Renato Freitas em Buenos Aires: 'nada mais justo à memória, verdade e justiça que o testemunho'

“Eu tenho uma filosofia política que é a filosofia do testemunho.” Assim o deputado estadual Renato Freitas (PT-PR) iniciou seu relato durante o evento “Imaginação política para reivindicar a democracia”, em Buenos Aires, na Argentina. O deputado de 39 anos contou sua história familiar, as violências impostas pelo racismo em sua cidade natal Curitiba (PR), as dificuldades em seu processo educacional até sua acidental, como classificou, ascensão na política.

Em articulação com o Núcleo do PT na Argentina, Renato Freitas passa por Buenos Aires para integrar o ciclo de palestras que marca os 40 anos da redemocratização no país. Sua intervenção, “Imaginação Afropolítica: construir democracias antirracistas”, se baseou em sua filosofia do testemunho. Assim, diante do público na Casa Patria Grande, no centro da cidade de Buenos Aires, Renato Freitas contou sua história.

“Acredito que todas as pessoas que passaram por situações limítrofes entre vida e morte, que presenciaram a morte ou viveram com a morte têm uma obrigação ética de testemunhar”, afirmou. “Portanto, nada mais justo em relação à memória, à verdade e à justiça que o testemunho da minha própria vida para encontrar as pistas e possibilidades de romper os ciclos da desigualdade, da opressão e da exclusão.”

“Sou filho de mãe migrante nordestina, que saiu do sertão da Paraíba para tentar a vida em São Paulo. Lá, encontrou muitas desventuras”, contou. Na cidade, sua mãe trabalhou como empregada doméstica e conheceu o pai de Renato. “Quando eu estava para nascer, ele foi preso numa rodovia do Paraná. Fomos morar perto do presídio onde meu pai estava. Meu pai ficou boa parte da vida dele preso, e minha mãe descobriu que ele também tinha outra família, e rompemos os vínculos. Ficávamos na vila, conhecendo o mundo do jeito que o mundo se apresentava a nós.”

Afirmação

Entre 10 a 12 anos, Freitas conta que começou a furtar com amigos no centro da cidade. “Fui aprendendo a sobreviver e mantendo relação de muita proximidade com os delitos”, conta. Já com 14 anos viu pessoas ao seu redor sendo apreendidas, e foi também nessa época em que teve o que chamou de sua primeira experiência intelectual: o xadrez.

“Eu já tinha parado de estudar quando, uma vez, fui na biblioteca – eu gostava de ler livros de romance policial da Agatha Christie –  e vi pessoas jogando xadrez. Me despertou uma curiosidade”, relata. Aprendeu, então, a jogar xadrez na biblioteca e, em pouco tempo, começou a vencer seus tutores. Um lugar de afirmação, de uma nova linguagem e de abertura para possibilidades. “A escola dizia que eu era burro, eu tirava 3, 4, 5. E no xadrez, eu ganhava dos que me ensinaram.”

Mas foi também no xadrez que lidou com o que considera o segundo enfrentamento direto com o racismo. O primeiro, na família, veio de um padrasto. “Me obrigava a cortar o cabelo com máquina zero, me chamava de ‘negro’ com os amigos de um modo que eu me sentisse inferior”, disse.

O segundo veio do técnico do xadrez, Osvaldo Andrade, um homem mais velho, branco, de olhos verdes. “Eu ganhava dele. E ele não gostava de mim.” Após diversos episódios de descriminação por parte do técnico, Freitas decidiu abandonar o xadrez.

Em um contexto rodeado por violências, Freitas conta como foi atravessado por essa linguagem e esse modo de interagir com o mundo. Em determinado momento, no entanto, descobriu que sua revolta não era “um monstro indomável”, mas resultado de opressões que encontram sentido em uma estrutura racista e classista da sociedade. Isso aconteceu ao ingressar na faculdade de ciências sociais – que não concluiu, mas conferiu algumas chaves necessárias para a leitura de parte de sua realidade.

Reconhecimento nas quebradas

Anos depois, já na universidade, ingressou na militância política. Após dez anos no PSOL, recebeu um convite que seria um marco inesperado em sua vida. Com a expectativa de atrair uma média de 500 votos com candidaturas menores para eleger um vereador, Freitas foi chamado para integrar as candidaturas do partido em Curitiba. “Durante os 15 primeiros dias de campanha, eu não tinha nem santinho”, riu.

Foi durante a campanha que Renato Freitas percebeu o acolhimento e o reconhecimento dos companheiros das quebradas: era um candidato do povo. Foi eleito com mais apoio que o premeditado para o candidato principal a vereador, com 3.500 votos. “Eram sementes que eu estava plantando e eu não sabia. Essas sementes viraram árvores, e essas árvores eram frutíferas. E eu não sabia”, disse, ressaltando que foi esse convite para a candidatura que o permitiu colher esses frutos. “Eram frutos do meu trabalho. E eu não sabia.”

Sua trajetória na política partidária, conta, também foi e é atravessada por discriminações de diversos tipos. Desde a exclusão de suas campanhas do fundo partidário, apesar de sua boa performance nas urnas, até as investidas da extrema direita de Curitiba. Recentemente, ele foi abordado e revistado aleatoriamente pela Polícia Federal em um avião. Em fevereiro de 2022, Freitas foi acusado de quebra de decoro parlamentar após participar de um protesto ato por justiça a Moïse Kabagambe em uma igreja em Curitiba. Seu mandato de vereador foi cassado por aprovação de maioria na Câmara Municipal, decisão posteriormente revista e suspensa pela justiça.

A partir de seu relato, Renato relacionou sua história à de muitas outras vivências atravessadas pelo racismo. Segundo sua filosofia, compartilhar, testemunhar, seria um caminho para romper esse ciclo de opressões “que fazem com que sigamos na correnteza tranquila das estatísticas, que colocam as nossas vidas nas valas do cotidiano, sem nome, sem história”.

Edição: Nicolau Soares