Loucura & Genialidade

Foucault entre a loucura e a literatura

Lançamento da editora Ubu reúne textos inéditos em português do filósofo francês. O volume aborda a relação do “louco” com a sociedade a partir da crítica de importantes obras de ficção. Leia, com exclusividade, um trecho. Sorteamos um exemplar

Michel Foucault | Reprodução
Michel Foucault | Reprodução

Editora Ubu acaba de lançar a obra Loucura, linguagem, literatura que apresenta textos inéditos em português do filósofo francês Michel Foucault.

Hello Bet
Hello Bet

O volume tem tradução de Nélio Schneider, organização de Henri-Paul Fruchaud, Daniele Lorenzini, Judith Revel e as sensíveis ilustrações do artista cearense Leonilson.

obra Loucura, linguagem, literatura
Loucura, linguagem, literatura

Além de fazer uma exploração da intersecção entre os temas que figuram no título, a coletânea destaca a importância desses tópicos em toda sua obra, revelando como a figura do louco serve como um ponto de partida para questionar os mecanismos de controle e conhecimento na sociedade ocidental.

Há ensaios que se concentram nas conexões entre a loucura e o teatro barroco, além das contribuições de autores como Artaud e Roussel. A edição também se expande para reflexões sobre a filosofia em Bataille e análises detalhadas do estruturalismo, com foco em escritores como Flaubert e Balzac.

Datados das décadas de 1960 e 1970, os textos apresentam uma escrita fluida, que se assemelha a anotações interligadas e vibrantes. Além disso, a edição inclui notas críticas que contextualizam e aprofundam os temas abordados na obra de Foucault.

Nos escritos, Foucault adentra na relação intrínseca entre loucura e literatura, revelando como ambas desafiam e subvertem normas estabelecidas. Neles, o autor oferece novas perspectivas sobre a loucura, a linguagem e suas representações na literatura.

Leia, com exclusividade, a introdução da filósofa Judith Revel para a edição. O texto conta um pouco acerca dos textos compilados, além de curiosidades sobre a maneira como foram encontrados e o processo para serem datados.

Boa Leitura!

Introdução

Judith Revel

Treze textos

Os textos que apresentamos aqui, reunidos em um só volume, são notáveis em mais de um aspecto.

Conhecíamos, é claro, a importância de Raymond Roussel, [1] publicado no mesmo ano de Nascimento da clínica [2], ou seja, em 1963, e, de modo mais geral, do interesse de Foucault pela literatura nos anos 1960 – essa “paixão” que parece constituir a estranha margem dos primeiros grandes livros. Entre esses numerosos textos, foi a edição de Ditos e escritos que permitiu, há 25 anos, a nova compreensão. Ali, Foucault alterna entre uma série de referências a literatos do passado (Sade, Hölderlin, Nerval, Flaubert, Mallarmé, Verne, Roussel, Artaud, Brisset), três nomes tutelares (Bataille, Blanchot, Klossowski) e os de uma geração de escritores que constituíam a atualidade mais recente da literatura no momento em que o próprio Foucault escrevia (Sollers, Thibaudeau, Robbe-Grillet, Butor, Laporte, Pleynet). Três linhas mestras orientaram de modo geral a maneira como esse corpus complexo foi lido e comentado. Por um lado, trata-se de mostrar que o cruzamento da experiência da loucura com a experiência da escritura constituiu um cerne fundamental [3], e que envolveu, ao mesmo tempo, reminiscências fenomenológicas (a ideia de uma experiência originária que, tanto num caso como no outro, teria de se desvencilhar desse manto de silêncio com o qual foi revestida) e certa relação com a linguagem. Por outro lado, evidenciou-se até que ponto as análises “literárias” de Foucault experimentaram à sua maneira dois temas que permaneceriam centrais muito além da década de 1960: a crítica radical de toda forma de sujeito psicologizado, dotado de consciência ou interioridade, e uma atenção redobrada com a materialidade da linguagem, seus aspectos fônicos, sua densidade sonora, independentemente de qualquer intenção de significado. Por fim, muitas vezes se sublinhou até que ponto a ligação de Foucault com a revista Critique (de cuja redação ele participou a partir de 1963 e na qual publicaria textos essenciais) ou com o grupo da Tel Quel (ao qual ele jamais se juntaria formalmente, mas cujas posições e publicações não deixaria de comentar) teria representado o contexto em que se desdobrou essa produção singular. Pois se tratou de uma singularidade evidente: primeiro porque a localização cronológica desses textos foi estabelecida e corresponde a um período relativamente breve que se estende, por alto, da publicação da História da loucura [4] à de As palavras e as coisas [5] e desaparece, em todos os casos, no limiar dos anos 1970 [6]; e também por não haver nada nesses textos que realmente fizesse eco a certas posições teóricas que, não obstante, foram defendidas com firmeza na mesma época, estando elas próprias tensionadas entre dois extremos – de um lado, um viés radical de historicização reafirmado muitas vezes desde 1961 e que assumiu, de maneira alternada, a forma de uma história (da loucura) e de arqueologias (do olhar médico, das ciências humanas) fortemente periodizadas; de outro, uma fascinação visível pelo estruturalismo, entendido nem tanto como uma escola ou uma corrente, mas como um método comum que permitia desvencilhar-se da ilusão muito persistente da centralidade do sujeito “de Descartes à fenomenologia”, como disse muitas vezes Foucault. [7]

