Por por André Botelho e Caroline Tresoldi – Dia 17 de dezembro próximo, às 19hs, na Travessa Ipanema, Rio de Janeiro, será lançado o livro Helô Teixeira: crítica como vida, de André Botelho e Caroline Tresoldi. Reconstruindo e analisando o perfil intelectual de Heloisa Teixeira, até recentemente Heloisa Buarque de Hollanda, os autores apresentam diversas nuances de uma produção crítica que está sendo feita há 65 anos, dentro e fora da universidade, como observa Eduardo Coelho na orelha do livro.
Deixamos aqui o convite para o lançamento e compartilharmos um trecho do livro, que faz parte do capítulo “Feminismos bumerangues” e aborda o encontro de Helô Teixeira com o feminismo e suas primeiras iniciativas na área dos estudos de gênero.
Feminismo como crítica da cultura
Ao fundar em 1986 o Centro Interdisciplinar de Estudos Contemporâneos (CIEC) na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Heloisa Teixeira criou linhas de pesquisa para estudar as relações de gênero e raça no Brasil. Ao mesmo tempo que promovia encontros e seminários para debater o tema, coordenou pesquisas que visavam documentar os eventos relacionados ao Ano Internacional da Mulher (1975), à Década da Mulher (1976-1985) e ao Centenário da Abolição (1988). Os dois primeiros são considerados momentos centrais de organização do feminismo no Brasil.
Mas isso foi só o começo. Helô se dedicou a mapear, ou melhor, a inventariar de modo quase obsessivo, a presença de mulheres na cultura brasileira. Os três volumes da série do CIEC Quase catálogo, que tratam das mulheres no cinema e nas artes, como já discutimos, são notáveis exemplos disso. Outro exemplo que queremos ressaltar agora é o livro Ensaístas brasileiras: mulheres que escreveram sobre literatura e artes de 1860 e 1991, publicado em 1993 pela editora Rocco.
Esse livro-glossário, elaborado por Heloisa e sua irmã, Lucia Nascimento Araújo, e dedicado à mãe delas, oferece um amplo levantamento sobre a produção crítica feminina no Brasil ao longo de mais de um século. Recorrendo a materiais dispersos em catálogos de editoras, jornais e revistas, acervos privados e bibliotecas, as organizadoras chegaram a 622 verbetes que contam com minibiografias e referências bibliográficas de mulheres brasileiras que escreveram sobre literatura, música, teatro, dança, cinema e artes plásticas tanto na crítica jornalística ou acadêmica, quanto em diários, correspondências, memórias e biografias. Algumas mulheres do passado, outras em atividade até a data em que a pesquisa foi concluída; algumas só com uma obra publicada, outras com várias. Mulheres diferentes, mas agrupadas na categoria ensaístas.
A escolha do termo “ensaístas”, segundo as organizadoras, é algo arbitrária. Mas podemos dizer que também é teoricamente interessada: quer alargar as noções tradicionais de ensaísmo e de crítica literária para que abarquem a variedade de formas e práticas críticas com as quais mulheres, ainda que de modo informal, registraram suas reflexões sobre o fazer literário e artístico desde o século XIX. Assim, Ensaístas brasileiras fornece uma visão dos caminhos trilhados pela crítica feminina, desde os primeiros registros até a profissionalização da crítica a partir de meados do século XX.
Quando colocado ao lado dos três volumes da série Quase catálogo, esse livro ganha nova luz. Eles nos fazem questionar o que significa, afinal, esse gesto de Heloisa de inventariar a produção feminina brasileira. O prefácio “O que querem os dicionários?”, assinado apenas por ela, oferece alguns indícios para essa resposta.
Nele, Heloisa reconhece de imediato que o livro Ensaístas brasileiras não seria uma novidade editorial, mas sim a continuidade de um trabalho que vinha sendo realizado por autoras mulheres desde o final do século XIX. Menciona, por exemplo, que durante o rush republicano para a construção de uma História do Brasil, época em que proliferaram as coletâneas de biografias exemplares e perfis de notáveis figuras masculinas, a escritora baiana Inês Sabino publicou, em 1899, Mulheres ilustres do Brasil, trabalho pioneiro que procurava resgatar as mulheres da “barbárie do esquecimento”. Cita também outros projetos semelhantes a esse organizados ao longo do século XX: perfis de poetas, dicionários de escritoras, coletâneas com autoras de teatro, antologias de contos escritos por mulheres etc.
