Eunice Paiva não vestiu o papel de vítima, mas não há outra expressão que caracterize melhor o que passou sua família durante a ditadura de 64 – e o que passaram centenas (?) de pessoas que ousaram discordar ou simplesmente não tiveram lá muita sorte (e convenhamos, numa ditadura, regime de poucos para poucos, sorte é algo bem restrito). Revolvendo as próprias memórias, cruzando as informações, o passado mais e menos remoto com o presente, seu filho Marcelo Rubens Paiva cria “Ainda estou aqui”, o livro que deu origem ao filme.
No tempo de escrita do livro, Eunice já vivia com Alzheimer e sua família estava lidando com a presença de uma nova mãe, dependente, frágil e alheia à realidade, num contraste incomensurável com o que havia sido.
Trançando memórias, Marcelo nos apresenta a mudança brusca de realidade econômica/social que viveu a partir da prisão e desaparecimento do pai, Rubens Paiva, enquanto desfila as Eunices que surgiram ao longo da vida. A Eunice-jovem, com sangue (e apenas sangue) italiano, a Eunice-esposa-de-deputado ou esposa-modelo, a Eunice-mãe, a Eunice-viúva, a Eunice-advogada até essa Eunice atual, completamente diversa das outras.
Em meio às suas próprias memórias, suas histórias da juventude, por vezes percebe-se uma queixa do autor quanto à Eunice-mãe não performar a italianice da qual descendia, não ser calorosa na medida que gostaria mesmo que o tenha apoiado e cuidado dele ao longo da vida. Eis um momento de filho sendo filho, um respiro, porque a realidade impunha a inversão de papeis e o autor já era cuidador legal da mãe.
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É possível dizer que memória seja o eixo do livro, tanto as memórias resgatadas quanto as perdidas, mas o tema central mesmo é gente, é Eunice, que vive e ainda está mesmo não sendo como costumava ser. Durante a narrativa, acaba-se discorrendo sobre a doença e como se dá o processo de formação da memória. Não é um estudo científico claro, mas fica nítido que a memória tem função importantíssima e é mister lutar por sua preservação, mas não pode ser o aspecto validador de uma vida. Torturadores morrerem sem conhecer a justiça já não é injustiça suficiente?
Eunice faleceu 3 anos depois do lançamento do livro em uma data um tanto irônica: exatos 50 anos após o decreto do Ato Institucional número 5, o mais duro dentre todos. Ela, que nunca deixou que a ditadura visse seu sofrimento na busca pelo marido torturado, morto e desaparecido, sorri de novo. A ditadura acabou, mas ela só estava começando mais uma vez. Entrou para a história.