Os treze textos, na maior parte inéditos, reunidos no presente volume oferecem uma perspectiva totalmente diferente dessas questões e contribuem para mudar consideravelmente os lances do jogo. É certo que esses textos se concentram em dois objetos “clássicos” daquele decênio: a loucura e a literatura. Decidimos, então, organizá-los de acordo com esses dois polos temáticos para facilitar o acesso a eles. Por conseguinte, haverá, nesta ordem, cinco textos sobre o tema da loucura, seguidos de um breve texto de estilo muito diferente sobre a noção de experiência na fenomenologia e em Bataille, cinco textos sobre a análise literária e a crítica e, para fechar o conjunto, dois textos dedicados a Flaubert e a Balzac. Na medida em que a datação desses textos chegou ao nosso conhecimento (ou pudemos supô-la a partir de certa quantidade de indícios, particularmente de natureza bibliográfica), todos eles se situam na segunda metade da década de 1960 – com uma dúvida muito candente em relação ao texto dedicado à experiência na fenomenologia e em Bataille, que poderia muito bem ser mais antigo. O intervalo fundamental entre a publicação de As palavras e as coisas e o término da redação de A arqueologia do saber [8], que corresponde à estadia de Foucault em Túnis, representa aqui o núcleo da periodização desenhado nas entrelinhas dos textos: o que podemos ler, então, não são mais as análises de Foucault sobre a loucura ou a literatura em geral, como estamos habituados a ler e a reconhecer essencialmente na primeira metade da década de 1960, mas uma versão posterior desses mesmos temas. E já fica o aviso: o tom é claramente diferente – inclusive quando a análise, segundo um procedimento que Foucault adota de maneira sistemática, retorna a trabalhos anteriores ou retrabalha uma referência elaborada anteriormente.

Outras Palavras e Ubu Editora irão sortear um exemplar de Loucura, linguagem, literatura, de Michel Foucault, entre quem apoia nosso jornalismo de profundidade e de perspectiva pós-capitalista. O sorteio estará aberto para inscrições até a quinta-feira do dia 30/9, às 14h. Os membros da rede Outros Quinhentos receberão o formulário de participação via e-mail no boletim enviado para quem contribui. Cadastre-se em nosso Apoia.se para ter acesso!

Primeira observação: em torno da transição de 1965–67, ocorre uma inflexão impressionante nas investigações empreendidas pelo filósofo. Claro que o status, o grau de elaboração, o estilo da escrita desses treze textos estão longe de serem homogêneos. Reunimos aqui textos cuja unidade não está estritamente ligada a um ou vários ciclos identificáveis (uma série de conferências, um curso ou seminário, um conjunto homogêneo de intervenções radiofônicas) e cuja datação, em certos casos, é difícil de estabelecer com exatidão. Trata-se, ademais, de textos cujo tipo e grau de redação variam enormemente – desde a redação aparentemente bem acabada das duas conferências proferidas no clube Tahar Haddad, em Túnis, em 1967 (“Loucura e civilização”, em abril de 1967, e “Estruturalismo e análise literária”, em fevereiro do mesmo ano), e do pequeno texto sobre a noção de experiência, a respeito do qual sublinhamos a dificuldade de datação (“A experiência fenomenológica: a experiência em Bataille”), até os textos mais esquemáticos ou, ainda, semelhantes a planos amplamente desenvolvidos (o primeiro texto intitulado “Loucura e civilização”, sem data, mas em todo caso posterior a 1965, ou ainda “Loucura e sociedade”). Isso não significa necessariamente que os marcadores gráficos que tendemos espontaneamente a identificar como indícios de uma redação menos completa – hierarquização dos espaços na página, recurso a séries de letras latinas ou gregas ou a números para estruturar listas, entradas, travessões etc. – estejam em contradição com uma maneira de escrever extremamente bem cuidada: às vezes há, na estruturação extremamente consistente das argumentações construídas por Foucault, o afloramento gráfico do seu esqueleto, como ocorre, por exemplo, em “A literatura e a loucura” (o texto dedicado à loucura no teatro barroco e no teatro de Artaud) ou “Os novos métodos de análise literária” (em que a estruturação em níveis é particularmente perceptível e organiza a fixação manuscrita do raciocínio). Seria de se pensar aqui, por associação, nas três folhas que estavam dentro de uma caixa [9] de escritos inéditos adquiridos pela bnf em 2013, misturadas a um conjunto sobre Brisset e Roussel, datando provavelmente dos anos 1962–63 e fazendo menção sóbria a epigramas: três construções geométricas manuscritas, acompanhadas de sua regra de composição, mostrando um texto em latim “em forma” – triângulo isósceles, labirinto, par de óculos. Potência do desenho do pensamento – potência também de suas regras de composição: essa não é uma das encarnações possíveis do que Foucault, fascinado, chamou bem cedo de “procedimento”? Pense-se também, alguns anos depois, em 1973, na estranha hipótese que está na base do belo texto dedicado à pintura Ceci n’est pas une pipe [Isto não é um cachimbo], de Magritte, aquela do “caligrama desfeito”:

