Para sorte daqueles que ficaram, os mortos (célebres) não reclamam mais

Gabriel Garcia Marquez
Em agosto nos vemos”: livro póstumo de Gabriel Garcia Marquez

Acontece de tempos em tempos: alguém, às vezes um herdeiro, munido de qualquer intenção, lembra de um material inédito de um falecido célebre (frequentemente um artista) e dá tratos à bola para oferecer ao mundo – quase nunca gratuitamente, claro, porque nada é feito sem custos. E os fãs e curiosos não reclamam, e por que reclamariam?, estão sempre ávidos para conferir o que houver para mostrar. 

Em agosto nos vemos”: livro póstumo de Gabriel Garcia Marquez
Em agosto nos vemos”: livro póstumo de Gabriel Garcia Marquez

É o caso do lançamento de “Em agosto nos vemos”, o romance inédito de Gabriel García Márquez, falecido em 2014, lançado recentemente. Os herdeiros alegam que o autor já não estava totalmente lúcido quando pediu para descartarem os originais e, por isso, não estava em condições de julgar devidamente a qualidade do próprio trabalho. 

É o caso de Elis Regina e sua apresentação no Festival de Montreux, em 1979. A cantora fez duas apresentações extenuantes no mesmo dia, o que afetou seu desempenho e a qualidade da gravação – aspectos decisivos para que ela, sempre crítica, não quisesse que fosse lançada. 

Após sua morte, em 1982, e sendo os herdeiros ainda muito jovens para decidir, o álbum foi lançado contra sua vontade.

Há mais casos, múltiplos casos, em mais de um setor das artes, em qualquer tempo. É uma cultura bastante estranha essa que suga infinitamente a arte sem se preocupar com seus artistas. E, diferente do que comentei, neste caso pelo menos, não é restrita ao ocidente. Lembro da cobrança para que Lady Gaga fizesse seu show no Brasil mesmo sofrendo com a fibromialgia da mesma forma como não há como esquecer o regime de trabalho dos mangakás (autores japoneses de mangá) tão rígido que os leva ao adoecimento.

Essa cultura, nossa cultura, o sistema capitalista que seja, nos leva a pensar que, se vivos, os artistas já são “ordenhados” até à exaustão (ou um pouco além dela), depois de mortos podem ser “ordenhados” pela eternidade afora. Em alguns casos, a alegação é de que poderia ser uma importante contribuição à arte, como “O processo” de Franz Kafka (cujo nascimento, aliás, completa 100 anos em 2024). Custa, no entanto, a convencer que não seja uma contribuição ao mercado o que interessa de fato. Um esforço para alimentar um sistema de consumo de arte/artista que precisa comer a carne, roer os ossos, sugar o tutano e talvez até tirar um naco do espírito, já que mortos célebres não reclamam mais.

Jaqueline Ribeiro

Jaqueline Ribeiro é bacharela em Comunicação/Jornalismo pela UEMG-Frutal, interessada por tudo o que conta histórias, escreve sobre livros, filmes e discos

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