam em quanto tempo durará o governo, uma vez que conseguiu fazer com que as classes média e trabalhadora (e desempregadas) abandonassem o canto da sereia e acordassem para a dura realidade. Existe um futuro? Por enquanto, há um apagão no fim do túnel.

ARAM AHARONIAN

Aram Aharonian é jornalista e comunicólogo uruguaio. Diretor de SURySUR. Mestre em Integração. Fundador da Telesur. Preside la Fundación para la Integración Latinoamericana (FILA) e dirige o Centro Latinoamericano de Análisis Estratégico (CLAE, www.estrategia.la)

Publicado em Outras Palavras

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Equipe de jornalistas do Jornal DC - Diário Carioca

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