Comparecer às urnas e votar sem medo: historiador analisa impacto da violência política em 2022

O historiador, docente da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mathias Seibel Luce acredita que não se pode descartar o intento de uma escalada de violência. “Eu diria, contudo, que existem contratendências que tornam mais difícil do que alguns torpemente gostariam. E é fundamental que as pessoas compareçam às urnas e exerçam sua vontade por mudança política sem se deixar levar pelo medo”, afirma.

Autor do livro “Teoria Marxista da Dependência (TDM): problemas e categorias, uma visão histórica” (Editora Expressão Popular), destaca que uma característica da extrema direita é justamente espalhar o medo para ter a iniciativa na política. E, com isso, instaurar uma paralisia do movimento de massas e do debate público em geral. “Esse medo se impõe hoje com propaganda de ódio e ameaças nas redes sociais, mas também com atos de violência política, com agressões físicas e até assassinatos como os perpetrados ultimamente, com setores dispostos a seguir praticando-os, o que não deve ser subestimado.”

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Confira a entrevista na íntegra.

Brasil de Fato RS – O senhor entende que o avanço do extremismo de direita no Brasil fará aumentar a violência no processo eleitoral este ano, assim como aconteceu em outros países latino-americanos, como a Colômbia?

Mathias Seibel Luce – Uma característica da extrema direita é espalhar o medo para ter a iniciativa na política. E, com isso, instaurar uma paralisia do movimento de massas e do debate público em geral. Esse medo se impõe hoje com propaganda de ódio e ameaças nas redes sociais, mas também com atos de violência política, com agressões físicas e até assassinatos como os perpetrados ultimamente, com setores dispostos a seguir praticando-os, o que não deve ser subestimado.

Não se pode descartar o intento de uma escalada. Eu diria, contudo, que existem contratendências que tornam mais difícil do que alguns torpemente gostariam. E é fundamental que as pessoas compareçam às urnas e exerçam sua vontade por mudança política sem se deixar levar pelo medo.

BdFRS – Outro fenômeno importante é que desde o movimento tenentista os militares faziam o que chamavam de “a política do exército”, evitando divisões políticas internas. Neste ano, temos muitos candidatos militares de pijama ou fardados na disputa de cargos nos legislativos do país. A que o senhor atribui esta mudança de atitude?

Mathias – O envolvimento das Forças Armadas na política é recorrente na história contemporânea do Brasil, como demonstrou o livro do pesquisador Rodrigo Lentz, “República de Segurança Nacional”. A novidade no período recente foi a militarização da política no âmbito da própria disputa por cargos eletivos.

As eleições de 2018 já aconteceram sob circunstâncias de um golpe jurídico-parlamentar desferido em 2016 que impediu a participação do candidato à frente das pesquisas de intenção de voto. Poucos meses antes da eleição que levou Bolsonaro à Presidência, uma pesquisa de opinião apurava um índice de confiança nas Forças Armadas em 61,1%, contra 8,5% nos partidos políticos – em franco descrédito – e 35,7% nos movimentos sociais.

É fundamental que as pessoas compareçam às urnas e exerçam sua vontade por mudança política sem se deixar levar pelo medo Um desdobramento da “antipolítica” provocada pela politização da Operação Lava-Jato, investigação seletiva e repleta de fraudes processuais conduzida pelo ex-juiz Sergio Moro e o ex-procurador Deltan Dallagnol, em cuja esteira a legitimidade granjeada pelos militares se afirmou em detrimento dos partidos e como desdobramento do golpe de 2016.

A sequência disto foi um coquetel explosivo, mesclando campanhas difamatórias na mídia oligopolista e em máquinas de fake News a la Steve Bannon nas redes sociais. Agora em 2022, a candidatura Lula disputa os rumos do país contra as mesmas forças ultradireitistas de 2018, em cujas fileiras encontram-se novamente candidaturas de quadros oriundos das Forças Armadas, a começar pelo próprio Bolsonaro, mas também outras figuras em diversos estados.

