Representatividade: “Quanto mais grupos distintos participando da esfera política, melhor”

De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral, no Rio Grande do Sul, cerca de 8,5 milhões de pessoas estão aptas votar nas eleições de 2022, sendo que pouco mais de 52% são mulheres. Em 2018 eram 8,3 milhões de eleitores aptos, um crescimento de 6,2%. O estado é o 5º maior colégio eleitoral do país. A representatividade das mulheres no espaço de poder, mesmo sendo mais da metade do eleitorado, é muito aquém do ideal. 

Um exemplo disto pode ser visto no parlamento no Rio Grande do Sul, que historicamente é dominado por homens brancos. Da mesma forma, chama atenção a ausência de negros e negras no Legislativo estadual. Atualmente a Assembleia Legislativa do RS tem 55 legisladores, sendo 45 homens e somente 10 mulheres. Pelo quadro das candidaturas do pleito de 2022 a realidade tende a alterar pouco.

Nestas eleições, o RS apresenta 1.398 candidatos: 11 para o cargo de governador e 11 para o Senado (seis homens, cinco mulheres). Além destes, 544 concorrem para a Câmara dos Deputados (357 homens, 187 mulheres). Apenas uma mulher concorre ao governo do estado. A participação das mulheres para este ano é de 33%; em 2018, era de 32%.

Para o parlamento gaúcho, do total de 826 candidaturas, a predominância também é masculina: são 556 homens (67,3%) e apenas 268 mulheres (32,4%). Repetindo 2018, em 2022 a maioria das candidaturas à Assembleia Legislativa (ALRS) é composta por brancos (674 candidatos, cerca de 59%). Houve um pequeno avanço de candidatos negros, aumentando de 70 para 87, e também de indígenas que foram de dois na eleição de 2018 para cinco neste ano.

Para a professora Maria Lucia Moritz, do Departamento de Ciência Política da UFRGS, a baixa representatividade observada nos parlamentos tem vários motivos, estruturais e institucionais. “Tradicionalmente, a gente identifica que as mulheres são uma minoria política, que estão à margem das esferas de poder e dos espaços de representação política. Mesmo que esse ano se tenha 33% de mulheres candidatas, pode-se ver que esse valor é apenas um pouco acima do mínimo exigido por lei, que é de 30%”, expõe, a professora em entrevista ao Brasil de Fato RS.


“É uma questão de justiça a participação de grupos sub-representados na disputa eleitoral e se sua presença nas esferas políticas de decisão” / Foto: Arquivo Pessoal

Abaixo a entrevista completa 

Brasil de Fato RS – O parlamento gaúcho atualmente é formado 55 nomes, sendo somente 10 mulheres, e sem a presença negra. Na atual corrida ao legislativo, temos novamente a maioria das candidaturas de homens brancos. Somente 33% do pleito é de mulheres (aumento de 1% em relação a eleição de 2018). Em relação à raça somente 11% são candidaturas negras. A que tu atribui essa baixa representatividade na corrida, e posteriormente no resultado das mesmas?

Maria Lúcia – Realmente, hoje nós temos 10 mulheres na Assembleia Legislativa. Porém, apenas 9 se elegeram em 2018. A deputada Stela Farias (PT) só entrou por causa da cassação do então deputado Ruy Irigaray (PSL / União).  

Tradicionalmente, identificamos que as mulheres se constituem uma minoria política, e que estão à margem das esferas de poder e dos espaços de representação política. Por isso foi necessário a aprovação da lei de cotas. Mas, mesmo com a lei, a participação não tem sido efetiva o suficiente para reverter essa desvantagem política de gênero.

Mesmo que esse ano se tenha 33% de mulheres candidatas, pode-se ver que esse valor é apenas um pouco acima do mínimo exigido por lei (30%). Em 2009, essa lei de cotas passou por uma adequação, quando efetivamente se passou a obrigar os partidos passaram a terem a proporcionalidade fr 70% para um sexo e 30% de candidaturas para outro sexo. A partir de 2010 é que os partidos tiveram que manter essa proporcionalidade, tiveram obrigação de segui-la. Até então os partidos conseguiam burlar essa proporcionalidade. 

Nós temos razões bem consolidadas que explicam a desvantagem das mulheres na política. Tem a ver com o nosso desenho institucional, com o financiamento de campanha e com o tempo livre. Ou seja, as mulheres, em função de suas duplas ou triplas jornadas de trabalho, ficam sem condições de se dedicar à atividade político-partidária trabalhando do jeito que trabalham, com tantas tarefas e funções a desempenhar.

Essa desigualdade na divisão sexual do trabalho faz com que as mulheres fiquem sobrecarregadas. Ao decidirem entrar na política, elas tem muito menos tempo para se dedicar a isso. E esse é um tempo necessário para que ela consiga vivenciar o partido e desempenhar as tarefas partidárias para se cacifar e ter experiência de se lançar posteriormente e converter essa candidatura em mandato.

Minorias encontram essas dificuldades, sendo que as mulheres negras encontram mais dificuldades, porque têm uma interseccionalidade de gênero, raça e classe social Temos visto esse percentual de 30%, 33% de candidaturas  de mulheres. Mas na hora de eleger, tem um “filtro” nas urnas. Como exemplo, nós temos na Câmara federal apenas 15% dos assentos com mulheres representantes.

Tem um filtro, um obstáculo que as mulheres acabam caindo, entre a candidatura e converter isso em mandato efetivamente. As mulheres têm essa dificuldade que outras minorias políticas também têm. Como o caso dos negros e negras, que são atingidos pelo racismo estrutural. Nesse sentido, as mulheres negras têm mais dificuldade ainda de estarem nas listas partidárias e se elegerem.

Muitas vezes, os partidos, para cumprir as cotas, colocam candidatas com pouca viabilidade eleitoral. Lançam nomes somente para cumprir a exigência legal de 30% de mulheres nas listas partidárias. E como não são candidaturas potencial de voto, elas não se convertem em mandato. 

Na questão racial, os negros e negras, por estarem, de acordo com pesquisas, em termos de estrutura social, estarem em postos de trabalho, em ocupações de menor remuneração, isso também vai influenciar para que o partidos façam a cooptação dessas pessoas para atuar no partido e depois estar presentes nas listas partidárias.  

Não só basta estar presente nas listas partidárias, tem que haver a campanha dessas candidaturas para que elas venham a ser eleitas e, portanto, detentoras de mandato. As minorias encontram essas dificuldades, sendo que as mulheres negras encontram mais dificuldades, porque têm uma interseccionalidade de gênero, raça e classe social, muitas vezes.

BdFRS – Como a senhora analisa essa situação comparando o cenário atual? 

Maria Lúcia – O que a gente tem acompanhado é que partidos à esquerda tendem a ser mais receptivos às candidaturas das minorias. Não só as de gênero, mas de também de candidaturas de negros e negras, de indígenas e pessoas trans.

Se pensarmos no quadro da Assembleia Legislativa do RS, das dez deputadas atuais, seis pertencem a partidos da esquerda e quatro são oriundas do campo da centro direita. Então, tradicionalmente, são esses partidos que favorecem a entrada dessas candidaturas e é onde se torna mais possível a eleição de pessoas que vêm desses extratos sociais.

Também, dessas deputadas que elegemos, três delas tiveram mais de 50 mil votos. Então são mulheres muito competitivas, que fizeram boa votação, independente do partido que elas estavam, por terem uma trajetória anterior de outros mandatos que faz com que elas sejam mais conhecidas e por isso também estão em vantagem em relação a outras mulheres. O primeiro grande obstáculo é a primeira eleição, o primeiro mandato. A partir disso, algumas mulheres conseguem se manter na política e até mesmo desenvolver, acumulando reeleições ou até indo para outros cargos.

Temos que pensar sempre: quanto mais grupos distintos participando da esfera política, melhor, teremos uma democracia mais inclusiva. Se temos a sub-representação de alguns grupos, ela é entendida como uma injustiça social e antidemocrática, isso tem que ser revertido, através de ações afirmativas, como a lei de cotas. Além disso, promover o estimulo da representação política desses grupos que estão excluídos e forçar a política de presença que tanto pode ser do ponto de vista de gênero, quanto de raça. 

A questão da subrepresentação política de negros e negras tem sido trazida pro debate de forma recente, com muita resistência em função da negação da existência do racismo.

Se a gente pensar, em 2011 teve uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para tentar reverter esse quadro: as pessoas votariam em uma lista múltipla, com candidatos de uma lista geral e outra de uma lista de candidatos autodeclarados negros. A PEC só foi apreciada dois anos depois e virulentamente rechaçada, foi muito feia a reação à essa proposta.

Novamente, em 2020, tivemos a deputada Benedita da Silva (PT) que fez uma provocação ao TSE, sobre o critério de distribuição do tempo de televisão do horário eleitoral gratuito e do financiamento público, que obedecia ao critério de paridade de gênero. O questionamento era se essa distribuição não deveria respeitar também uma proporcionalidade racial. O TSE entendeu que sim, aplicando esse entendimento nas eleições municipais de 2020. E agora deverá ser aplicado também onde deverá ser garantido o tempo de 30% para candidatos para gênero, e para candidatos negros e negras e a distribuição de financiamento também. 

Como nós temos o financiamento do fundo eleitoral, autofinanciamento ou doação de pessoas físicas, doação de pessoa jurídica já está proibida há algum tempo, esse maior montante do financiamento eleitoral está nas mãos das lideranças partidárias. E muitas vezes eles manobram, mesmo que respeitem os 30% e comprovem lá adiante, eles manobram para quem vai ser destinada essa verba. Em muitos casos acontece da verba chegar muito próximo ao final da campanha. 

Fazer campanha, sem esse recurso, é muito difícil para as pessoas que estão afastadas da esfera da disputa político-eleitoral, e que tem essa experiência e vivência partidária. Fica mais prejudicado ainda com não ter verba ou, em tendo, essa verba chegando muito tardiamente. Fora quando acontecem desvios, como nós vimos, usar candidatura de mulheres e usar candidaturas laranjas para receber o fundo eleitoral e usar para outras lideranças partidárias. 

Então é uma questão de justiça a participação de grupos sub-representados na disputa eleitoral e se sua presença nas esferas politicas de decisão, com a conquista de mandatos.

Isso é importante para que a democracia seja plural e tenha uma diversidade de olhares sobre a agenda política e sobre a construção desta agenda. Tanto olhares distintos no gênero, quanto olhares raciais são importantes para fazer esse debate e estar com seus interesses sendo debatidos e atendidos na medida que isso vire leis e regras normativas para a sociedade

Precisa mudar, com pressão social, para que os partidos mudem seu funcionamento internamente BdFRS – O que precisa ser feito para reverter esse quadro? 

Maria – Basicamente, o que precisamos é ir além das regras e buscar a efetividade dessas regras, e termos uma mudança que se dê internamente nos partidos. No Brasil, os partidos são dominados por homens, brancos, endinheirados, que não querem abrir nem nos partidos e nem nas instâncias de representação e decisão. Querem continuar mandando e tendo a hegemonia desses espaços.

Todas as minorias que vierem reivindicar entrar nesse espaço vão estar incomodando esses grupos que dominam. Então, os partidos vão dificultar a vida dessas pessoas, na medida que não oferecer receptividade e acolhimento para essas  pessoas e grupos na vida partidária, nem nas candidaturas, campanhas e exercício de mandato. Nós vemos diuturnamente mulheres apontando e denunciando violência política de gênero que elas enfrentam, não só de outros adversários políticos, mas também dentro da sua própria bancada.

Então precisa mudar, com pressão social, para que os partidos mudem seu funcionamento internamente, mas também do ponto de vista institucional, criando estímulos para que os partidos venham a passar por um processo de democratização interna para poder acolher todos esses diferentes segmentos e que eles venham a ter mandato e representação.

Só porque elegemos mais mulheres, não significa que elas serão comprometidas com a pauta e com a agenda feminista Só não podemos cair no perigo da “essencialização”: só porque elegemos mais mulheres, não significa que elas serão comprometidas com a pauta e com a agenda feminista. Pode acontecer exatamente o contrário, como vimos em 2018, com a eleição de mulheres conservadoras na Câmara Federal que trabalham contra os direitos das mulheres, até mesmo derrubando direitos já conquistados, como é caso da legislação restritiva ao aborto, com propostas para uma total proibição. Da mesma forma, negros e negras eleitas podem não defender a pauta do movimento negro. 

Então não podemos “essencializar”. Mas, sempre é importante ter a representação, ter mais mulheres, mais negros, mais indígenas e pessoas trans. Essa representação é essencial. A representatividade, estar ali na defesa dos interesses das mulheres, de indígenas, de pessoas negras ou pessoas trans, ela não vai se dar automaticamente, ela poderá acontecer, ou não. Temos que ter cuidado nessa essencialização de que vai haver necessariamente a defesa dos interesses quando se elege mais mulheres ou qualquer segmento das minorias políticas.

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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira