Conheça a trajetória das línguas africanas no Brasil, dos tempos coloniais até hoje

Para abordar a questão da presença dos africanos no Brasil a partir de suas línguas, é importante ainda entender o contexto mais geral da diversidade de populações, povos e línguas que marca a história do país.
Mulheres negras da ala das baianas da escola Unidos de Padre Miguel, punida no carnaval de 2025 por ter usado muitas palavras em iorubá no seu samba-enredo: castigo contradiz tradição antiga do carnaval e confronta influência poderosa e ancestral das línguas da diáspora africana no português falado no Brasil, desde o século XVII. Foto: Marco Terranova / Riotur
Mulheres negras da ala das baianas da escola Unidos de Padre Miguel, punida no carnaval de 2025 por ter usado muitas palavras em iorubá no seu samba-enredo: castigo contradiz tradição antiga do carnaval e confronta influência poderosa e ancestral das línguas da diáspora africana no português falado no Brasil, desde o século XVII. Foto: Marco Terranova / Riotur

Ivana Stolze Lima, Fundação Casa de Rui Barbosa

Durante o desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro, neste carnaval de 2025, a atitude de uma das juradas contra o que ela considerou ter sido um excesso de uso de termos em iorubá no samba da escola Unidos de Padre Miguel fez a escola perder pontos e ser rebaixada do Grupo Especial, a elite do carnaval carioca, para o grupo de acesso. A decisão extemporânea e sem respaldo nem nas regras nem na tradição do desfile gerou imensa e justificada polêmica no mundo do samba. E, também, entre historiadores, linguistas e estudiosos da cultura africana e suas relações com o Brasil.

Eu, particularmente, ouço palavras que desconheço em línguas africanas desde muito antes de dedicar às pesquisas sobre o tema, como historiadora. E agradeço ao samba por ter me ensinado a ver a história — sempre presente — dos africanos no Brasil.

“Pizindin, menino bom”: eu era criança quando conheci esse lindo samba-enredo da Portela, de 1974, pelo rádio, ouvido por minha mãe enquanto costurava. O samba homenageava Pixinguinha que, junto a outros músicos, desde o final do século XIX expressava conceitos e palavras de línguas africanas em letras de samba, lundus e que tais. Como no clássico Yao, dele e de Gastão Viana: “Aquicô no terreiro peluadié, faz inveja pra gente que não tem muié”.

Bem mais recentemente, em 2024, fomos brindados pelo lindo refrão Ya temi xoa(“ainda estamos vivos”) do Salgueiro, salpicado de palavras yanomamis, que trazem uma curiosidade saudável pela diversidade linguística que constitui a história da humanidade e que é direito constitucional no Brasil. As vozes e as falas africanas sempre geraram reações, o que é a melhor evidência de sua força comunicativa e meio de memórias, pensamentos e conhecimentos.

Já na época colonial, Luís dos Santos Vilhena alertava para os problemas da concentração africana na população de Salvador, tomando as línguas africanas como ameaça à boa ordem, como vetores de uma comunicação perigosa, e sugeria que as autoridades coibissem seus batuques e alaridos.

O historiador Francisco Adolfo Varnhagen, construindo uma imagem sobre a história do Brasil após a Independência, denuncia-se ao escrever que os africanos não teriam identidade própria, e que por isso deturpariam o português, e corromperiam “a língua da mocidade”. Ora, quer exemplo mais claro da força da comunicação africana do que sua capacidade de influenciar a juventude?

Como historiadora, há muitas questões interessantes para refletir quando se considera os povos africanos e suas línguas em diáspora. Há vários anos desenvolvo pesquisas sobre a história social das línguas africanas no Brasil. Meu livro “Antônio, escrivão português, e Rita, africana do Benim: essa não é uma história de amor” tem como eixo básico a análise do manuscrito “Obra nova de língua geral de mina traduzida ao nosso idioma”, que consiste em uma tradução de línguas do sul do Benim para o português falado em Minas Gerais do século XVIII.

Trata-se de um documento valioso para discutir a diáspora africana no Brasil. Construo uma análise no campo da história social, e procuro evidenciar a voz africana contida no documento, representada metaforicamente por Rita, uma africana escravizada que se libertou, foi dona de uma venda, teve uma filha com o escrivão português Antônio da Costa Peixoto, que assina o manuscrito.

