Entrevista

Espionagem: especialistas avaliam impacto nas relações Brasil e EUA

CIA produziu mais de 600 documentos sobre Lula; prática é comum, mas levanta questões diplomáticas e de privacidade

Foto: Divulgação / Ricardo Stuckert / PR
Foto: Divulgação / Ricardo Stuckert / PR

Foi revelado, na quinta-feira (18), que diferentes órgãos do governo dos Estados Unidos monitoraram o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) ao longo de várias décadas. Este monitoramento resultou na produção de 819 documentos, totalizando 3.300 páginas de registros. A maior parte desses documentos foi produzida pela Agência Central de Inteligência (CIA), que mantém 613 registros sobre o presidente.

Essas informações foram fornecidas ao jornalista e escritor Fernando Morais, biógrafo de Lula, que as solicitou através da Lei de Acesso à Informação dos EUA, com a ajuda do escritório de advocacia Pogust Goodhead.


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Os documentos cobrem um extenso período de 1966 a 2019, incluindo os anos da ditadura militar no Brasil e o período em que Lula esteve preso. No entanto, Morais ainda não teve acesso à íntegra dos documentos.

Para entender a gravidade e as possíveis repercussões dessa espionagem, o Diário Carioca conversou com dois especialistas em relações internacionais: Alexandre Pires, professor de relações internacionais e economia do Ibmec SP, e Marco Meneses, coordenador dos cursos de Relações Internacionais e de Ciência Política (EAD) do Centro Universitário IESB.

Alexandre destacou que relatórios de inteligência sobre figuras públicas são corriqueiros e geralmente não levam a tensões diplomáticas significativas.

No entanto, a forma de coleta dessas informações e a natureza das mesmas, se sensíveis ou de foro íntimo, poderiam sim causar reclamações diplomáticas. Até o momento, não temos acesso a esses detalhes específicos

Alexandre Pires

Por outro lado, Marco afirma que a espionagem de Lula trata-se de uma atividade bastante comum entre os governos, lembrando que a presidente Dilma Rousseff passou por experiência semelhante durante o governo Obama, o que motivou o adiamento de uma visita de Estado em 2013.

Apesar de ser uma prática corriqueira, isso não isenta de ser uma afronta política, jurídica e moral ao direito à autodeterminação do governo brasileiro

Marco Meneses

Quanto às relações diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos, ambos os especialistas concordam que não deve haver um impacto significativo. Pires observa que “como a solicitação de documentos não atinge o terceiro mandato de Lula, não há razão para um pedido oficial de esclarecimentos por parte do governo brasileiro, permitindo que as relações diplomáticas sigam normais”.

Meneses também acredita que “não haverá rusgas maiores na relação bilateral mais importante do hemisfério, podendo haver no máximo uma sinalização protocolar do desconforto trazido pela informação ter se tornado pública”.

No que diz respeito à comunidade internacional, o professor aponta que a coleta de inteligência não é comum entre países aliados e seus líderes, destacando que o Brasil, “apesar de sua proximidade histórica com os Estados Unidos, não é objetivamente um aliado ou alinhado a Washington devido à falta de participação plena em tratados como OCDE e OTAN”, destaca Alexandre.

Foto: Divulgação / Ricardo Stuckert

Já Marco complementa que “a maioria dos governos pratica a espionagem e que as informações colhidas podem ser cruciais para a tomada de decisões em várias áreas temáticas”, destacando a importância de elevar os cuidados com a proteção da confidencialidade das informações.

Sobre o potencial impacto dessa revelação nas eleições americanas, os especialistas são unânimes em afirmar que é improvável que a notícia cause qualquer impacto significativo. Pires explica que “para os eleitores americanos, a existência de inteligência sobre uma figura política latino-americana não é relevante no contexto eleitoral, especialmente porque a documentação não atinge o mandato em curso do presidente Joe Biden e toca apenas parcialmente o mandato anterior de Donald Trump”.

“A pauta eleitoral nos EUA está repleta de questões que atraem mais a atenção do público e do eleitorado, como as condições de saúde do presidente Biden, os problemas judiciais de Trump, e as propostas do candidato independente Robert F. Kennedy Jr., relegando a notícia de espionagem ao presidente Lula às margens das preocupações eleitorais”, acrescenta Meneses.

A revelação de que o governo dos Estados Unidos monitorou o presidente Lula por décadas levanta questões sobre a privacidade e a soberania dos líderes políticos. Porém, tanto Alexandre Pires quanto Marco Meneses apontam que, apesar da gravidade da situação, a espionagem de figuras políticas é uma prática comum entre os governos e não deve causar grandes tensões diplomáticas entre Brasil e Estados Unidos no futuro próximo. Além disso, é improvável que essa notícia tenha qualquer impacto significativo nas eleições americanas.

Procurados para comentar sobre o caso, o Palácio do Planalto e o Itamaraty não retornaram até o fechamento desta matéria. Já a CIA e o FBI não foram localizados para comentar.