Obra da Prefeitura de Recife mantém condomínios e 'varre' 255 famílias de área rica da cidade

“Chegou a oficial de justiça aqui me avisando que eu só tinha quinze dias para desocupar minha casa. Aí eu falei pra ela que não tinha pra onde ir, que eu não posso sair de casa, que eu tenho um filho especial, não posso botar meu filho em qualquer lugar. Então, pra gente sair daqui está difícil.”

O relato da manicure Gevanilda Lopes Freire sintetiza a angústia das famílias da Vila Esperança. Classificada como uma Zona Especial de Interesse Social (Zeis) – regiões destinadas à moradia digna para a população da baixa renda – desde 1994, a comunidade fica no bairro do Monteiro, em uma das zonas mais ricas do Recife, e corre o risco de sumir do mapa para que a ponte Engenheiro Jaime Gusmão seja erguida pela Prefeitura Municipal.

A construção da Ponte que ligará o bairro do Monteiro ao da Iputinga, começou em 2012, passou anos paralisada, e chegou a ser interditada pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Em setembro de 2021, em plena pandemia e sem qualquer aviso prévio às famílias, a obra foi retomada e, segundo os moradores,  já com o anúncio das desapropriações pela gestão municipal.

“Eles vieram mais ou menos há um ano e seis meses. Um dia de manhã a gente estava aqui e o pessoal da URBr começou a marcar nossas casas. Não pediram licença, não explicaram nada para a gente, só chegaram numerando as casas. Eles respondiam: ‘a gente está marcando aqui porque vocês vão ser desapropriados’. Eu peguei o cimento e pintei. Eu disse não. Não dei ordem pra ninguém marcar nada que é meu”, relembra Luis Vicente da Silva, condutor escolar, que chegou na Vila ainda na década de 1990.

“Passei vinte e dois anos sem tirar férias. Vinte e dois anos sem décimo terceiro. Tudo empregando para construir essa casa. Tenho um amigo que tinha um armazém. Eu comprei os materiais e ia pagando para ele mês a mês”, conta.

Segundo documento enviado pela Autarquia de Urbanização do Recife (URB) à Defensoria Pública de Pernambuco (DPPE), revelado pelo Jornal do Commercio (JC), a obra foi dividida em duas partes. A primeira é a que está em curso: a construção da ponte em si, que afeta um total de 53 famílias.  

A segunda é a do anel viário que circunda a ponte, cuja licitação ainda não foi aberta, mas terá recursos municipais e financiamento da Caixa e do Banco do Brasil. É nesta fase onde ocorre o maior número de remoções: 255 casas. O projeto atinge praticamente o mesmo número de famílias que vivem no local. 

“O primeiro projeto foi alvo de severas críticas do Tribunal de Contas, que inclusive embargou o projeto. Esse novo projeto retoma sem sanar as principais críticas e retoma muito pior, pontua Natália Almeida, advogada popular do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), que assessora as famílias.

“A gente percebe que, na verdade, é pura especulação imobiliária para varrer as pessoas dali. É um projeto que destrói uma Zeis (Zona Especial de Interesse Social inteira) inteira. Destrói toda a comunidade Vila Esperança/Cabocó”, completa.

Casas demolidas fazem divisa de muro com empreendimento erguido pela construtora Moura Dubeux, em 2021 / Pedro Stropasolas

Recife pioneira nas Zeis

As Zonas Especiais de Interesses Social surgiram em Recife no ano de 1983 e se espalharam pelo país. Hoje, as ZEIS estão previstas nas legislações de todos os municípios com mais de 100.000 habitantes e em Planos Diretores de 1811 cidades. Esse tipo de zoneamento surgiu, entre outros objetivos, para proteger a moradia popular do avanço da especulação imobiliária. 

Até dezembro de 2020, antes da aprovação do Novo Plano Diretor do Recife e de alterações sancionadas pelo então prefeito Geraldo Julio , terrenos maiores que 250 metros quadrados estavam proibidos de serem comprados em ZEIS para abrigar prédios altos nos bairros da Zona Norte do Recife. 