Essa icônica Rita representa as mulheres africanas oriundas do atual Benim, que tiveram papel fundamental na região mineradora, atuando no pequeno comércio, usando sua matemática, se aproximando por vários caminhos do poder da escrita, e principalmente como guardiãs de uma memória e conhecimento africano decisivos na formação social da população brasileira. Rita é figurativamente a coautora da tradução. Não sabia escrever, mas “usou” a mão do escrivão para operar uma tradução e sobreviver na terra do branco.

O documento é precioso não apenas por registrar uma língua africana falada no Brasil — algo que demonstra os vínculos de sociabilidade reconstruídos pelos escravizados da Costa da Mina (como os portugueses se referiam à região litorânea do Benim, Nigéria e países vizinhos) — como por representar diferentes aspectos da experiência africana. Aspectos estes rarissimamente presentes em registros e discursos oficiais, como a sexualidade, a corporeidade africana, a violência sofrida por escravizados, as hierarquias sociais, a religiosidade e outros.

Analiso o documento em diálogo com a riquíssima historiografia sobre as Minas Gerais no século XVIII, e sobre a história africana e da formação do mundo atlântico. Consultei arquivos e bibliotecas de Minas, Portugal e Estados Unidos, e essa experiência aparece muito: os impasses da pesquisa, os limites dos arquivos coloniais, a materialidade dos documentos são questões explicitadas no livro.

Para abordar a questão da presença dos africanos no Brasil a partir de suas línguas, é importante ainda entender o contexto mais geral da diversidade de populações, povos e línguas que marca a história do país. Bem como discutir aspectos sociais e políticos que envolveram a expansão da língua portuguesa, isto é, a colonização linguística.

Longe do que pode ser imaginado, projetando sobre o passado a situação linguística contemporânea, o português custou muito a se impor como a língua de colonização. Embora desde o século XVI existisse a expectativa de que a língua do príncipe deveria ser falada pelos súditos, as alteridades americanas e africanas se impuseram ao projeto colonizador.

Entre as centenas de línguas indígenas, o tupinambá, falado por povos do litoral, foi logo aprendido pelos europeus. Os missionários jesuítas se dedicaram a estudá-la e usá-la na doutrinação católica. Surgiram as línguas gerais que tinham como base o tupi, falada por descendentes de europeus e de africanos. Em meados do século XVIII, houve uma tentativa de proibição das línguas gerais de base tupi e a imposição do português, entre as reformas empreendidas pelo Marquês de Pombal. Mas a língua portuguesa só passou a dominar na medida em que o número de falantes de português se tornou majoritário, e com uma série de mudanças ao longo no século XIX: a centralização do Estado, a imprensa e a ampliação da alfabetização por meio de um sistema escolar.

Os povos africanos escravizados falavam, também, diferentes línguas. Importante abandonar o estereótipo de que essa diversidade linguística levaria a uma incompreensão ou incomunicabilidade entre os africanos escravizados. Habituados ao multilinguismo, foram capazes de recriar laços e vínculos comunitários entre línguas aparentadas.

Atentos à força dessa comunicação africana, autoridades coloniais e missionários buscaram caminhos para lidar com os africanos, construindo um conhecimento linguístico que permitisse sua incorporação à ordem escravista. Exemplo importante foi a elaboração de uma primeira gramática do quimbundo pelo padre jesuíta Pedro Dias, intitulada “Arte da língua de Angola”, publicada em Lisboa em 1697. Seria uma forma para que outros padres aprendessem a se comunicar em quimbundo, atuando na doutrinação católica de milhares de homens e pessoas oriundos da região Congo-Angola.

Além dessa, a Costa da Mina forneceu quase um milhão de escravizados. Destacam-se, dessa região, as línguas iorubás e as línguas do grupo gbe, em geral conhecidas como jeje no Brasil, e que no século XVIII os portugueses denominavam “língua geral de mina”.

O texto do livro foi elaborado visando a um público-alvo amplo, atendendo ao premente desafio de construir uma história pública, que vá além dos muros da academia. Em paralelo, e por apostar que o sujeito do conhecimento é fundamental no conhecimento historiográfico, evidencio uma série de experiências minhas (pessoais e profissionais) nessa trajetória de pesquisa, incluindo uma memória familiar que acredito ter potencializado meu olhar sobre a “obra nova de língua geral de mina”, e o que ele representa na história do Brasil.

Ivana Stolze Lima, Doutora em História e pesquisadora, Fundação Casa de Rui Barbosa

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

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Equipe de jornalistas do Jornal DC - Diário Carioca

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