Equivocada associação entre cassinos e crime organizado e a importância de um marco regulatório

No debate público sobre a legalização e regulamentação dos jogos de fortuna no Brasil, revigorado especialmente durante a apreciação e aprovação do Projeto de Lei nº 442, de 1991

No debate público sobre a legalização e regulamentação dos jogos de fortuna no Brasil, revigorado especialmente durante a apreciação e aprovação do Projeto de Lei nº 442, de 1991, pela Câmara dos Deputados, um dos argumentos mais utilizados foi o de que a abertura desse mercado no Brasil poderia levar à proliferação do crime organizado.

Esse argumento apenas reproduz o senso comum de que a operação de jogos, em especial cassinos, tem relação com o crime organizado e favorece, de algum modo, a atuação de grupos criminosos locais e internacionais. Essa percepção acaba sendo fruto do que se vê em filmes, novelas, livros e de uma má compreensão da história de um dos mais conhecidos polos de jogos de fortuna no mundo: Las Vegas.

Uma breve análise da trajetória dos jogos demonstra que essa associação entre jogos e crime é ultrapassada, e, nos Estados Unidos, foi superada há mais de 70 anos, justamente com a edição de uma legislação específica sobre os jogos — a solução que, nesse momento, está nas mãos do Senado Federal.

Antes da década de 1950, a operação de cassinos e jogos de fortuna nos Estados Unidos era, de fato, majoritariamente realizada pelo crime organizado. Diversos grupos exploravam loterias ilegais, instalavam pequenos cassinos em restaurantes e casas noturnas, fomentavam casas de apostas e, muitas vezes, utilizavam esses empreendimentos para lavar dinheiro.

No estado de Nevada — que é onde se situa Las Vegas –, os primeiros cassinos foram instalados e construídos pelo crime organizado. Esses estabelecimentos não estavam submetidos a qualquer tipo de fiscalização e, consequentemente, operavam os jogos de maneira desonesta, muitas vezes atrelados a outras atividades ilícitas.

A percepção desse movimento, naquela época, alcançou os representantes do Governo Federal dos Estados Unidos. Preocupado com a situação, o Governo Federal orquestrou uma intervenção aos cassinos instalados em Nevada, a fim de coibir a atuação das organizações criminosas, e até se cogitou, à época, proibir a operação de jogos de fortuna no estado.

A questão é que os cassinos já apresentavam notória importância para a economia e turismo locais, atraindo visitantes e jogadores de outros estados e países com a indústria de jogos. A cidade já era conhecida por sua diversidade de cassinos, espetáculos artísticos e como um polo de entretenimento nacional e mundial. Os cassinos movimentavam e fomentavam a economia da cidade de Las Vegas e do estado de Nevada, com empregos, desenvolvimento econômico, aumento da tributação e forte turismo.

A ameaça de intervenção federal para coibir as práticas ilícitas atreladas aos cassinos gerou uma relevante indagação ao Governo Estadual de Nevada: como mitigar as preocupações em âmbito nacional sobre a operação de jogos pelo crime organizado e, ao mesmo tempo, preservar o proveito econômico e turístico decorrente desses empreendimentos?

A solução do governo de Nevada foi a adoção de políticas regulatórias de fiscalização e controle do setor, para coibir as práticas ilícitas do crime organizado e assegurar a exploração honesta e transparente dos jogos. Ou seja, em lugar de simplesmente proibir, a solução escolhida foi regular, supervisionar e controlar a atividade.

Para que isso fosse possível, o Estado de Nevada mapeou todos os fatores e brechas que atraíam o crime organizado para os cassinos e criou regras e mecanismos de controle para eliminar esses atrativos ao crime. A legislação criada obrigou a adoção de parâmetros e regras que conferiram honestidade, transparência e, principalmente, confiabilidade aos jogos de Las Vegas. Com isso, o crime organizado acabou sendo expurgado dos cassinos de Las Vegas, o que evitou a tão temida intervenção federal.

Além de afastar esse risco de intervenção, os representantes do estado de Nevada perceberam que a regulação dos jogos foi benéfica também para o desenvolvimento econômico e turístico local. A percepção de que os jogos lá operados são honestos e seguros aumentou o público dos cassinos, os investimentos privados e o desenvolvimento da indústria de jogos, o que maximizou os benefícios desse setor à economia.

Essa breve retrospectiva sobre o “antes” e o “depois” da regulamentação dos jogos, ocorrida na década de 1950 em Las Vegas, é uma evidência histórica incontestável de que a associação entre jogos de fortuna e a proliferação do crime organizado é um mito, só sendo possível onde essa atividade econômica é marginalizada e indiscriminadamente proibida.

A partir da experiência do Estado de Nevada, é evidente que a aprovação de um marco regulatório sério e consistente para os jogos no Brasil teria o efeito absolutamente oposto ao do imaginário popular: em lugar de favorecer a atuação do crime organizado, a lei criará meios para combater a prática de ilícitos, para garantir que o jogo seja praticado de forma honesta, confiável e responsável.

Está, portanto, nas mãos do Senado Federal a oportunidade de “virar o jogo”, aprovando o Projeto de Lei nº 442, de 1991.

*Filipe Senna é advogado, especialista em Direito dos Jogos, mestrando em Direito pelo IDP e sócio do Jantalia Advogados