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BdFRS – Nesta eleição, no âmbito legislativo, surgiram muitos candidatos e muitas candidatas jovens negros e negras, indígenas e LGBTs. É de se esperar, pelo menos, o começo de uma mudança na fotografia das assembleias e da Câmara, hoje trazendo homens brancos e mais velhos?

Mathias – Essa mudança é necessária e já se vê pulsando. Os sujeitos que você mencionou são parte constitutiva e fundamental da questão social no Brasil. E são protagonistas de algumas das lutas mais importantes que acontecem na presente conjuntura. Não à toa o bolsonarismo espalha aos quatro ventos o argumento mentiroso segundo o qual quem defende e luta por essas causas coletivas estaria dividindo o país. Quando, na verdade, essa é uma polarização que é vivida cotidianamente e sentida diante da violência das classes dominantes contra os pobres e contra todos que sofrem racismo, misoginia e violência de gênero e a usurpação de seus territórios.

O calor das lutas contra essas formas de opressão que se combinam com a exploração de classe está forjando uma nova e experimentada geração de quadros, cuja importância deverá crescer no próximo período.

BdFRS – A disseminação de um clima de medo de uma revolta após as eleições a depender do resultado pode ser considerada uma estratégia da extrema direita para que os eleitores evitem votar por uma renovação política?

Mathias – Como disse, a extrema direita procura espalhar o medo para ter a iniciativa na política. E, conforme disseram analistas e institutos de pesquisa, existe uma franja do eleitorado que pode ter se decidido a votar por Lula, mas não externalizou posição devido ao próprio clima de medo espalhado. Se essa tendência se verificar, pode ser o elemento a consolidar as estimativas, com uma possível derrota de Bolsonaro ainda no primeiro turno.

E aí se desdobra outra questão da sua pergunta. Você falou revolta… eu diria reação ou golpe, para sermos mais precisos. Mas há contradições em diversas instâncias. E que podem tornar mais difícil uma aventura de golpe agora. Se por um lado, essa é uma ameaça que não deve ser ignorada, ainda mais se olharmos para a história de países dependentes como o Brasil, por outro lado a resolução do Senado dos EUA publicada nesta quinta-feira (29), os atos massivos em capitais brasileiras pela democracia no mês de agosto, o descontentamento de setores do capital com a instabilidade provocada pelo governo Bolsonaro, lesando até mesmo interesses da economia de mercado em diferentes ramos da produção, são alguns fatores que pesam.

Nesse sentido, existem contratendências dissuasórias ao uso pelo atual governante e suas bases insufladas da mesma tática adotada pelo trumpismo nos EUA. Lembremos da recente ordem de prisão contra Steve Bannon e a apreensão de documentos secretos na mansão de Trump na Flórida, na esteira do episódio da invasão do Capitólio, quando o trumpismo desconhecera o resultado das eleições dos EUA de 2020.

Derrotar Bolsonaro nas urnas será apenas a primeira tarefa. A seguinte, não desconectada dela, será retomar a iniciativa do movimento de massas Talvez conjecturando um eventual cenário como aquele, a alta cúpula do exército brasileiro, na tarde desta sexta-feira (30), teria emitido declarações dizendo que “quem ganhar, ganhou”, depois desmentidas em nota. Não obstante, tenha sido contrainformação ou não, parece haver elementos dissuasórios, de vários fatores, internos e internacionais, transmitindo um recado a setores que pretendam atentar contra o resultado da votação do dia 2.

Domingo será um dia de movimentação e expectativas. E é fundamental que participemos votando pela mudança urgente no país e com uma maioria expressiva, se possível, com vitória já no primeiro turno.

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BdFRS – Em entrevista, Steve Bannon fala que Trump e Bolsonaro são resultado de uma direita populista. Mas o que vemos são semelhanças com o fascismo. Como o senhor caracteriza estes governos, tendo em vista que o trumpismo continua forte nos EUA e a Itália elegeu uma candidata da extrema-direita?

