"Sociedade só tem olhos para aquilo que quer esconder" dizem autores de filme sobre prisões

O Brasil tem a terceira maior população prisional feminina do mundo, na maioria constituída por mulheres pobres, negras ou pardas e com baixa escolaridade. Dois terços são mães, 57% têm mais do que um filho e muitas são as únicas responsáveis pelo sustento da família. No Rio Grande do Sul o contingente de encarcerados são de 43.472, sendo 2.492 mulheres. 

O documentário Olha pra Elas, da diretora Tatiana Sager e os roteiristas Renato Dornelles e Luca Alverdi, rodado em seis unidades prisionais femininas do Rio Grande do Sul e de São Paulo, apresenta o cotidiano de mulheres que, em comum, são mães e vivem longe dos filhos e filhas. Destacando a vida e rotina de Adelaide, Tatiana, Tatiane, Naiane e Roselaine, que representa uma questão de gênero e a realidade de mais de 40 mil mulheres brasileiras.

:: Filme ‘Olha pra Elas’ narra o impacto familiar dramático da prisão de mulheres ::

O filme de 75 minutos também apresenta depoimentos de especialistas, como juízes, promotores e sociólogos. Olha para Elas já foi exibido no FESTin (Festival de Cinema Itinerante de Língua Portuguesa) e Festival Caminhos do Cinema Português (Portugal), València Film Indie Festival (Espanha) e no III Festival Cinema Negro em Ação (Rio Grande do Sul – Brasil). A produção também conquistou o troféu de 3º melhor documentário do 37º Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo. 

Coproduzido pela Panda Filmes e Falange Produções, o documentário Olha pra Elas estreia em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre no dia 11 de maio. O longa-metragem é assinado pelos mesmos realizadores do premiado Central – o poder das facções no maior presídio do Brasil (2017), que revelou as entranhas do Presídio Central de Porto Alegre. 

“Pessoas ricas não ficam na cadeia. Não são confundidas. Tem um habeas-corpus e são tiradas na hora” / Foto: Fabiana Reinholz

O Brasil de Fato RS conversou com os realizadores.

Abaixo a entrevista completa:

Brasil de Fato RS – Como foi a produção do Olha pra Elas. Em 2019, o documentário estava em processo de gravação, daí veio a pandemia… 

Renato Dornelles – Começamos a produzir material audiovisual em 2013, com o Poder entre as Grades, que era um projeto da Tatiana, baseado no meu livro Falange Gaúcha. Na sequência, veio o (documentário) Central, e depois veio o Retratos do Cárcere, que foi lançada como série de TV. Quando estávamos fazendo Retratos do Cárcere, era um só episódio sobre o encarceramento feminino que não tínhamos abordado nunca, dada a complexidade do tema. Pensamos em ampliar para três episódios, mas aí também pensamos que era pouco. Havíamos feito um longa-metragem sobre encarceramento masculino, então pensamos que também tínhamos que fazer sobre o feminino. 

Tatiana Sager – É absolutamente diferente do encarceramento masculino, quase que da água para o vinho. No encarceramento feminino as pessoas falavam, respiravam e pensavam o tempo todo na família e nos filhos. As conversas eram essas. Diferentemente dos homens, que eram de missões para cumprir, a situação da facção, de ordens dadas para serem executadas fora da cadeia, mas sempre relacionadas ao crime e não à situação de família e dos filhos. 

Renato – Por 33 anos fui jornalista de órgãos de imprensa, boa parte na área de segurança pública. Também nesse período escrevi o livro Falange Gaúcha. Fizemos o Retrato do Cárcere que era o curta, depois o Central. Sempre nos dando conta que estávamos abordando algo importante, que é o encarceramento em si. E a relação desse encarceramento com a criminalidade e a segurança pública, mas sempre o masculino.

