Orgulho

Vitória de ‘Ainda Estou Aqui’ no Oscar resgata a autoestima e a bilheteria do cinema brasileiro

Apesar da frustração por Fernanda Torres não ter sido agraciada com o prêmio de melhor atriz, a estatueta de melhor filme internacional foi um reconhecimento mais do que justo para a indústria audiovisual brasileira, depois de tantos anos na fila

Redacao
Redacao - Equipe

Denise Costa Lopes, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

A 97ª cerimônia de entrega do prêmio Oscar, que ocorreu neste último dia 2 de março em Los Angeles, foi a mais inesquecível da história para o cinema brasileiro. Apesar da frustração por Fernanda Torres não ter sido agraciada com o prêmio de melhor atriz, a estatueta de melhor filme internacional foi um reconhecimento mais do que justo para a indústria audiovisual brasileira, depois de tantos anos na fila. Ao colocar o dedo, com cirúrgica delicadeza, nas feridas ainda não cicatrizadas da ditadura civil-militar que o Brasil viveu entre 1964 e 1985, a obra do diretor Walter Salles projetou-se para além das telas. No artigo abaixo, a doutora em Artes Visuais pela UFRJ e professora de formação audiovisual na Comunicação da PUC-Rio Denise Costa Lopes escreve sobre os diversos êxitos do filme: na narrativa, nas bilheterias, na memória sobre as atrocidades da ditadura e no resgate da autoestima do cinema brasileiro.


Pela primeira vez, desde 1929, um filme oficialmente brasileiro levou para casa a famosa estatueta do Oscar, o prêmio mais prestigiado do cinema mundial. “Ainda estou aqui”, de Walter Salles, venceu a categoria de melhor filme internacional na 97ª cerimônia de entrega do Oscar, ocorrida neste domingo, 2 de março, em Los Angeles, e transmitida ao vivo para mais de 1,6 bilhão de pessoas.

O feito, um marco para a cinematografia no Brasil, vem invertendo a lógica das bilheterias de cinema, aumentando as oportunidades para projetos audiovisuais dentro e fora do país e contribuindo para um resgate da memória sobre a ditadura e da autoestima brasileira aviltada nos últimos anos por um governo de extrema direita que perseguia a classe artística e que cortou diversas formas de investimento cultural.

A vitória histórica de “Ainda estou aqui” vem na sequência de “Roma” (2018), do mexicano Alfonso Cuarón, primeira produção latino-americana a ser indicada a melhor filme no Oscar, e do sul-coreano “Parasita” (2019), de Bong Joon-ho, primeira obra em língua estrangeira indicada duplamente para melhor filme e filme internacional, e que acabou levando as duas estatuetas, além das de melhor direção e roteiro original.

A evolução dos filmes “estrangeiros” no Oscar

O filme sul-coreano, que teve em 2020 o dobro de indicações de “Ainda estou aqui”, abriu uma perspectiva nova para filmes de produção não estadunidenses no Oscar. O nome do prêmio inclusive mudou de “Melhor Filme Estrangeiro” para “Melhor Filme Internacional” depois de suas vitórias.

De lá para cá, vários filmes em língua não inglesa começaram a concorrer simultaneamente nas categorias de melhor filme e de melhor filme internacional. São os casos do japonês “Drive My Car” (2021), do alemão “Nada de Novo no Front” (2022), do francês “Anatomia de uma Queda” (2023) e do multinacional “Zona de Interesse” (2023), que ampliaram a visibilidade das produções de fora dos EUA.

O sucesso de “Roma” e “Parasita” e a nova cara do Oscar, com mais indicações ao prêmio principal e abertura à diversidade de cinematografias nacionais, amplia as chances de vitória de “Ainda estou aqui”, que vem fazendo boas bilheterias nos cinemas dentro e fora do Brasil.

No momento em que escrevo este texto, o filme de Walter Salles se aproxima de fazer 4 milhões de espectadores no Brasil. Já foi visto por 3,84 milhões de pessoas e arrecadou R$ 84,3 milhões, competindo com blockbusters de investimentos muito superiores como “Mufasa: o rei Leão”, dos Estúdios Disney.

Após o anúncio das indicações ao Oscar, a venda de ingressos de “Ainda estou aqui” no Brasil subiu 89%, e a expectativa é de que ele tenha mais de 5 milhões de espectadores até a cerimônia do prêmio, no dia 02 de março.

No exterior, o filme também faz história nas bilheterias. Já é a maior estreia brasileira na América do Norte, ultrapassando o faturamento médio de “Central do Brasil” (1998), do próprio Salles (US$ 17,9 mil), e de “Cidade de Deus” (2002), de Fernando Meirelles e Kátia Lund (US$ 17,6 mil).

Nos EUA, “Ainda estou aqui” – ou “I’m still here”, em inglês – é atualmente o 26º filme mais visto do país, arrecadando US$ 125 mil por dia. A média por sala, de US$ 25 mil, é a maior dos EUA hoje, desbancando concorrentes como “O brutalista”, indicado a vários Oscars, e os blockbusters “Mufasa” e “Lobisomen”.