Mathias – Os movimentos da chamada alt-right (em inglês, “direita alternativa” ou “nova direita”) irromperam na cena como resposta ultraliberal-neoconservadora à crise capitalista. Com sua retórica do “politicamente incorreto” e do “antiglobalismo”, arrogam-se como contestadores à ordem vigente. Mas são a face mais odiosa e violenta da mundialização do capital, alimentando a xenofobia, o uso ainda mais acirrado da violência do Estado para assegurar a lucratividade do grande capital, etc.

É assim que respondem às contradições da crise capitalista e da falência da forma política dominante em encontrar saídas para as disjuntivas dos dias atuais. Evocam, com isso, um nacionalismo chovinista que se combina a um ultraliberalismo econômico. E procuram se constituir como movimentos organizados, dentro ou fora de governos nacionais. Trump nos EUA, Salvini-Meloni na Itália, Orban na Hungria, Bolsonaro no Brasil…

Há elementos comuns que ligam o ódio do trumpismo contra os migrantes laborais latino-americanos, da nova direita italiana contra populações do magreb e outros lugares, de Victor Orban contra minorias oprimidas em seu país, de Bolsonaro e seus seguidores contra as pessoas que são alvo de seu racismo, misoginia, lgbtqia+fobia, ataque aos povos originários, sem falar no culto a torturadores, reeditando a doutrina de segurança nacional e a tese do “inimigo interno” e das “fronteiras ideológicas”. 

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Agora: quanto à atribuição de “populista de direita”, um termo volta e meia utilizado, eu formularia de outra maneira. Diria que são forças de extrema direita que alcançam perigosamente uma expressão de massas, procurando se consolidar em seus países como um bloco ultraliberal-neoconservador com tendências neofascistizantes.

Como historiador, preciso dizer que há uma diferença qualitativa e de grau entre o que foi o fascismo na Europa dos anos 1930 e 40 e o que são esses movimentos de hoje. Ao mesmo tempo, também devo dizer que o simples fato de terem alguma parecença com os traços abjetos daqueles fenômenos do passado ou utilizarem algumas de suas práticas exige que não se incorra em vacilações diante das tarefas postas para as esquerdas no atual momento.

E sempre lembrando: derrotar Bolsonaro nas urnas será apenas a primeira tarefa. A seguinte, não desconectada dela, será retomar a iniciativa do movimento de massas e construir uma alternativa de poder que ofereça uma saída consequente às diferentes dimensões da crise. É preciso atender as necessidades e demandas urgentes por emprego, saúde, comida na mesa, perspectiva de um futuro com dignidade e atuando pela elevação do nível de consciência social, com organização.

BdFRS – Em que medida uma eventual vitória de Lula impactará as demais eleições dos próximos anos – entre elas, a da Argentina – na América Latina?

Mathias – O Brasil é o país de maior poder relativo na América Latina. Todos estão com as atenções voltadas para as eleições deste domingo e seus desdobramentos. Tendencialmente – mas sem que seja uma consequência linear ou mecânica – uma vitória de Lula contra Bolsonaro no primeiro turno enfraquece o ímpeto de aliados e forças direitistas em outros países da região, como o macrismo na Argentina. Mas em se tratando da dinâmica dos demais países, há que observar também as condicionantes internas, seja da Argentina, seja de outros países.

Para a classe trabalhadora e as forças populares em todo o continente, é fundamental a eleição de Lula e a derrota de Bolsonaro no primeiro turno no Brasil Em todo caso, para a classe trabalhadora e as forças populares em todo o continente, é fundamental a eleição de Lula e a derrota de Bolsonaro no primeiro turno no Brasil neste domingo, fato que se confirmado abrirá um novo terreno de luta diante da ofensiva em curso. Nesse novo terreno, será decisivo que o movimento de massas organizado retome iniciativa, a fim de abrir outra conjuntura mais favorável em sua luta histórica por emancipação. 

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Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Katia Marko