Cada vez mais animais silvestres precisam de ajuda por causa da ação humana, alerta protetora

Durante a pandemia da covid-19, a educadora, bióloga e veterinária Cristina Cabral, decidiu deixar a capital paulista e se instalar em uma área de Reserva Particular do Patrimônio Natural na Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais. 

Protetora de animais e com uma longa história de resgates e reabilitações, ela criou no local um espaço protegido para espécies silvestres vítimas da caça, do avanço do agronegócio e da devastação ambiental. 

Em entrevista ao Brasil de Fato, Cristina Cabral afirma que, cada vez mais, percebe um aumento na necessidade de resgates e reabilitação, “não só por causa das mudanças climáticas, mas também pelo aumento do tráfico, diminuição da fiscalização e liberação da caça”, alerta.

A percepção é baseada na experiência. Desde a década de 1980, ela atua na proteção animal. A bióloga participou de missões de resgate de animais em tragédias como o rompimento da barragem de rejeitos da Vale em Brumadinho e as queimadas de 2020 no Pantanal. 

No santuário, a equipe cuida de 70 animais atualmente e desenvolve também projetos educativos com crianças, adolescentes e universitários. O espaço está, inclusive, aberto para estágios obrigatórios da graduação. 

Cristina Cabral é também autora de livros infantis, que falam sobre a importância “de olhar para os animais com empatia, com compaixão, sabendo que eles sentem o mesmo que nós sentimos.”

Hoje, na Serra da Mantiqueira, a bióloga abriga animais dos quais já era tutora e que estavam em diversos espaços, além dos resgatados da região. São aves, saruês, lobos, cachorros do mato, felinos, porcos, cavalos, cachorros e gatos.

Brasil de Fato: Como começou a iniciativa do Santuário Francisco da Mantiqueira? 

Cristina Cabral: Essa é uma realidade muito antiga na minha vida. Eu sempre fui protetora de animais. Sempre resgatei animais domésticos, mas sempre tive essa vontade de trabalhar diretamente com os silvestres, porque sou bióloga e especialista em animais silvestres. 

Na pandemia tivemos diversas situações em que fomos chamados para resgate de animais e mesmo antes. Mas foi na pandemia que começamos a organizar esse espaço físico. 

Aqui é um espaço de mata primária, onde tem muitas aves, muitos animais selvagens e eu comecei a perceber a necessidade de ajuda. O santuário começou dessa maneira. Chegavam animais aqui da região. 

É não só pelos acidentes e pelas queimadas, mas pelas lavouras. Muitos animais ficam nas lavouras porque nós invadimos os espaços. Expandimos espaços de agronegócio e acabamos empurrando a casa dos animais. 

Eles vão em busca de alimento e acabam se ferindo quando eles chegam em uma roçadeira, por exemplo. Um trator fazendo a preparação de solo para plantio pode prejudicar tatus, mães com filhotes. Nós acabamos tendo que começar a montar uma estrutura, só que essa estrutura é muito cara. Então fui fazendo aos poucos algumas coisas. 

Tive que estruturar, tentar fazer uma salinha de atendimento veterinário, começar a fazer pequenos atendimentos em parcerias. Porque eu não tinha um hospital de internação aqui. Fiz parcerias com os hospitais veterinários das universidades de Pouso Alegre e Itajubá e fui expandindo essa rede. 

Hoje, temos parcerias em vários lugares para levar animais quando precisam de um raio x ou de um ultrassom. Faço os primeiros atendimentos e levo, caso seja um caso de internação ou cirurgia. Depois eles voltam para ser reabilitados.

Quais são as espécies abrigadas atualmente? 

Temos animais em vários estágios. Um exemplo, tenho uma coruja que levou um tiro em voo. Ela teve fratura de asa, de úmero. Tivemos que fazer cirurgia, colocar pino, reabilitar, ensinar a voar de novo, fortalecer as asas. 

Nós temos recinto para treino de voo, temos recinto de quarentena. Fizemos a reabilitação dela, colocamos uma câmera no recinto para ver o animal durante a noite e, enfim, abrimos a portinha. Um macho veio para dentro do recinto e eles começaram a fazer um outro tipo de soltura. Hoje, ela vai e volta. Às vezes, demora um tempão e volta. Volta com o marido, entre aspas. 

Temos lobo-guará e cachorros do mato. Já tivemos outros lobos, que foram reintroduzidos ou vieram a óbito. Estamos tendo aqui na região uma epidemia de um verme renal que está pegando esses animais, por conta dos pesqueiros que os seres humanos estão fazendo.  

Esse verme chama dioctophyma renale. Ele é uma zoonose, porque também pode atingir humanos. Em lobos e cachorros domésticos e cachorros do mato ele destrói a pelve renal. Estamos montando um grupo de pesquisa para investigar, porque são quatro casos só aqui. 

Já fizemos soltura de 18 gambás. Geralmente eles chegam com a mãe atropelada, em óbito, e eles na bolsa do sincício. Nós alimentamos, cuidamos deles, até eles terem condição. Colocamos no recinto, ensinamos a procurar comida e fazemos a reintrodução e eles vão embora. Às vezes eles voltam para visitar.

:: A impermanência e o amor pelos animais ::

Nós temos dois carcarás que vieram do Pantanal com as asas queimadas e tivemos que amputar. Temos também o carcará Tadeu, que já foi reintroduzido e nos visita periodicamente. Ele também levou um tiro na asa. Nós conseguimos reabilitar. Ele voltou a ter um voo estável e está livre. Temos gaviões carijós e asa de telha, corujas suindaras. 

Recebemos animais debilitados, muitas vezes com alguma infecção. Algumas por proximidades de granjas, porque aves também adquirem doenças de granjas. Há lobos com cinomose, uma doença de cachorro doméstico, mas que o canídio silvestre adquire. 

Resgatamos uma loba que estava entrando no galinheiro junto com os cachorros e ela estava com sarna. Doenças que estão nos animais domésticos estão passando para os animais selvagens. 

Vocês notam que há um aumento de animais que necessitam de resgate e reabilitação? 

Não só por causa das mudanças climáticas, mas também pelo aumento do tráfico, diminuição da fiscalização e liberação da caça. Uma das coisas que vivenciamos aqui é a ocupação dos espaços.  A especulação imobiliária na zona rural, a falta de política pública de proteção e defesa dos animais nos municípios, a liberação da caça. 

Ao caçar determinada espécie — vamos falar do java porco, que foi liberado — você não tem dimensão quando você atira. A bala pode resvalar em outro animal que estava ali e você não viu. Às vezes é deliberado, às vezes a pessoa vai com a intenção de caçar determinados animais. 

Faltam políticas públicas nas rodovias para travessia de animais, corredores ecológicos. Existem animais que vem para nós pela Polícia Ambiental (vitimados) nas rodovias. Os agrotóxicos, animais intoxicados chegam aqui. 

É falta de política pública e falta de consciência. Eu entro na questão educacional, da educação ambiental, a importância de educar as pessoas que moram aqui. A importância de olhar para os animais com empatia, com compaixão, sabendo que eles sentem o mesmo que nós sentimos. 

O que você sentiria se retirassem a sua casa e você não tivesse onde ficar? Ter que ir procurando lugares para morar, cada vez mais, ficar itinerante, É isso que acontece com eles. É algo que estamos vivendo. Eu considero a educação a grande potência de transformação disso para as novas gerações. 

Neste momento histórico de transição do Brasil, quais são as políticas públicas e ações privadas necessárias para ampliar a proteção animal? 

Acho que o trabalho agora não pode mais ser solitário. É um projeto de sociedade, é um projeto de mundo. Não é só aqui, no mundo todo, nós temos projetos de proteção que precisam da ajuda dos empresários. Se eles querem realmente fazer algo que tem importância para a comunidade do modo geral.

É preciso fortalecer os conselhos. Aqui, nós estamos montando um conselho de proteção na região. É importante a participação das pessoas nessas políticas públicas nos governos. Abrir espaço para que as multas ambientais sejam revertidas para espaços como o nosso, sem fins lucrativos.

Temos um impacto financeiro absurdo quando recebemos um animal. Eu não tenho ultrassom, um raio x. Temos uma área destinada para fazer o hospital deles, mas não tenho condição de bancar sozinha e estou tentando parcerias. 

Então, os empresários e o poder público podem e devem ter essa visão de coletividade, de participação, fazer planejamentos participativos e destinar a as verbas. Porque existe dinheiro no país para as ONGs de proteção, para os institutos de educação, que são os que vão transformar essa realidade. É preciso destinar mais as verbas, não só para cá, mas para vários santuários que tem esta missão.

Em médio longo prazo — porque na realidade, em curto eu acho que não vamos conseguir — precisamos investir em educação e, além de tudo, formar profissionais jovens. Porque daqui um tempo eu não estou aqui, não é da Cristina. Isso aqui é da coletividade.

Para contatos e parcerias, o número de Whatsapp da iniciativa é 11 – 99527-5368. 

Edição: Glauco Faria