A melhor época da nossa vida: Para ecoar as vozes que tiveram coragem

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Antonio Scurati, renomado autor italiano e criador da aclamada trilogia “M” sobre Mussolini (Intrínseca, 2022), acaba de ter sua obra mais recente lançada do Brasil.

A melhor época da nossa vida: Para ecoar as vozes que tiveram coragem | Diário Carioca

O livro A melhor época da nossa vida, conta a história de Leone Ginzburg, jovem intelectual que se recusou a jurar fidelidade ao fascismo.

O escrito foi lançado pelo Selo Manjuba, selo de não-ficção da Editora Mundaréu, com tradução de Federico Carotti.

Em 8 de janeiro de 1934, ao recusar jurar fidelidade ao fascismo, o jovem italiano se tornou um símbolo de resistência e integridade.

Expulso da universidade por sua coragem, Ginzburg se une à Resistência, funda uma editora e constrói uma família, enquanto enfrenta os horrores do regime totalitário que assola a Itália.

Sua trajetória culmina tragicamente em 1944, quando é assassinado em uma prisão em Roma.

Scurati entrelaça com destreza e sensibilidade literária a história de Ginzburg com a de suas próprias famílias, os Scurati e os Ferrieri.

Além disso, mescla a vida de Ginzburg, um intelectual de estatura moral incomparável, com as experiências de pessoas comuns que também lutaram contra a opressão, destacando a força coletiva da resistência em tempos sombrios.

Em um contexto onde movimentos de extrema direita ganham força na Europa, reverberar histórias como essa se faz necessário.

O autor aponta para a confusão e a falta de raízes que muitos jovens enfrentam hoje, ecoando a luta de Ginzburg e seus colegas por valores humanistas. Além disso, nos convida a refletir sobre ética e integridade, virtudes essenciais que parecem cada vez mais necessárias.

Leia, com exclusividade, um trecho da obra.

Boa leitura!

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I

Em 8 de janeiro de 1934, Leone Ginzburg diz “não”. Ainda não completou 25 anos, mas, dizendo “não”, encaminha-se para o seu fim. Embora empunhe apenas uma caneta, dá aquele primeiro, extremo passo com a elegância vigorosa e resoluta de um esgrimista que posiciona o punho em terça, com a arma em linha:

“Ilustre professor, recebo a circular do Magnifico Reitor, na data de 3 de janeiro, que me convida a prestar juramento, no dia 9 do mês corrente às onze horas da manhã, com a fórmula estabelecida pelo Texto Único das leis sobre o Ensino Superior. Renunciei há algum tempo, como o senhor bem sabe, a seguir a carreira universitária e desejo que ao meu desinteressado ensino não se coloquem condições a não ser técnicas ou científicas. Não pretendo, portanto, prestar juramento”.

O juveníssimo livre-docente de literatura russa empunha apenas uma caneta; provavelmente a utiliza sentado e, no entanto, se ergue contra os símbolos de morte, com a guarda alta, em contraposição constante. Ginzburg traça no papel poucas frases, sem nenhuma retumbância romântica, nenhuma encenação dramática, somente aquele gesto límpido no ar desimpedido que permanecerá sempre o ideal que lhe foi transmitido por mestres próximos e vivos, e, no entanto, o gabinete de onde dirige aquelas poucas palavras a Ferdinando Neri – diretor da faculdade de letras e seu orientador de tese – se enche de ecos de outros mestres, mestres distantes e perdidos, homens que selaram a sua existência cortando uma artéria com a lâmina de uma navalha. Enquanto Ginzburg escreve o seu “não” ao fascismo, no gabinete ressoam frases antigas, vindas até ali de mundos distantes. Não pretendo jurar. A honra é uma justificada recusa. A honra é obedecer sem se abaixar. A honra é sentir a beleza da vida.

De todo modo, com ou sem retumbância, quando Ginzburg pousa a caneta, está rompida a espada. Rompendo com essa recusa a sua carreira promissora e, de certo modo, a vida, Leone Ginzburg, ainda não tendo completado 25 anos, ingressa na restrita comunidade daqueles homens dos quais depende a sobrevivência de todos os outros.

No momento em que Leone Ginzburg diz não, faz dois anos e quatro meses que a obrigação para os professores universitários de jurar fidelidade ao fascismo está em vigor. Foi decretada em agosto de 1931, por sugestão do ministro da Educação nacional, o filósofo Balbino Giuliano, imposta pela primeira vez em outubro do mesmo ano e depois estendida também aos livres-docentes [1] no verão de 1933. Quem se recusasse a jurar perderia a cátedra. Sem aposentadoria, nenhuma indenização, condenado ao isolamento. Eis a fórmula do juramento: “Juro ser fiel ao Rei, aos seus reais sucessores e ao Regime Fascista, observar lealmente o Estatuto e as outras leis do Estado, exercer o ofício de professor e cumprir todos os deveres acadêmicos com o propósito de formar cidadãos operosos, probos e devotados à Pátria e ao Regime Fascista”.

Nos 28 meses que separam a promulgação da lei fascista e a recusa de Ginzburg em se submeter, somente treze catedráticos de universidades estatais se recusam abertamente a jurar, perdendo cátedra, aposentadoria e salário. Treze em quase 1.300. Cabe lembrar os seus nomes.

Chamam-se Ernesto Buonaiuti, Mario Carrara, Gaetano De Sanctis, Giorgio Errera, Giorgio Levi Della Vida, Fabio Luzzatto, Piero Martinetti, Bartolo Nigrisoli, Enrico Presutti, Francesco e Edoardo Ruffini, pai e filho, Lionello Venturi e Vito Volterra. Três deles são judeus, quatro lecionam em Turim, quatro em Roma, um em Nápoles, somente um na Universidade de Milão, Piero Martinetti, ele também piemontês. Entre eles não há um único docente de história moderna nem um professor de literatura. São todos catedráticos insignes, homens maduros ou idosos, salvo Edoardo Ruffini, de longe o mais jovem, mal chegado aos trinta anos. Serão todos expulsos em poucos meses.

À exceção desses treze, todos os demais juram. Até os antifascistas professos. Alguns o fazem para não privar a universidade do seu magistério de livres-pensadores, para permanecer no seu “posto de combate”. Abaixam a cabeça, mas cerram os punhos. Seguem a linha do Partido Comunista e o conselho de Benedetto Croce, o grande filósofo liberal, bandeira da resistência intelectual ao regime, o único italiano a quem o fascismo permite uma dissidência explícita: não deixem a universidade nas mãos dos fascistas, sugerira ele.

Mas são poucos os que se dobram para continuar a combater. A maioria esmagadora, cabe dizer, se deixa levar por motivações em geral modestamente ignóbeis. Abaixam a cabeça e só. Juram, assinam, alinham-se. Pagam a permanência na classe culta com um batismo de torpeza. Homologados na lista, encastelados nas suas cátedras, os letrados traem. Vale para quase todos aquilo que Gioele Solari, ilustre filósofo do direito, venerado mestre de numerosos antifascistas, dirá de si mesmo, terminada a guerra, em 1949: “Não tive a coragem nem do exemplo, nem do sacrifício”.

Por outro lado, enquanto Leone Ginzburg, entre as paredes do seu gabinete, sem retumbâncias românticas e permanecendo sentado, diz “não” ao fascismo, no lado de fora, nos corredores da universidade e do mundo, o estrondo destruidor se desencadeia triunfante.

Naquele mesmo 1934, a cerimônia de inauguração do ano acadêmico é modificada. Suprimido o tradicional discurso inaugural, o rito se concentra numa novidade espetacular: a parada militar dos jovens universitários enquadrados nas organizações fascistas. Enquanto Ginzburg diz “não” no seu gabinete, poucos metros mais adiante, nos pátios da universidade, os Jovens Universitários Fascistas desfilam de camisa negra sob a insígnia da dupla “livro e mosquete”. O reitor Silvio Pivano aproveita a ocasião para desvelar na aula magna uma lápide dedicada aos “Mártires da Revolução Fascista”. Talhadas na pedra, as palavras auspiciosas encadeiam a glória passada à presente, e esta ao futuro: reevoca-se o “caráter pelos séculos romanamente forjado”, pressagia-se o desabrochar de “uma Era lançada aos séculos futuros, a Era Fascista”. No horizonte do mundo, em todas as três estases do tempo, nada senão o fascismo.

O texto foi sugerido por Cesare Maria De Vecchi, quadrúnviro da marcha sobre Roma, primeiro comandante da Milícia fascista, governador e último colonizador da dita Somália italiana, a quem a faculdade de letras acaba de conceder a livre-docência em história do Risorgimento. Um homem que, tornando-se ministro da Educação nacional, logo guiará aquilo que ele mesmo, com a delicadeza de um comandante de bombardeiros, definirá como “saneamento fascista da cultura nacional”. Fará isso implementando uma visão que o havia inspirado em 1933, quando, em visita aos imensos canteiros de obras no centro de Roma devastado pela “regeneração” desejada pelo regime, anotara em relação ao mundo universitário: “Golpes de picareta são necessários […] para reabrir canais na terra novamente rasgada, de forma que todas as águas confluam para o grande rio”. De Vecchi rasgará e saneará a universidade obedecendo a Mussolini, que vira na universidade “o último reduto dos inimigos do Estado” e ordenara: “Fascistizar ainda mais os ângulos mortos da vida nacional!”.

[…]

“Vi siete spartut ’o suonno” [Vocês dividiram o mesmo sonho]. É com esse argumento que todos o incentivam a ir. Peppino Ferrieri resiste. Esquiva-se.

Estamos em 1954, e é a história da sua vida de artista fracassado que o vem encontrar. Totò, o grande Totò, voltou ao rione Sanità, onde cresceu na miséria junto com Peppino. Agora está aqui de novo, poucas centenas de metros mais adiante, além da via Foria e da via Vergini, para rodar o episódio do pazzariello do filme O ouro de Nápoles.

Todos na família incentivam Peppino a ir cumprimentá-lo. Ele resiste. Esquiva-se. Totó agora já é um astro, uma celebridade nacional, talvez o homem mais popular da Itália. Peppino está acostumado a vê-lo gigantesco na tela do cinema, gigantesco e até a cores. Além disso, desde que o marquês De Curtis, o seu pai natural, o reconheceu e um outro marquês o adotou, o filho de Annina Clemente se tornou um príncipe, o “príncipe da risada”.

No fim Peppino se decide. O que o convence é o receio da grosseria: a um velho amigo que volta para casa cabe, no mínimo, uma saudação de boas-vindas. Então Peppino Ferrieri tira do armário o seu belo terno, engraxa os sapatos e coloca um lenço no bolsinho. Sai do baixo da via Setembrini, passa sob o arco da Porta San Gennaro, atravessa a via Foria, sobe a via Vergini e está no set. Dez minutos de caminho para cobrir trinta anos de vida.

O set está cercado por uma multidão em festa, delimitado por um cordão de isolamento. Peppino se faz anunciar. Totò está na maquiagem. O assistente de produção fica relutante. “Sou um velho amigo”, acrescenta timidamente Peppino. “Ah, sim, vocês todos são velhos amigos”, rebate o outro.

Assim que o grande ator é informado da visita, ele suspende a sessão de maquiagem e o manda chamar. Peppino é conduzido até um carro de grande cilindrada com as janelas escurecidas. O príncipe De Curtis o está esperando no banco de trás. Quando o amigo entra, ele o observa por um instante. Passaram-se mais de vinte anos desde a última vez que se encontraram. Depois Antonio Clemente abraça afetuosamente Peppino e manda o chofer levá-los a passear pela cidade.

“Para onde quer que eu me dirija, príncipe?”, pergunta o motorista.

“Para o mar, vá para o mar, Gaetano.”

Totò pega as mãos de Peppino entre as suas. Está visivelmente comovido. Ambos estão. Peppino, subjugado pela emoção, ainda não conseguiu dizer uma única palavra.

“Então, Peppino, me diga, como vai você?”, incentiva-o Totò.

“Vou bem, príncipe, vou bem”, consegue dizer Peppino.

“Peppi’, mas que príncipe! Faça-me o favor!”, Totò zomba dele, bem-humorado, com um famoso bordão seu. É a primeira vez que o velho amigo pede a Peppino que não se dirija a ele com aquele título honorífico. Não será a última.

Enquanto o carro atravessa a piazza Dante, desce de Toledo em direção ao mar, os dois homens recordam os tempos idos. Antes de mais nada vem a miséria. Relembram quando, depois da Primeira Guerra Mundial, Totò percorria a pé a cidade com os sapatos esburacados para chegar às salas dos subúrbios onde encenava a caricatura do “Bel Ciccillo”, e Peppino, ainda rapazinho, o seguia passo a passo. Almoçavam, quando conseguiam, pão rústico e ricota fresca que os ambulantes vendiam de colher em cestinhos de vime.

“Bons tempos, príncipe, bons tempos”, suspira Peppino. O outro precisa convidá-lo de novo a deixar o epíteto de lado.

O motorista entra na Caracciolo e faz a volta da Villa Comunale. Totò abaixa o vidro da janela. O azul-ofuscante do golfo o atinge como uma bofetada. Diante deles, a massa normanda do Castel dell’Ovo fecha um horizonte do contrário ilimitado e insustentável. Atrás deles, na colina de Posillipo, entreveem-se os perfis dos guindastes que a desventram.

“Você se casou, tem filhos?” Totò faz sinal para o motorista diminuir a velocidade e pede a Peppino que lhe conte a sua vida. Peppino a resume na distância de uma praia. Conta o encontro com Ida, o casamento, o banimento da família de origem, a criação da nova, os filhos, a guerra, as dificuldades, as bombas, os homens com armas nos telhados, as facadas nas costas, os caminhões Americanos.

“E o teatro, Peppi’, o teatro?”, Totò quer saber.

“O teatro continua sendo a minha grande paixão, príncipe.”

A beira-mar terminou, o carro sobe de volta do porto em direção às vielas do centro. Peppino se ilumina, por um instante, mostrando ao amigo, célebre também pela sua imitação de uma marionete, como se manuseiam os títeres. Totò, o príncipe da risada, sorri.

Menos de uma hora depois, o automóvel voltou ao ponto de partida.

Totò tem um momento de hesitação, de silêncio. Um instante de suspensão sacral, como quando uma procissão do santo patrono se detém antes de se pôr novamente em marcha. Depois pega outra vez as mãos do amigo e lhe diz: “Agora preciso voltar para o set. Diga-me, Peppi’, precisa de alguma coisa?”.

Peppino estremece. É um estremecimento de consternação, não de ofensa. Peppino sabe que Totò tem fama de ser generoso e discreto em sua generosidade com a gente pobre do bairro em que cresceu, e sabe também que faz parte dessa gente pobre. Apesar disso, apesar de qualquer miséria, a ideia de ir encontrar o velho amigo para lhe pedir dinheiro nunca lhe passaria pela cabeça. Ele explica isso ao amigo, humildemente.

“Você está enganado, príncipe…”

E aqui a lenda da família diz que o gênio de Totò, ouvindo a profissão de digna humildade do amigo, quis conferir um final feliz, uma esperança cômica, também a essa cena distante das cenas. Parece que Totò pegou por uma última vez as mãos de Peppino Ferrieri entre as suas e lhe disse:

“Mas qual príncipe e príncipe… Peppi’, aqui o verdadeiro príncipe é você.”

O chofer abre a porta. Um homem desce. O automóvel volta a partir levando embora o príncipe De Curtis que Peppino Ferrieri nunca mais verá, a não ser na tela gigantesca do cinema.


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De pé, na esquina entre a via Foria e a Porta San Gennaro, sozinho entre os escombros dos edifícios arruinados desse eterno pós-guerra, Peppino Ferrieri é tomado por um pressentimento. Entra em sintonia com um outro tempo, um tempo mais vasto. Agora sabe que tem uma herança, algo para contar a quem fica. Pressente que narrará esse episódio com Totò aos seus filhos, e estes aos filhos dos filhos. Alguém, algum dia, talvez, até o escreverá num livro.

Depois Peppino tira duas liras do bolso e compra de um ambulante uma xícara de caldo de polvo. Pede para colocarem também um tentáculo. A vertigem se consuma. O tempo se reapruma. É hora do almoço. Um meio-dia qualquer num final de primavera numa cidade e numa nação a serem reconstruídas. Peppino ruma para o açougue. Aguarda-o a vida que lhe resta viver.

NOTAS

[1] O termo italiano libero docente corresponde mais propriamente à nossa atual figura de professor colaborador, isto é, que não é professor efetivo, não faz parte do corpo docente permanente da instituição, não é estatutário nem tem estabilidade na função. [N. T.]


Raíssa Araújo Pacheco

Redatora do Outros Quinhentos. Formada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta de moradia e direito à cidade.

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