A mãe foi presa, o pai está preso e o filho acaba também se envolvendo com o crime Nos demos conta de que tudo era reflexo de como a sociedade pensa. Conseguimos fazer com o Central que as pessoas tivessem uma visão de que o encarceramento interferia na vida delas. Aí se interessaram pela questão do encarceramento, mas o encarceramento masculino. E por quê? Porque o encarceramento masculino influencia na segurança pública, na medida em que as facções dominando os presídios, comandam o crime aqui fora e isso interfere na vida da sociedade. 

Já a questão das mulheres não tem uma interferência direta na vida da sociedade em um primeiro momento. Não interferem na segurança pública.

Mas isso gera um problema social e cria ciclos. Os filhos ficam abandonados, mais vulneráveis. Esses filhos, alguns até por essa questão de vulnerabilidade, acabam cooptados pelo crime. E isso redunda em um ciclo em que a mãe foi presa, de repente o pai – se é que o pai assumiu a criança, se o pai é presente ou não – também está preso e o filho acaba também se envolvendo com o crime.  

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Mas a sociedade não tem olhos para os problemas sociais. Tem olhos para aquilo que lhe incomoda, para aquilo que lhe aflige e quer esconder. Esses filhos só vão ter visibilidade quando cometerem um delito. Aí sim a sociedade vai pregar que eles têm que ser presos. Antes disso ninguém se preocupa. 

Tatiana – Muitas dessas mulheres são mães. Estava falando com a diretora do presídio de Guaíba e sempre calculávamos de que 2/3 das mulheres que estão presas têm filhos. Ela disse que chega a quase 90%. Outro ponto é que a maior parte das visitas que elas recebem são de companheiras lá dentro do presídio, e não de companheiros. É a mulher que acaba indo visitar. É um número muito reduzido de homens. 

As mães perdoam os filhos quando erram, mas não perdoam as filhas Renato – O filme tem um recorte disso lá em Caxias (do Sul). Eram 75 mulheres e, se não me engano, cinco homens que as visitavam. Enquanto 80% dos homens recebem visitas das mulheres. 

Renato – Os pais não visitam se estão com as crianças. No Dia das Crianças, as mulheres levam os filhos para verem os pais no presídio. A grande maioria dos pais não está mais com a criança. É o machismo que interfere inclusive nas mulheres. Há levantamentos que mostram que as mães, que são um número expressivo de visitantes nos presídios masculinos, elas perdoam os filhos quando os filhos erram, mas não perdoam as filhas. Uma questão moral porque as mulheres não podem errar, crime é coisa de homem, o homem errou, mas pode ser perdoado, mas agora as mulheres… 

BdFRS – Muitas avós ficam com os filhos? 

Tatiana – Normalmente são as avós que ficam com os filhos. Filhas também cuidam dos mais novos, filhos mais velhos cuidam dos mais novos. A grande maioria dessas mães são mães de filhos de diversos parceiros, de dois a três parceiros. O pai já abandonou e a mãe é a estrutura da casa. É quem sustenta. E muitas vezes acaba entrando no tráfico de drogas justamente porque é uma forma de trabalhar dentro de casa. Não precisa sair, ser diarista. Praticamente toda a população carcerária feminina, assim como a masculina, é de pessoas absolutamente pobres, pretas e periféricas. 

Aqui talvez não tenha tantas pessoas negras dentro do presídio como no resto do Brasil porque o índice de negros no Rio Grande do Sul é de 18%. Mesmo assim, dentro do sistema carcerário, é o dobro desse percentual, chega a ser de 30 a 40%. 

Mais de 60% das presas estão lá por tráfico de drogas. São pessoas absolutamente pobres, pretas e periféricas BdFRS – E essas mulheres que estão ali, que são brancas, são na maioria da periferia?  

Tatiana – São sim. Noventa e oito por cento dependem da Defensoria Pública. Raro estar preso alguém que tenha advogado particular. Normalmente é quem cometeu crime de morte ou coisa assim. Mais de 60% das presas estão lá por tráfico de drogas. 