A previsão é de que o filme de Salles supere ainda o número de 500 salas de exibição nos EUA até o dia 7 de fevereiro, consolidando-se como a maior distribuição de um filme brasileiro em território norte-americano na história.

Performance excelente também na Europa

Em Portugal, só nos primeiros dias de exibição o filme fez US$ 256 mil em bilheteria, com 37 mil ingressos vendidos em 37 salas. Superando grandes produções europeias e caminhando para ultrapassar a marca de “Tropa de Elite”, de José Padilha, que em 2007 arrecadou US$ 376 mil no país.

O sucesso de “Ainda estou aqui” ainda deve crescer muito, e está longe de se limitar aos números do business do cinema. No âmbito histórico e sociológico, o filme gerou uma onda de conscientização sobre os 25 anos de ditadura militar vividos pelo Brasil entre 1964 e 1985. Um período de autoritarismo, censura, tortura, morte e desaparecimentos, cuja maioria dos responsáveis sequer foram julgados.

O impacto do filme na busca pela verdade

Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, filho do ex-deputado federal Rubens Paiva, torturado e morto dentro das dependências de repressão do regime em 1971, o filme foca na história de Eunice, viúva de Rubens e mãe de Marcelo. Uma mulher que, com o desaparecimento do marido, de repente se vê sozinha com cinco filhos e uma hercúlea missão de vida: tentar encontrar o corpo e depois lutar pelo reconhecimento oficial de que seu companheiro fora morto pelas mãos do regime.

A certidão de óbito de Rubens Paiva só foi expedida em 1996, 25 anos depois do seu desaparecimento. E isso só aconteceu porque nesse período Eunice estudou Direito, especializou-se em Direitos Humanos e lutou muito pelo documento.

Ainda assim a certidão descreveu o óbito por muitos anos apenas com a expressão “morte natural”. Só agora, coincidentemente um dia depois da indicação do filme ao Oscar, o documento foi alterado e a expressão finalmente trocada pela frase “morte violenta causada pelo Estado Brasileiro”.

Eunice já não estava mais aqui para ver, mas a mudança abre um precedente importante para centenas de outras famílias brasileiras que tiveram parentes desaparecidos e mortos durante a ditadura. Mais um consequência social de um filme que extrapola em muito as salas de cinema e reforça sua importância histórica.

O corpo do ex-deputado, assim como de muitos presos e torturados na época, nunca foi encontrado. E o processo criminal sobre sua morte – aberto apenas em 2014 e que acusa cinco militares por homicídio doloso qualificado, ocultação de cadáver, fraude processual e quadrilha armada – nunca foi julgado. Três dos acusados já até morreram.

O processo, que estava parado, foi reaberto em abril de 2024 pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, solicitou uma análise sobre o processo à Procuradoria-Geral da República. O pedido, realizado no auge da campanha do filme, que entrou em cartaz no Brasil no dia 7 de novembro, demostra o quanto a obra está contribuindo para a rememoração, reconstituição e correção desses graves crimes cometidos no passado pelo Estado Brasileiro.

Visão do terror a partir do afeto

Apesar de o filme lidar com um período duro da história do Brasil, o diretor Walter Salles – que era amigo de uma das filhas de Rubens, frequentava a casa dos Paiva na infância e conheceu de perto os personagens do filme – traçou um retrato da ditadura a partir do microcosmo particular dessa família. A partir do afeto. E de um enfrentamento da situação retradada feito de forma segura mas leve, simples e bela.

Ao invés da exposição, Salles optou pela subtração, pela contenção. Segundo ele, a história já era pesada demais e a delicadeza tinha que vir em contraponto à brutalidade do período.

Assim, o filme foca no passado, mas acaba por falar também do presente. Eunice, a personagem principal que luta para trazer a público a verdade sobre a morte do marido, é exemplo de resistência em momentos distópicos difíceis. Como os que se avizinham hoje com o avanço da extrema direita no mundo.

O filme também contribui para a recuperação de uma memória nacional adormecida, seja no viés político, seja na valorização de sua arte. De emoção contida, estética simples mas com perfeita reconstituição de época, “Ainda estou aqui” vem enchendo boa parte dos brasileiros de orgulho de sua história. E por tabela fazendo retornar a autoestima de uma indústria audiovisual vigorosa, que entre 2019 e 2022 sofreu com a redução de investimentos públicos e privados promovida por narrativas ideológicas.

A vitória de “Ainda estou aqui” no Oscar, além dos inúmeros outros prêmios e indicações já conquistados, não deixam dúvidas sobre a singularidade e a grandeza da obra. E que todo esse reconhecimento internacional contribua para a conscientização sobre a importância de subsidiar a cultura brasileira. Independente de qualquer governo, sempre carente de muitas regulamentações. Especialmente na área audiovisual.

Denise Costa Lopes, Doutora em Artes Visuais (EBA/UFRJ), pesquisadora e professora de formação audiovisual na Comunicação, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

Compartilhe esta notícia
- Publicidade -

Mais Lidas

- Publicidade -
Parimatch Cassino online