Ao discutir essas iniciativas, Heloisa sugere que as mulheres perceberam desde muito cedo que dicionarizar, antologizar, produzir coletâneas de literatura e ensaísmo femininos seria um terreno importante para registrar suas histórias e experiências singulares. Em alguns casos, segundo nossa crítica, essas práticas foram vistas como um campo possível para a “articulação de um discurso, muitas vezes radical, sobre a mulher”. Helô vê nesses projetos, mais precisamente, a preocupação das mulheres com o próprio apagamento da história oficial ou da série literária, bem como a reivindicação do “direito de classificar”, isto é, de intervir na lógica de construção dos cânones literários e artísticos. Não é exagero sugerirmos que suas inquietações se aproximam às das mulheres que a precederam no campo da catalogação.
Seu gesto de inventariar pode ser lido como um compromisso a um só tempo teórico e político de registrar a participação das mulheres na cultura brasileira – como críticas, artistas, cineastas, escritoras etc. –, assim como de evidenciar a variedade de práticas nas quais elas se envolveram. Práticas que representam outros modos de pensar e criar, mas que são, via de regra, marginalizadas nos circuitos de consagração literária, artística, intelectual.
A rebeldia de Helô em relação aos cânones não é nenhuma novidade, como bem vimos em capítulos anteriores, quando mostramos que ela torce as noções tradicionais de literário em seus estudos sobre a contracultura no Brasil. Mas há uma diferença importante neste momento de sua trajetória intelectual: assumindo uma perspectiva nitidamente feminista, ela quer realçar as desigualdades de gênero que moldam o campo da cultura e da vida intelectual brasileira. Por que os cânones são tão masculinos? O que acontece quando se estuda a presença das mulheres na cultura brasileira? Quais as possibilidades e desafios de uma crítica feminista?
Perguntas como essas parecem ter orientado as pesquisas que Heloisa desenvolveu entre meados dos anos 1980 e dos anos 1990. Neste período, ela participou de inúmeras iniciativas para debater as possibilidades e desafios dos estudos de gênero no Brasil. Integrou por muitos anos, por exemplo, o Comitê do Programa de Dotações para Pesquisa sobre Mulheres e Relações de Gênero da Fundação Carlos Chagas, ao lado de nomes como Cristina Bruschini, Albertina de Oliveira Costa, Céli Pinto, Mary Garcia Castro, Bila Sorj, Lia Zanotta Machado, Maria Odila Leite Dias, entre outras. Heloisa também acompanhou de perto as discussões do Grupo de Trabalho Mulher e Literatura, da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Linguística (Anpoll), criado em 1986.
Participou ainda do comitê editorial que fundou em 1992 a Revista Estudos Feministas, uma das primeiras iniciativas da comunidade acadêmica brasileira para divulgar os estudos de gênero no país. Hoje alocada na Universidade Federal de Santa Catarina, a primeira casa da REF foi o CIEC, como indica Leva Lavinas no editorial do número inaugural da revista.
Ou seja, Heloisa Teixeira estava inserida em redes com pesquisadoras de diferentes áreas das ciências humanas que procuravam abrir novos horizontes, estabelecer trocas e consolidar espaços institucionais para os estudos sobre mulheres, feminismos e relações de gênero no país.
A coletânea Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura (1994) e os ensaios “Os estudos sobre mulher e literatura no Brasil: uma primeira abordagem”, publicado pela primeira vez na série Papéis avulsos em 1990, e “O estranho horizonte da crítica feminista no Brasil”, apresentado em seminário internacional em 1991, permitem observar as apostas de nossa crítica nesse contexto.
No capítulo anterior, mencionamos brevemente essa coletânea organizada por Heloisa. Aqui, queremos apenas lembrar que, em meio às diferentes perspectivas feministas selecionadas para integrar a obra, ela afirma que a reflexão teórica feminista, passado um momento inicial de denúncia da lógica patriarcal que estrutura a sociedade capitalista, estaria fomentando modelos epistemológicos alternativos, pautados pela crítica radical ao sistema de poder que legitima historicamente certas representações em detrimento de outras.
Segundo ela, a introdução da categoria “gênero”, substituindo a noção de “identidade”, representava um avanço para os estudos feministas, que passavam a priorizar a investigação dos processos de construção das relações de gênero e das formas como o poder se articula em determinadas situações históricas. É um momento do feminismo que ela classifica, retomando as palavras de Jean Franco, de “luta pelo poder interpretativo”. Para além da luta no plano teórico, Heloisa defende o feminismo como alternativa concreta para a prática política e para as estratégias de defesa da cidadania naquele fim de século.
Se a coletânea apresenta uma posição mais geral de Heloisa em relação ao potencial teórico e político dos estudos feministas, os outros dois ensaios mencionados, quase gêmeos, são reflexões sobre sua área de formação e atuação, Letras, resultantes de uma pesquisa que ela fez para a Fundação Carlos Chagas com o objetivo de entender o estado da arte da crítica literária feminista no Brasil. Não cabe entrar em muitos detalhes do balanço que a autora faz, mas queremos destacar algumas questões levantadas por ela, especialmente ao discutir as possibilidades e dilemas da crítica feminista no país.
Neste balanço, Heloisa parte da observação de que, nos anos 1970, o tema da mulher começa aos poucos a aparecer nas pesquisas acadêmicas, delineando um novo campo de trabalho no Brasil. Mas é na década de 1980 que há um crescimento considerável das pesquisas sobre mulheres, inclusive nos estudos literários. Ela identifica pelo menos três tendências nessa área. Uma delas, chamada de “arqueológica” e mais afinada com a crítica feminista, visava resgatar os trabalhos de escritoras que foram marginalizados ou excluídos dos anais da literatura. Outra tendência observada discutia a “escritura feminina”, colocando a questão da linguagem no centro do debate. E uma terceira, a mais numerosa, englobava trabalhos sobre representação feminina nas obras literárias, sejam os autores homens ou mulheres. O balanço deixa evidente, para Heloisa, que pesquisar a mulher na literatura não significava se concentrar na “questão da mulher” e, menos ainda, se engajar numa perspectiva crítica feminista. Aliás, ela observa que boa parte dos trabalhos voltados para essa temática foram desenvolvidos em sintonia com a crítica literária tradicional, que priorizava a construção de famílias legítimas com seus heróis e gênios excepcionais.
Apesar dos ensaios que estamos comentando terem esse caráter de balanço de área, Heloisa não deixa de marcar sua posição teórica. Ela defende os pressupostos da crítica feminista de estudar escritoras mulheres e os gêneros literários a elas associados – como os diários, as correspondências, as autobiografias, as biografias, as memórias etc. –, que até então receberam pouca atenção nos estudos literários. No plano mais propriamente teórico, a crítica feminista permitiria, a seu ver, contestar a legitimidade do que é considerado ou não literário, o que significa questionar os pressupostos da historiografia literária tradicional, seus métodos, categoriais, periodizações e gêneros legitimados. Ofereceria, enfim, outras ferramentas teóricas e metodológicas para a crítica literária, colocando a mulher como questão dentro do quadro da produção intelectual e artística de uma época e abrindo caminhos para perceber outras experiências e formas de representar o mundo.
Esse balanço de área não desconsidera os desafios da crítica feminista no Brasil. Na verdade, ao mencionar tais desafios – como a construção de uma perspectiva teórica mais adequada para analisar a literatura brasileira, levando em conta suas especificidades –, o que Heloisa coloca mesmo em debate são dilemas muito maiores, do próprio feminismo numa sociedade patriarcal e violenta como a brasileira.
Ela chama a atenção, por exemplo, para o desconforto ou a dificuldade de autoidentificação das mulheres como feministas, mesmo entre profissionais liberais, intelectuais e artistas com livre acesso ao espaço público. Para ela, tal dificuldade se relacionaria com os mitos que regem a lógica das relações de gênero e raça no Brasil, país que tem grande habilidade em afirmar a existência de uma suposta mistura racial e uma desierarquização entre os gêneros, mascarando as relações de poder e hierarquias sociais.
Mostra Heloisa que esses mitos estão relacionados com o processo de formação da sociedade brasileira. Eles começaram a ser esboçados a partir da segunda metade do século XIX, com a construção de discursos ambíguos sobre a identidade nacional no que diz respeito às relações étnicas, de gênero e de classe; mas foi com o modernismo, no começo do século XX, que a “ambiguidade discursiva” sobre a nação foi teoricamente formalizada. Na leitura de Helô, a proposta antropofágica de Oswald de Andrade, que teve grande impacto na cultura brasileira desde então, revela fascinação com a diferença e a alteridade, construindo a imagem de um país como reino da cordialidade, do acolhimento caloroso, da predisposição para receber o “outro” e com ele se identificar. No entanto, no modelo antropofágico a devoração da diferença tem um gesto subsequente ao processo de absorção, que é a eliminação daquilo que não interessa. A partir do projeto antropofágico, alerta Heloisa, “desenvolve-se uma elaborada tecnologia cultural de trituração, processamento e deglutição da alteridade com particular atenção na eliminação, ainda que parcial, das diferenças”.
Para sermos mais precisos, Heloisa argumenta que os mitos da “democracia racial e sexual” brasileira refletem a ambivalência entre a fascinação pela diferença e a preferência por assimilá-la apenas parcialmente. Uma lógica engenhosa que cria inúmeras dificuldades para o ativismo feminista no Brasil, para a autocompreensão das mulheres como feministas e para todos que pesquisam as relações de gênero.
É bastante sugestivo que no ensaio “Os estudos sobre mulher e literatura no Brasil…”, a entrada em que é desenvolvida a argumentação sobre esses “mitos” tenha o subtítulo “Um problema quase pessoal”. De certo modo, podemos sugerir que Heloisa identifica essa lógica das relações de gênero no Brasil como um dos motivos para ela, que foi tão ativista na década de 1960, não ter se interessado pelo movimento feminista e suas pautas até meados dos anos 1980. Seu memorial de titularidade, apresentado em 1993 ao Departamento de Teoria da Comunicação da Escola de Comunicação da UFRJ, dá algumas pistas nessa direção.
Poderíamos escrever todo um capítulo para mostrar como esse memorial é marcado pelo contato de Helô com o feminismo. Apenas para se ter uma ideia, ela estrutura sua trajetória intelectual em fragmentos e não esconde suas posições teóricas e políticas, nem suas escolhas e afetos. Ao abordar a vida profissional, enfatiza as relações de trabalho que construiu com mulheres, e fala também da vida familiar, dos pais, filhos, maridos. Ou seja, compromete definitivamente a distinção entre público e privado, que teima em não fazer sentido para muitas mulheres. Embora o memorial tenha inúmeros exemplos desse tipo de abordagem, fiquemos com o que nos interessa mais diretamente agora, seu encontro com o feminismo. Logo após assumir que não era simpática ao feminismo, Heloisa afirma:
[…] no Brasil, não é muito fácil conviver com esta ideia. Por trás da cordialidade e da originalidade de nossas “democracias” raciais e sexuais, intui-se um perigo, uma violência latente contra as lutas e as reivindicações das minorias. No meu caso, professora universitária, teme-se, especialmente, uma quase inevitável violência retórica. Não havia percebido isso. Pensava que minha carreira tinha sido um caminho fácil, sem impedimentos, e que a contingência de ser mulher não havia tido um significado expressivo, ou mesmo especial, nesta trajetória. Uma percepção bastante comum também entre minhas amigas artistas e intelectuais. Hoje, penso diferente (grifos nossos).
Somente quando Heloisa é apresentada aos estudos feministas nos Estados Unidos, percebe que, embora o capital econômico e cultural de algumas mulheres as ajude a construir carreiras de prestígio como a sua, isso não as isenta das desigualdades de gênero inerentes à sua socialização como mulheres. Percebe à distância como as desigualdades de gênero no Brasil podem ser bastante sutis em alguns casos e explicitamente violentas em outros.
Referências
FRANCO, Jean. “Si me permiten hablar: la lucha por el poder interpretativo”. Revista Casa de Las Americas, ano 29, n. 171, nov./dez. 1988.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Escolhas: uma autobiografia intelectual. Recife; Rio de Janeiro: Carpe Diem; Língua Geral, 2009.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Introdução. Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. O que querem os dicionários? In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de & ARAÚJO, Lucia Nascimento. (orgs.) Ensaístas brasileiras: mulheres que escreveram sobre literatura e artes de 1860 a 1991. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (org.) ¿Y nosotras latinoamericanas?: estudos sobre gênero e raça. São Paulo: Fundação Memorial da América Latina, 1992a.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde (1960/70). Rio de Janeiro: Rocco, 1992b.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. O estranho horizonte da crítica feminista no Brasil. Colóquio “Celebración y Lecturas: La Critica Literária en Latinoamerica”. Ibero-Amerikanisches Institut Preussischer Kulturbesitz. Berlin, novembro de 1991.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Os estudos sobre mulher e literatura no Brasil: uma primeira avaliação. Papéis Avulsos: CIEC/ECO/UFRJ, 1990.
LAVINAS, Lena. Editorial. Revista Estudos Feministas. n. 0, p. 3-4, 1992.
Este texto foi originalmente publicado no Blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social (BVPS) com o título “Feminismo como crítica da cultura“.