Renato – 60% é a média nacional. Se tu, por exemplo, pegares a penitenciária de Guaíba, vai ser um índice alto, porque vão para lá as presas consideradas mais perigosas.

Tatiana – Enquanto que, no encarceramento masculino, a média é menor do que 40%. 

BdFRS – E muitas se envolvem a partir da relação…

Renato – Às vezes nem se envolvem. É simplesmente por manterem o relacionamento. A polícia vai dar uma batida na casa e pega quem está lá. Se o companheiro é traficante, a polícia pega ele em casa e, se a companheira está junto, pega como se fizesse parte. 

Tatiana – Muitas delas também por serem obrigadas a levar drogas para dentro das prisões em função de ameaças que o companheiro sofre lá dentro. Ou para amenizar a situação do companheiro dentro das prisões. Temos muitos casos, nós mesmos acompanhamos, no próprio Central colocamos um caso de uma menina que foi levar droga para o companheiro e que agora também no Olha pra Elas ela aparece. 

Renato – Essa do Central que foi pega hoje é minha diarista. Mas, voltando um pouquinho no caso das avós que tu perguntastes: no filme tem o caso de uma presa que fala que a mãe dela está com 10 netos em casa. Sete dessa presa e três da irmã que foi assassinada. E tem mais um neto que, durante as filmagens, estava no presídio com essa presa. E se a mãe dela não assumisse, eles iam acabar em abrigos. 

BdFRS – Quanto tempo vocês acompanharam essas mulheres? 

Renato – Do final de 2017 para cá. Com algumas perdemos contato, queremos retomar agora. Mas acompanhamos a Adelaide. Até hoje ela manda recado para Tatiana. 

“No governo Bolsonaro passou de 600 mil para 990 mil o número de presos” / Foto: Fabiana Reinholz

BdFRS – Que é uma das protagonistas do filme? 

Tatiana – São várias histórias. Conseguimos, com a Adelaide, levar os filhos para ela ver depois de dois, três anos que ela estava sem vê-los. Sempre mudam as regras dentro dos presídios e as pessoas, quando conseguem chegar lá, não conseguem entrar, não conseguem telefonar, não conseguem se comunicar com as mães… 

Uma das coisas que descobri, não sabia que era tão frequente, é a tentativa de suicídio nos presídios. É uma coisa absolutamente constante. Quase duas vezes por semana, lá em Guaíba, por exemplo, estão tentando salvar alguém que tentou se matar. 

A tentativa de suicídio nos presídios é uma coisa absolutamente constante Renato – Suicídio não se noticia, não se sabe o número exato, mas há um alto índice. É grande também o número de homens (que se suicidam) por causa da droga, tanto que as facções usam para mascarar assassinatos, simulam suicídios. Na década de 1990, simulavam enforcamentos. Mais recentemente simulavam o suicídio por overdose. As pessoas que não são do crime perdem o chão. Quando recebem a informação da condenação se desesperam. 

BdFRS – No filme A Torre das Donzelas havia a questão de como as presas se organizavam e se cuidavam dentro da prisão. Eram presas políticas, um outro contexto. Existe isso? 

Tatiana – Existe e muito. Um dos filhos da Adelaide, num período curto, estava com uma amiga que saiu da prisão e que ficou tomando conta dele porque não tinha com quem deixar. A irmã não podia e as filhas cada uma delas tinha seus próprios filhos. 

Renato – Estou lendo esse livro Solidariedade e Gregarismo nas Facções Criminosas. Isto está por trás até do próprio crime organizado, a questão da solidariedade, de se apoiarem. A palavra que eles mais usam é se apoiarem. Começa lá na década de 1970 quando presos comuns começam a ter contato com presos políticos. Eles veem que os presos políticos se organizam para sobreviver. E aí os demais presos também começam a se organizar. Só que, claro, usaram a organização para o crime. As mulheres continuam usando para a sobrevivência e a sobrevivência dos filhos. 