A zona abriga prédios de alto padrão da cidade. É o caso de bairros, como o próprio Monteiro, além de Jaqueira, Parnamirim, Santana, Casa Forte, Poço da Panela, e Apipucos 

Em 2021, no ano seguinte às mudanças na legislação municipal, um empreendimento da construtora Moura Dubeux começou a ser erguido colado nos muros das casas de Vila Esperança. Em maio do mesmo ano, o prefeito João Campos (PSB) publica o decreto nº 34.603, que determina as desapropriações para a implantação da ponte-viaduto.

“Não tinha nem um prédio aqui não. Aí depois que fizeram esses prédio aí, aí começou a quererem tirar a gente das nossas casas”, pontua Gevanilda Lopes Freire.

A manicure tem a loja dentro da própria casa. No local, vivem mais cinco famílias, todos parentes entre si. Foi ela que construiu o piso de cerâmica, os cômodos, aos pouquinhos, com a força do trabalho. “O prefeito só faz coisa pra rico, porque pra pobre ele não faz nada”, desabafa.

A Construtora Moura Dubeux é a mesma que vem modificando a paisagem do Cais José Estelita com a construção das três torres do polêmico Projeto Novo Recife, símbolo do avanço do setor imobiliário sob o centro da cidade. A obra foi o que gerou a revolta e a luta do movimento popular e artístico do Ocupe Estelita, que completou 10 anos no ano passado. 

Famílias pedem que o prefeito João Campos (PSB) anule o decreto nº 34.603, que determina a desapropriação das famílias / Pedro Stropasolas

Prédio fica, casas populares saem

Raquel Alves Ferreira tem 65 anos de vida e todos eles vividos sob o mesmo teto. Antes de nascer, a mãe já estava há 30 anos nessa mesma casa. “A minha história começou aqui e para mim é uma dor muito grande. Eu tive minhas filhas aqui, eu nunca cogitei deixar esse lugar”, pontua a professora aposentada.

Vizinha de muro ao prédio de alto padrão erguido pela Moura Dubeux, ela não consegue entender como precisará sair do local,  e o condomínio não. 

“O muro da minha casa é o mesmo muro do prédio da Moura Dubeux. A minha casa vai ser afetada. Ou pela ponte, ou jardim, ou pela ciclovia, mas o prédio da Moura Dubeux não vai ser afetado. Olhe bem a contradição.” 

As famílias lutam para que o prefeito João Campos (PSB) anule o decreto municipal e que elas possam permanecer nas suas casas. Entre as demandas, está também a entrega de um conjunto habitacional para abrigar as famílias que já foram desapropriadas pela gestão municipal.  

Se não forem atendidas, pedem ao menos que sejam pagas indenizações justas pelos imóveis. O principal impedimento, no entanto, é que a grande maioria nunca recebeu o título de posse do terreno, mesmo vivendo há décadas no local.

“Quando a Prefeitura determina que uma área é ZEIS é obrigação da Prefeitura fazer a regularização fundiária e entregar os títulos de posse e propriedade pras famílias, né? No entanto, em nenhum momento a Prefeitura fez isso, apesar da comunidade de Vila Esperança ter protocolado pedidos de Reurb. Então ela diz que por não serem os títulos de propriedade as famílias são invasoras, são posseiras e que não tem direito ao valor do uso do solo, apenas a indenização das benfeitorias”

“Como é que uma família vai sair com o valor de quarenta mil reais, cinquenta mil reais pra comprar uma casa? Isso é impossível, né? Principalmente ali no entorno que é um bairro extremamente valorizado”

Raquel Alves Ferreira tem 65 anos de vida e todos eles vividos sob o mesmo teto / Pedro Stropasolas

Indenizações irrisórias

Tanto o CPDH, quanto a Defensoria Pública do Estado atuam junto às famílias para que as indenizações correspondam ao valor real dos imóveis. As propostas da Prefeitura variam de 30 a 60 mil reais, um valor muito abaixo do que é avaliado para a região do Monteiro, considerado o quarto metro quadrado mais caro do Recife. 

“A prefeitura está querendo tirar a gente das nossas casas dando um dinheiro irrisório, não dá pra gente comprar outra casa lá fora”, explica Gevanilda Lopes Freire.

Mesmo Raquel, a única moradora que possui a titularidade de seu imóvel, conta que a oferta de indenização da Prefeitura é muito abaixo do  apropriado. Um apartamento no edifício ao lado dela, da Moura Dubeux, é vendido por até R$ 1,5 milhão de reais.

“Eu fui chamada quatro vezes e não aceitei o valor porque eles sempre falaram que se a gente tivesse uma documentação, eles pagariam pelo metro quadrado do bairro e não é isso que acontece.  Eu fui chamada e rejeitei todas as propostas, e a prefeitura me colocou na justiça”, coloca.

A professora denuncia ainda que a Autarquia de Urbanização do Recife (URB) não vem recolhendo os escombros das moradias que já foram desapropriadas.

“Ela negocia, derruba e ainda deixa os escombros. Isso dá barata, escorpião e além do mais o pior de tudo é a depressão que dá, porque só você olhar escombro e saber que morou uma pessoa ali, isso deixa você mais desmotivada. E eu acredito até que eles fazem de propósito. Porque afeta mesmo”, lamenta.

Escombros de casas demolidas pela Prefeitura do Recife não vem sendo recolhidos / Pedro Stropasolas

“Ataque direto da especulação imobiliária”

José Diego da Silva Albuquerque é historiador e vive na comunidade do Alto Mandu, que fica ao lado da Vila Esperança e também é uma Zeis. Ele estudou na Escola Silva Jardim, em frente à Vila. Foi quando cursava o ensino médio que ficou sabendo da obra do projeto de construção da ponte. Segundo ele, a construção só favorece os moradores dos condomínios da região, pois do ponto de vista de melhora no trânsito, ela terá pouca efetividade.

“O projeto é um ataque direto da especulação imobiliária no território, pois a Perimetral da Caxangá fica muito distante do ponto onde a ponte vai se encontrar e ela também não liga com a outra perimetral da cidade, que é a avenida Norte”, explica o historiador e militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB).

“É um processo histórico dentro desse sistema. A gente simplesmente pega o problema de um ponto e joga pra outro, porque esses moradores de Vila Esperança, com o dinheiro que é ofertado para eles, eles vão para outros que estão em área de risco ou de deslizamento”, completa”. 

O Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH)  estima que trezentas comunidades de interesse social estão sem proteção e sujeitas aos interesses do capital imobiliário na cidade do Recife.

“Os processos de remoção em Zeis têm sido muito comuns. A comunidade do Pilar agora foi alvo no Bairro do do Santo Antônio, em um processo extremamente parecido com o da Vila Esperança. A comunidade do Pina, do Encanta Moça”, finaliza Natália Almeida.

O que diz a Prefeitura do Recife

Em nota enviada ao Brasil de Fato, a Autarquia de Urbanização do Recife (URB) esclarece que as obras da ponte Jaime Gusmão e do habitacional Vila Esperança incluem a desapropriação de 53 imóveis, dos quais 38 moradores já concordaram com os valores propostos e 27 já receberam o pagamento.

Quanto ao baixo valor das indenizações, uma reclamação dos moradores, a URB explica que cada imóvel é avaliado individualmente e “recebe um valor que varia de acordo com a existência de documentação legal, área construída e benfeitorias realizadas pelos moradores”. 

A gestão de João Campos (PSB) explica que o habitacional Vila Esperança, que terá 75 unidades destinadas a moradores da área, terá o edital de licitação publicado ainda neste mês e as obras devem começar no segundo semestre. 

A prefeitura explica ainda que o novo projeto da ponte Jaime Gusmão irá melhorar a ligação entre as duas margens do Rio Capibaribe, entre os bairros da Iputinga e do Monteiro e representa “uma economia para os cofres públicos de 20% em cima do valor atualizado do projeto anterior”.

A prefeitura não respondeu os questionamentos do Brasil de Fato sobre a desapropriação das 255 famílias para a construção do anel viário adjacente à ponte. A gestão municipal também não deu retorno sobre os motivos para que o empreendimento da construtora Moura Dubeux, que faz divisa com as moradias populares, não ser impactado pelas obras da construção da Ponte Engenheiro Jaime Gusmão.

Edição: Rodrigo Durão Coelho