Show de realidade, sucesso de mentira

Heitor Castro
Heitor Castro

Por Heitor Castro* – Os festivais de música brasileira das décadas de 1960 e 1970 projetaram boa parte da chamada “realeza da MPB”, como Gilberto Gil, Chico Buarque e Caetano Veloso, artistas que norteiam gerações de músicos há, pelo menos, quatro décadas.

Diferentemente dos festivais, nem os concursos de cantores em programas de auditório lendários, como Flávio Cavalcanti, Chacrinha ou Bolinha, tampouco os reality shows de sucesso, neste século, como Fama (Globo, 2002-2005), Ídolos (SBT, 2006-2007 e Record, 2008-2012), The Voice (Globo, 2012-2014) e Superstar (Globo, 2014), conseguiram cumprir a promessa de produzir e alçar, entre tantos talentos, um ídolo nacional, que representasse a nata da nova geração de cantores tupiniquins e, muito além do posto temporal de ganhador de uma atração televisiva, um sucesso comercial de grandes proporções.

Artistas que já tiveram seus momentos de fama, como Luka, e celebridades atuais, destaques para Thiaguinho e Roberta Sá, passaram, sem muito brilho, pelo programa Fama, da TV Globo, e reapareceram tempos depois, com êxito, em projetos que em nada remetiam ao passado. Luka emplacou o hit “Tô nem aí” em 2003, Thiaguinho ingressou no já consagrado grupo de pagode Exaltassamba e hoje, em carreira solo, é um dos artistas de maior sucesso do país, e Roberta Sá desponta como uma das cantoras mais respeitadas da nova safra da MPB.

Em contrapartida, nomes como Vanessa Jackson, Marcus Vinicius e Fábio Souza, ganhadores de edições do Fama, e Leandro Lopes, Rafael Barreto e Saulo Roston, premiados no Ídolos, ainda lutam por um espaço no concorrido – e tão problemático – mercado musical.

Dos concursos em programas de auditório aos reality shows musicais, por que o sucesso dos seus vencedores não se sustenta por muito tempo quando os holofotes de cada temporada se apagam?

Uma explicação pode estar no fato de que, no caso dos festivais, havia uma valorização da música como um todo – e não exclusivamente do cantor –, da composição à escolha do intérprete. O foco era outro e, ao estimular a criação, dava-se a possibilidade de se perpetuar a imagem de artistas através de obras impactantes, inéditas e inovadoras, que exaltavam a nossa cultura, dialogavam com outras e tocavam feridas sociais e políticas profundas, tudo isso no conturbado e doloroso contexto da Ditadura Militar (1964 – 1985).

Outra razão para a diferença entre ontem e hoje pode estar na maneira como as pessoas encaravam os meios de comunicação a partir da oferta de informação. Há 50 anos, por exemplo, não tínhamos a internet, que vem, nas últimas duas décadas, pulverizando as notícias e ampliando a gama de fatos repercutidos. Naquela época, a chance de um evento desse tipo “parar o país” era consideravelmente maior pela concentração da informação em veículos distribuídos num círculo limitado à televisão, rádio, jornal e revista. Tudo isso criava um caldo de cultura ideal para arrebatar e conquistar a audiência.

Resultado: sucessos em curto, médio e longo prazos que, além de eternizarem talentos – da criação, como Chico, Gil e Caetano e da voz, como Elis Regina, Jair Rodrigues e Nana Caymmi – consolidaram uma base estética e estilística que vem introduzindo, direta ou indiretamente, a formação musical de boa parte dos brasileiros, que encanta estrangeiros e que passou a ser uma peça importante na construção e no fomento da nossa cultura desde então. Mas eram outros tempos.

Hoje, dispomos de um universo em termos de comunicação, o que também ocasionou o aumento da concorrência e também, de certa forma, a perda do encanto de outrora na relação entre o fã e o seu ídolo. No que diz respeito ao controle que as gravadoras e as emissoras de rádio e de televisão exerciam sobre os meios de produção e de divulgação da obra, a difusão digital serviu para romper esse domínio ao disponibilizar as ferramentas necessárias para que canções fossem produzidas em casa e se tornassem “virais” na web em sites como o Youtube, por exemplo.

Apostar apenas em um elemento da música, o cantor, talvez não seja o bastante para revelarmos novos ídolos. Mas cabe uma reflexão: tudo o que possibilitou essa tradição musical na televisão não teria ficado no passado como um produto do seu próprio tempo? Só o próprio tempo irá nos revelar.

 

  • Músico com mais de 30 anos de experiência, é diretor da rede de escolas Mais Que Música.