Mulheres heterossexuais acabam, durante o cárcere, tendo um período homossexual pela falta de afeto BdFRS – E vai ao encontro do que vocês falaram, do abandono dos maridos e dessa rede de solidariedade entre as mulheres. 

Renato – Sim e uma das coisas que acontece também é mulheres que são heterossexuais e que acabam, lá dentro, durante o período de cárcere, tendo relação homossexual pela falta de afeto, pela falta de carinho, porque estão totalmente abandonadas. E muitas delas quando saem retomam relações heterossexuais. 

“É grande também o número de homens (que se suicidam) por causa da droga, tanto que as facções usam para mascarar assassinatos, simulam suicídios” / Foto: Fabiana Reinholz

BdFRS – E muitas vezes também para ter uma proteção …

Renato – Uma proteção, com certeza. Parentes de familiares falaram que a mãe tinha contado que dormia, nas primeiras noites, abraçada com pessoas que nem conhecia, abraçada com outras mulheres. 

BdFRS – O nome Olha pra Elas é uma convocação, precisamos olhar para essa realidade… 

Tatiana – Tem uma imagem dentro do próprio presídio, e que a gente gravou, uma pichação na parede: olha elas. E daí essa mensagem nos inspirou para colocar esse nome, invés de olha elas, Olha pra elas. 

BdFRS – O filme está tendo uma boa repercussão, vocês tiveram um pré-lançamento na Casa de Cultura que lotou, teve duas sessões…

Renato – Antes de terminar já tinha fila de novo. E aí nos lembra também a trajetória do Central, porque o pré-lançamento tivemos que pegar uma sala extra porque também era muita gente. Como o nosso objetivo principal é fazer com que as pessoas vejam e reflitam, começa bem o Olha pra Elas.

Uma personagem tem mais de 30 entradas no sistema. Saiu e vai voltar de novo BdFRS – E qual é a ideia da divulgação do filme agora? 

Tatiana: Ele vai entrar no circuito nacional comercial em, pelo menos, dez salas de cinema no Brasil. Estamos programando para a semana das mães. Acho que ele tem muito a cara disso. Mais do que a mulher, a gente mostra a realidade de mães, mães sequestradas pelo Estado. São sequestradas dos seus filhos, porque o Estado, na verdade, não dá apoio nenhum. Tira essas mães e muitas vezes não dá nenhum apoio para os filhos. No máximo, são colocados em um abrigo.

Os filhos da Adelaide, isso eu tenho provas, o ex-marido tinha abusado as duas filhas mais velhas, depois os três outros filhos ficaram sob a guarda dele, uma com síndrome de Down e dois outros meninos. E daí um deles apanhou do pai e foi para o conselho tutelar. Ficou no hospital completamente machucado e foi devolvido para esse mesmo pai. Que já tinha abusado de filhas. Que tinha praticado violência contra o filho, espancado, todo roxo, sangrando. 

É um abandono absoluto do Estado. Ao invés de trabalhar a saúde pública, se trabalha aprisionamento. Limpa-se isso recolhendo essas mulheres para a cadeia em vez de fazer um tratamento. A grande maioria é usuária e acaba sendo presa como (envolvida em) tráfico. Muitas vezes fazem um pequeno tráfico, até para sustentar a droga. 

Foto: Panda Filmes

Renato – Ou pequenos furtos, acabam praticando outros crimes, só que o Estado não se preocupa em tratar isso. Aprisiona e depois solta ao Deus dará. E aí elas acabam voltando pra droga. Uma das personagens explica que não tem uma rede de apoio para o pós-encarceramento. Acaba voltando para o sistema. Tem uma personagem que é bem claramente isso: mais de 30 entradas no sistema. 

Tatiana – E agora ela está fora de novo. 

Renato – Estava com 32. Mas depois disso a gente acompanhou mais umas três entradas. Agora já deve estar com 35, 36. Saiu de novo e vai voltar de novo. 

Na época em que a gente gravou, tinha um defensor público para 2500 presas BdFRS – Ou seja, é um ciclo da desigualdade que não se consegue parar…

Tatiana – Na época que a gente gravou, tinha um defensor público para 2500 presas. Em Guaíba tem uma assistente social e uma psicóloga para 300 presas. 

Renato – Durante o período do aprisionamento, o Estado não ofereceu ensino. Não ofereceu preparação para o mercado de trabalho. Só se preocupou em acumular essas pessoas lá dentro durante um tempo e depois cada uma por si. 

BdFRS – Antes de 2016, do golpe, vinha-se, de alguma forma, tentando se construir uma política nacional de segurança pública…

Renato – O primeiro secretário de Segurança Pública do governo Lula, o Luís Eduardo Soares, tentou fazer a questão nas periferias. Aqui em Porto Alegre implantaram no Morro Santa Teresa, na Vila Bom Jesus e na Restinga, três pontos de grande reincidência. Mas isso não foi muito adiante. Tenho crítica também à esquerda e não nego isso. Claro que a esquerda perto da direita ainda é muito menos nociva porque atuante na segurança pública ninguém é na verdade. 

O neoliberalismo tem a ideia de que a solução é a prisão e a extrema direita é pior ainda porque prega a morte BdFRS – O que eu ia comentar era justamente isso. Ali se tentou mexer nesse sistema, que é falido e não recupera as pessoas. Vem o governo Bolsonaro e essa visão da extrema direita de que bandido bom é bandido morto, e tem que matar mesmo… 

Tatiana – Não pode transformar presídio em hotel…

Renato – No governo Bolsonaro foi aquela velha história de que a única solução é a prisão. O neoliberalismo já tem essa ideia e na extrema direita é pior ainda. Porque, na verdade, ela não prega só a prisão, ela prega a morte. A extrema direita prega o genocídio, tanto que o Bolsonaro tentou colocar por decreto o fim da punibilidade para policial que matasse em serviço.

“O Brasil passou para o terceiro país com maior número de mulheres e homens presos” / Foto: Fabiana Reinholz

BdFRS – E é o que a gente vê muito a polícia militar fazendo nas favelas. Extra-oficialmente já faz. 

Renato – O Bolsonaro só quis oficializar o que já existe de fato, que é o extermínio. Quis simplificar a coisa. Ele disse: a partir de agora se vocês matarem em serviço, os policiais que matarem em serviço não respondem mais, não precisam responder mais. Lógico que isso aí já fez subir o número, e faria subir muito mais se fosse levado adiante. 

Tatiana – No governo Bolsonaro passou de 600 mil para 990 mil o número de presos. 

Renato – No início da pandemia alguns juízes tiveram um pouco de sensibilidade e soltaram, principalmente mulheres, e caiu. A gente fala em 600 mil porque realmente deu uma queda no início da pandemia. Mas logo depois, em função da crise que se instaurou também, aumentou o número de furtos e pequenos delitos e começou a se mandar todos para a cadeia. Aumentou muito o número de furtos. Cresceu para mais de 900 mil (presos), um número que até então não havia sido atingido. E das mulheres também cresceu. Chegou agora a quase 45 mil mulheres presas no país. No Rio Grande do Sul são 2,5 mil. 

Na lei das drogas, a esquerda caiu numa armadilha Tatiana – O Brasil passou para o terceiro país com maior número de mulheres e homens presos. De mulheres estava em quarto e subiu e agora é o terceiro lugar também. 

Renato – Os dois primeiros são Estados Unidos e China. Claro que, no caso da China, tem que levar em conta aquela população que é muito maior que a do Brasil. 

Tatiana – Mas aqui no Brasil basicamente começou a subir muito a partir de 2006 em função da lei das drogas, e que, por um acaso, foi aprovada pelo governo Lula, mas ela foi discutida e eu acho que criada…

Renato – Ali acho que a esquerda vacilou… É uma lei do Congresso e a bancada evangélica e outras forçaram. Mas o Lula podia ter vetado. E o que aconteceu? Na lei das drogas, a esquerda caiu numa armadilha porque disse assim: ´A partir de agora, não tem mais prisão para usuários e aumenta a pena dos traficantes`. Só que quem define quem é traficante e quem é usuário é a polícia e a justiça. Um jovem, negro, pobre, se for pego com seis baganinhas de maconha, entra como traficante. Um branco classe média entra com dois quilos e é uso próprio. A esquerda caiu nessa história. A polícia e a justiça a gente sabe que trabalham em cima de estereótipos. 

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BdFRS – E esse despreparo da polícia, que você falou no início da entrevista, que mulher casada com traficante ou é parceira, vai no bolo também como se fosse, esse despreparo da polícia também interfere…

Renato – Não é despreparo. Eles querem mais é prender pobre. Classismo. É pobre, vamos prender. É um pobre a menos em circulação. 

BdFRS – É importante a gente falar disso. A esquerda tem a tarefa importante de mexer nesse sistema porque, para além do sistema carcerário, tem a questão da desigualdade social…

Os grandes traficantes, proprietários de helicópteros, não estão na cadeia Tatiana – Pessoas ricas não ficam na cadeia. Não são confundidas. Tem um habeas corpus e são tiradas na hora. Mas os pobres não têm dinheiro depois nem para voltar para casa, não pagam uma passagem para as pessoas. Outros dois tiveram que dormir no mato. São soltos à noite porque o juiz só dá o canetaço para soltar à tardinha, no final do expediente. No presídio não podem ficar depois que ganharam o alvará de soltura.

Soltam à noite. Só que se um preso fica ali na frente, por perto do presídio, porque não tem nem como voltar para Porto Alegre, é abordado pela Brigada Militar que não deixa eles ficarem ali. Estão vagabundeando. 

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Renato – Tem alguns juízes com alguma sensibilidade, como o Sidinei Brzuska, que foi da vara de execuções criminais. Ele me contou uma história que a gente botou no livro Paz nas Prisões. Tinham apreendido 20 quilos de maconha e ele estava fazendo audiência de custódia, que é algo que se acontece pelo menos pode amenizar, porque o preso não precisa esperar tanto tempo por uma audiência. Na noite que ele foi autuado em flagrante já no início da manhã tem uma audiência, vai falar com o juiz, explicar as suas razões, se defender.

O juiz pediu para apresentar os presos com esses 20 quilos. Ele conta que, quando os dois entraram, infestou a sala um cheiro ruim, de mandar abrir as portas. Ele pergunta para os caras há quanto tempo não tomavam banho. ´Um mês e tanto, porque não tenho dinheiro`. Ele perguntou o que os dois tinham a ver com os 20 quilos. ´Não sei doutor. A gente tava na rua, a Brigada Militar passou, nos prendeu e nos trouxe`. O juiz chegou à conclusão que a polícia deu uma batida na boca de fumo, os traficantes todos fugiram e deixaram a droga. Não bastava prender a droga, tinham que prender alguém. Aí passaram, viram dois moradores de rua, pegaram e levaram. Então tu imaginas quantos casos desses têm lá dentro. E aí ele pro Ministério Público: ´Estou soltando esses caras`. 

BdFRS – É a sociedade descartável. 

Renato – Exatamente, estamos precisando de um preso, ali tem dois. 

Tatiana – Parece meta pra polícia: vamos prender, a gente está prendendo bastante. 

BdFRS – E a gente sabe que os grandes traficantes não estão na periferia. 

Renato – Não estão. No filme também tem uma fala de uma promotora, que diz: ´É a repressão ao pequeno tráfico, mas os grandes traficantes, os proprietários de helicópteros, não estão na cadeia`. 

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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno