Carnaval de Porto Alegre traz cultura, resistência e temas sociais para a avenida

O Carnaval é uma grande brincadeira com fundo de verdade. Por trás dos sorrisos e dos corpos dançantes, existe ali uma cultura em resistência que sobrevive e se expande apesar dos constantes ataques de alas conservadoras da sociedade. A escola de samba, a agremiação que institucionaliza esses esforços, não foge a esta definição. O colorido alegre das fantasias e alegorias, o ritmado da bateria, todas essas nuances de celebração fundem-se com a história e os percalços de comunidades que arcam com o prejuízo de viver em um país tão desigual.

No desfile do Carnaval de Porto Alegre, que acontece nas noites desta sexta-feira (3) e sábado (4), no Complexo Cultural do Porto Seco, diversas escolas de samba trazem à avenida enredos marcados pela temática social e pelo olhar crítico às mazelas humanitárias. Uma tendência vista com maior força nos últimos anos, tanto na capital gaúcha quanto nos badalados desfiles de Rio de Janeiro e São Paulo.

Direito à moradia na avenida

Um dos exemplos mais categóricos é o tema da Sociedade Cultural Beneficente e Carnavalesca Império do Sol, que fala sobre o direito à moradia como uma prerrogativa essencial do ser humano. A escola é do município de São Leopoldo e desfila na noite de domingo.

Segundo Ramão Carvalho, vice-presidente da escola, a ideia do enredo surgiu de um dos componentes da escola que trabalha na construção civil. “Pensamos na questão social em nível de Brasil, os problemas históricos que a gente teve desde o ‘Ponha-se na Rua’ de Dom João VI e o ‘Bota Abaixo’ de Pereira Passos, que culminou no surgimento de grandes favelas e conglomerados”, conta.

A luta social pelo sonho da habitação é uma das marcas do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), que com 33 anos de trajetória e forte presença em São Leopoldo, faz parte do desfile da Império do Sol. A assistente social de formação e coordenadora estadual do movimento, Karina Camillo Rodrigues, é uma das militantes que vai pra avenida e saúda que as escolas de samba tratem de temas sociais.

“São Leopoldo recebeu muitas pessoas vindas do êxodo rural a procura de trabalho. O que gerou muitas ocupações, que se transformaram em bairros, vilas e loteamentos, alguns regularizados pelo município e outros pelas cooperativas, que são as ferramentas do MNLM”, conta Karina.

Realidade ainda presente, pois a cidade ainda tem muitas ocupações irregulares, em que o MNLN está inserido e organizando as comunidades. Por esse motivo, expõe a militante, a escola de samba procurou o movimento para representar sua luta.

“Levamos para a escola que para falar de habitação precisava levar pra avenida a realidade do povo que mora nas ocupações. Então vai estar lá destacada uma lona preta, em que terão várias frases que traduzem o que é viver numa ocupação: sem água, no escuro, em casas insalubres construídas conforme sua condição e convivem com mosquitos, doenças”, adianta.

Ela conta ainda que o MNLN vai compor uma ala com militantes fantasiados com a logo do movimento e com uma bandeira. Destaca também que estarão retratadas a diversidade de pessoas que vivem nas comunidades, do povo LGBT, do povo negro, da juventude, e que vai trazer também as conquistas, como a entrega das chaves, que simboliza o sonho da casa própria.

Carnaval resgata aspectos que não são contados da cidade e de seus personagens / Foto: Alex Rocha/PMPA

Histórias e personalidades de resistência

Quando não abordam problemáticas de maneira direta, os enredos do desfile carnavalesco costumam evocar figuras, lugares ou acontecimentos para contemplar de maneira generalizada diferentes questões que sublinham o sujeito retratado. É o caso da Sociedade Beneficente Cultural Realeza, que convoca as multidões a ouvir a história de Nega Lu. A personagem ícone da cena cultural e artística de Porto Alegre, encarnada por Luiz Airton Farias Bastos, traz consigo a expressão da resistência da comunidade LGBTQIA+ e das tradições do povo negro.

Carnavalesco da Realeza, Luiz Augusto Lacerda relembra que no final do carnaval de 2022, enquanto concluíam as alegorias, o presidente da escola de samba, Mauro Côrrea, perguntava diariamente se ele já tinha enredo para o próximo ano. “Eu dizia que já mas não tinha. Nós encerramos o desfile e quando eu chego na dispersão o presidente abre os braços e pergunta novamente. Atrás dele eu enxerguei a Nega Lu dando uma risada e respondi: tenho sim, vai ser Nega Lu”, conta.

A pesquisa para a construção da narrativa foi baseada no documentário Nega Lu (2015), de Ana Mendes e Natália Bandeira, bem como no livro Nega Lu – Uma Dama de Barba Malfeita, de Paulo César Teixeira. Segundo ele, ainda que inspirado em obras biográficas, a ideia da Realeza vai além do relato memorial.

“A proposta não é fazer uma biografia: nasceu, viveu e morreu. Mas sim a trajetória de um ícone da cena artística de Porto Alegre e das suas tradições”, comenta Lacerda. Um dos colaboradores da escola é o ator e carnavalesco carioca Marcelo Adnet, que brindou à Realeza, junto a seus colegas de composição, o samba-enredo que vai embalar a apresentação que fecha o Carnaval porto-alegrense.

