O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra a União, responsabilizando-a por dano moral coletivo decorrente de manifestações oficiais da Marinha do Brasil consideradas ofensivas à memória de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata.
A ação busca impedir novos atos de desvalorização histórica e requer indenização de R$ 5 milhões, a ser destinada a projetos voltados à preservação da memória do “Almirante Negro”.
Segundo o MPF, as manifestações da Marinha afrontam a Constituição Federal, tratados internacionais de direitos humanos e a Lei nº 11.756/2008, que concedeu anistia a João Cândido e demais participantes da revolta de 1910. Para o procurador adjunto Julio Araujo, a anistia possui efeitos jurídicos e simbólicos concretos, impondo ao Estado o dever de respeitar e preservar a memória coletiva ligada à luta contra castigos físicos na Marinha.
Base da ação e fatos destacados
A ação tem como base elementos de inquérito civil instaurado por demanda da sociedade civil. O MPF aponta que persistem práticas institucionais que atacam a imagem do líder da revolta, configurando continuidade da perseguição histórica, mesmo após sua morte.
Entre os fatos citados está o envio, em abril de 2024, de carta do comandante da Marinha à Comissão de Cultura da Câmara, manifestando oposição ao projeto de lei que propunha a inscrição de João Cândido no Livro de Heróis e Heroínas da Pátria. No documento, a revolta foi qualificada como “deplorável página da história nacional” e “fato opróbio”, enquanto os revoltosos receberam adjetivos negativos.
O MPF destacou que tais qualificações representam ataque direto à memória do anistiado e aos valores de justiça e igualdade reconhecidos pela legislação. Após recomendação do órgão, a Marinha respondeu que não adotaria providências, alegando que as declarações refletiam apenas sua “perspectiva histórica”. Para o MPF, isso evidencia intenção de manter discursos incompatíveis com a anistia legalmente concedida.
Direito à memória e justiça racial
O MPF reforça que o direito à memória está ligado à dignidade humana, ao direito à informação e à preservação do patrimônio histórico-cultural. A proteção da memória de João Cândido também envolve o enfrentamento do racismo estrutural e a valorização das lutas da população negra, temas recentemente reconhecidos pelo STF na ADPF 973.
A ação argumenta que as declarações oficiais extrapolam a liberdade de expressão, violam normas constitucionais e internacionais, além de precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos, prejudicando não apenas a memória do personagem histórico, mas o direito coletivo da sociedade de conhecer e interpretar sua própria história.
Revolta da Chibata
Apesar da formal abolição dos açoites em 1889, os jovens marinheiros, majoritariamente pretos e pobres, continuaram sendo punidos. Em 22 de novembro de 1910, após receber 250 chibatadas, um marinheiro desmaiou, desencadeando a revolta liderada por João Cândido. O movimento durou quatro dias e paralisou o Rio de Janeiro, levando o governo a negociar com os rebeldes. Após o episódio, os castigos físicos foram definitivamente abolidos na Marinha.
Número do processo: Ação Civil Pública nº 5138220-44.2025.4.02.5101/RJ