compensar o alfabeto; repetir sem o recurso da retórica; prender as coisas na armadilha de uma dupla grafia. […] Sinal, a letra permite fixar as palavras; linha, ela permite figurar a coisa. Assim, o caligrama pretende apagar ludicamente as mais velhas oposições de nossa civilização alfabética: mostrar e nomear; figurar e dizer; reproduzir e articular; imitar e significar; olhar e ler. [10]


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Em suma: tratar da materialidade da escrita e de sua fixação gráfica como um tema foucaultiano é tratar de imediato da organização do pensamento – e é disso que, ao fim e ao cabo, se encarregam de nos lembrar também os textos reunidos neste volume.

Segunda observação: esses treze textos explicitam todo um sistema de repetições que é fascinante acompanhar. As retomadas de um motivo, de uma referência, às vezes de um nome, de uma expressão criada e retomada mais adiante, nos permitem à sua maneira acompanhar o que perfaz um lento trabalho de constituição e formulação de hipóteses – a tecedura progressiva das ideias por meio de aproximações sucessivas. Por isso, é preciso ler cada um dos textos em si mesmo; mas é preciso lê-los também em sucessão ou, mais exatamente, em série, seguindo as pistas que uma leitura transversal permite trazer à tona. Um único exemplo disso. O décimo texto que propusemos, originalmente sem título (mas que, por razões de clareza, intitulamos “O extralinguístico e a literatura”, aproximando-nos ao máximo de seu objeto) e sem data (mas uma referência à Gramatologia, de Jacques Derrida, permite supor que foi escrito em 1967 ou posteriormente), apresenta a noção do extralinguístico – uma noção que se encontra pouco em outros textos foucaultianos [11], mas que aqui é objeto de desenvolvimentos importantes, que podemos supor terem sido suscitados, ao menos em parte, por um desejo de discutir o primeiro tomo da obra de Émile Benveniste, Problemas de linguística geral, publicado um ano antes pela editora Gallimard. [12] O décimo primeiro texto deste volume, também sem data certa, mas cujo título, em compensação, foi dado pelo próprio Foucault (“A análise literária e o estruturalismo”), retoma imediatamente essa noção de extralinguístico, colocando-a, por assim dizer, para funcionar – sobre Joyce, Proust, Robbe-Grillet, Butor, Balzac, sobre Dostoiévski de maneira bastante breve, sobre Flaubert de maneira infinitamente mais detalhada –, e faz aparecer todo um sistema de referências teóricas (entre as quais, aquela central às obras de Prieto) que o primeiro texto não oferece explicitamente. Na realidade, a questão não é (ou não é simplesmente) saber qual dos dois textos foi o primeiro a ser escrito. Bem mais importante é estabelecer entre eles uma relação transversal e compreender como uma hipótese toma forma, recebe uma formulação (“a literatura poderia, pois, ser definida como um discurso que constitui por si mesmo, no interior de si, a dimensão extralinguística que escapa à língua e que permite aos enunciados existir”) [13], depois é mobilizada e investida para dar conta efetivamente de textos literários que constituem uma verdadeira bancada de testes. Mas as transversalidades são múltiplas: é possível estender um fio entre o tratamento que “A análise literária e o estruturalismo” reserva a Flaubert e aquilo que é dito sobre ele um pouco mais tardiamente, em 1970, durante uma conferência proferida na universidade de Buffalo, em “Bouvard e Pécuchet: as duas tentações”; do mesmo modo, é claro, é possível lembrar a maneira como, em duas versões sucessivas e ligeiramente diferentes de um mesmo texto (publicadas em 1964 e 1970), Foucault trabalha já – e de outra maneira – As tentações de Santo Antão.

Terceira observação, associada a esse último ponto: encontramos de maneira muito evidente, nesses treze textos, os traços corroborantes de coisas já sabidas (por exemplo, a favor de uma reflexão frequente sobre certas passagens de História da loucura) ou então a proposição ligeiramente diferente de análises esboçadas em outro lugar (por exemplo, sobre Artaud ou certas personagens do nouveau roman, ou por ocasião de um comentário sobre Proust ou Flaubert ou de uma referência a Rousseau – ocorrências que sabemos bem que se encontram no coração de outros textos já conhecidos). Quando pensamos que a menção a outros textos poderia servir para elucidar os que apresentamos hoje pela primeira vez, fizemos referência a eles em nota: esses fenômenos de ecos são fascinantes de acompanhar, inclusive no jogo de discrepâncias que eles muitas vezes instauram. Mas encontramos sobretudo toda uma série de elementos totalmente novos que contribuem para modificar e complicar a percepção que pensamos ter do que Foucault tentou fazer em meados dos anos 1960. É a esses diferentes elementos, às vezes pouco comentados, que devemos retomar agora

NOTAS

[1] Michel Foucault, Raymond Roussel, 1963.

[2] Id., Naissance de la clinique, 1963 [O nascimento da clínica].

[3] A afinidade entre a experiência da escrita e a da loucura é um tema recorrente em Foucault. Ver, por exemplo, “La folie, l’absence d’oeuvre” [1964], in Dits et écrits i [“A loucura, a ausência da obra”]. A sobreposição das figuras do literato e do louco (em particular na figura específica do esquizofrênico) sem dúvida é a razão do interesse que Foucault demonstrou por Hölderlin, Nerval, Brisset, Roussel, Artaud ou Wolfson: em todos esses casos, Foucault parece hesitar entre a percepção de uma experiência comum (que teria a ver, ao mesmo tempo, com a desestruturação do sujeito e com uma relação originária com a verdade) e a de um fazer comum (a loucura permitindo ao literato desfazer-se da soberania da representação e experimentar outra relação com a materialidade da linguagem, isto é, instituir outro código).

[4] Id., Histoire de la folie à l’âge classique, 1961/72 [História da loucura].

[5] Id., Les mots et les choses, 1966 [As palavras e as coisas].

[6] Sobre este ponto, permito-me remeter o leitor ao meu artigo, J. Revel, “Histoire d’une disparition: Foucault et la littérature”. Le Débat, n. 79, 1994.

[7] Trata-se de uma continuidade que Foucault mobilizaria durante toda a sua vida. Ver, por exemplo, M. Foucault “Sexualité et solitude” [1981], in Dits et écrits ii [“Sexualidade e solidão”]. A propósito da figura do sujeito, Foucault escreveu: “É ao impacto de Husserl que a questão deve sua importância, mas a característica central do sujeito também está ligada a um contexto institucional, já que a universidade francesa, desde que a filosofia floresce com Descartes, só pôde progredir de maneira cartesiana.” (ibid., p. 988 [p. 93]).

[8] Id., L’archéologie du savoir, 1969 [A arqueologia do saber].

[9] bnf, Fonds Michel Foucault, naf 28730, caixa 54.

[10] M. Foucault, Ceci n’est pas une pipe, 1973, pp. 20-22 [Isto não é um cachimbo, pp. 22-23]. Ver uma primeira versão desse texto, mais breve, porém com o mesmo título, publicada em homenagem a Magritte, falecido em 15 ago. 1967, em Les Cahiers du Chemin, n. 2, 1968 (texto reimpresso em Dits et écrits i).

[11] O termo aparece duas vezes numa das introduções alternativas àquela que acabou sendo incluída por Foucault bem no início de A arqueologia do saber. Ver sobre isso M. Foucault, “Introduction à L’archéologie du savoir”.

[12] Émile Benveniste, Problemas de linguística geral [1966], trad. Maria da Glória Novak e Luiza Neri. São Paulo: Edusp, 1976. A coleção Bibliothèque des Sciences Humaines, dirigida por Pierre Nora, acolheu no mesmo ano o livro de Benveniste e Les mots et les choses, 1966 [As palavras e as coisas], de Foucault, um ano depois de ter acolhido a obra de Geneviève Calame-Griaule, Ethnologie et langage: la parole chez les Dogon (Limoges: Lambert-Lucas, 1965); referência que Foucault cita em “A análise literária e o estruturalismo”, infra, p. 240.

[13] M. Foucault, “A análise literária e o estruturalismo”, infra, p. 229.



Raíssa Araújo Pacheco

Redatora do Outros Quinhentos. Formada em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Assessorou movimentos sociais e entidades envolvidas na pauta de moradia e direito à cidade.