Difundir a história e a cultura

Homenagear os espaços que transformam a cidade no que ela é também é uma das tendências de enredo comuns na história do Carnaval. A Sociedade Beneficente Recreativa Imperadores do Samba aposta este ano em uma linha narrativa que já rendeu os louros de campeã no desfile de 2022. Se anteriormente a Imperadores cantou os palcos da cidade como o Anfiteatro Pôr do Sol, o Teatro Renascença e outros ambientes da cultura na Capital, agora a localidade é única: o Theatro São Pedro. A letra lembra que “mãos negras erguem o palácio”.

“A Imperadores do Samba tinha por tradição subir ao palco do Theatro São Pedro para a apresentação do seu carnaval ao grande público. Nós tentamos resgatar esse laço da escola com o teatro, de forma que conversamos com a direção do teatro e encontramos uma possibilidade no fato de que o próprio teatro está completando 165 anos e vai passar por uma reforma”, relata Fábio Castilhos, secretário da Imperadores e um dos elaboradores do tema.

Segundo ele, nada mais justo que resgatar essa narrativa junto ao Theatro São Pedro, “que abriga não apenas a cultura erudita como também abraça e apoia as apresentações culturais da cidade e de todo o estado”. Ele conta que muitos dos integrantes da escola de samba nunca haviam entrado no Theatro e não tinham a dimensão do que ele é e do que representa. “A Imperadores tem esse papel social: não é só fazer carnaval, mas através do carnaval produzir e difundir cultura”, completa.

Temáticas que tratam das mazelas do povo brasileiro retornam à avenida no Carnaval de Porto Alegre / Foto: Ricardo Giusti/PMPA

Variadas expressões populares

Outras agremiações também evidenciam de maneira contundente as lutas sociais em seus enredos. A Sociedade Beneficente Cultural e Recreativa Imperatriz Dona Leopoldina carrega em seu samba a defesa da cooperação entre as populações marginalizadas em seu empenho por sobrevivência e reconhecimento. Já a Sociedade Recreativa Beneficente Estado Maior da Restinga irá carnavalizar a história de Anastácia, uma mulher escravizada que é tida como operadora de milagres pela crença popular. De maneira semelhante, a Sociedade Recreativa Beneficente e Cultural Fidalgos & Aristocratas representará Xica da Silva, importante personagem histórico do Brasil colonial.

Elementos típicos de um desfile, tais quais a religiosidade de matriz africana e a rememoração de personalidades e entidades que desenvolveram a cultura carnavalesca, são um denominador comum a quase todos os enredos.

Temas sociais voltam com tudo após a crise política do país

O professor do Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB), Jackson Raymundo, afirma que temas de cunho político e social tiveram um forte retorno aos sambas enredos das escolas de samba os últimos anos, tanto em Porto Alegre, quanto em outras cidades brasileiras. Durante suas pesquisas de mestrado e doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (URGS), que tratou da poética dos sambas enredos, ele descobriu que o fenômeno já ocorreu em outros momentos da história do país.

Entre eles, no final dos anos 70, houve um ciclo em que o próprio carnaval esteve em destaque. Já na década de 80 e nos anos seguintes à redemocratização do país, houve um “boom expressivo, linguístico e temático onde muita coisa que não podia ser dita passa a ser, sem grandes melindres, no período em que o Brasil vivia uma efervescência democrática”.

Depois, segundo o professor, houve um período dos chamados “enredos CEP”, que remetiam a locais, cidades, estados, ou falando de aspectos diversos da cultura, mas sem a crítica social mais acentuada. Foi com a crise política que o Brasil passou a enfrentar em 2015 e que culminou com o impeachment da ex-presidenta Dilma Roussef que os enredos críticos e mais politizados voltaram com tudo.

“Também nos anos do período após 2019 e 2020, quando voltou com tudo no Rio de Janeiro, por exemplo, os sambas falando das histórias que a história não conta, em especial dos personagens negros e indígenas da história”, comenta. “O que também é um diferencial do carnaval de Porto Alegre, que desde sempre trouxe a presença dos enredos afro, dos temas envolvendo personalidades negras. Mas de fato isso acaba tendo uma recorrência maior nos anos de crise.”

Desfiles terão transmissão ao vivo

Os desfiles das escolas de samba de Porto Alegre acontecem nesta sexta-feira (3) e no sábado (4). A abertura dos portões no Complexo Cultural do Porto Seco será às 16h. A expectativa da Prefeitura é de que cerca de 20 mil pessoas compareçam ao sambódromo.

Quem não for à avenida poderá assistir ao Carnaval 2023 pelos canais do YouTube da Prefeitura de Porto Alegre ou Cubo Play, e também pelos canais abertos de televisão TVE e TV Brasil. 

O YouTube da Prefeitura, a plataforma Cubo Play e a TVE transmitirão todos os desfiles, que na sexta-feira se inicia às 20h e no sábado, às 19h20. Já pela TV Brasil será possível acompanhar as escolas da Série Ouro, a partir da meia-noite de sexta e sábado.

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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko