Fundamentalismo supremo

O artigo 101 da Constituição determina que o “Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. ”

Mais de dois mil anos separam a indicação de um ministro “terrivelmente” evangélico das lições de Platão sobre a divisão política da polis, dos iluministas, bem como da evolução das tradições dos sistemas jurídicos no mundo.

De uma forma geral, há no mundo sistemas jurídicos prevalentes, como a família jurídica romano-germânica, conhecida também como continental, ou “Civil Law”.

Esse sistema pode ser dividido em outros dois, o de matriz francesa, incluindo neste ramo, o Direito Francês, o espanhol e dos países sul-americanos de língua espanhola. Outro importante sistema baseado no “Civil Law” é o de matriz germânica, como o alemão, o suíço e o austríaco. Também podem ser incluídos nessa família os países nórdicos.

Há também o sistema da “Commom Law”, encontrado nos EUA e no Direito Inglês, no qual as decisões são fundamentadas majoritariamente em precedentes dos tribunais e costumes, enquanto no sistema romano-germânico, o Direito aplicado é predominantemente escrito.

É certo que há normas escritas também no Direito anglo-estadunidense, bem como há prática de precedentes também no sistema romano-germânico, mas a prevalência do Direito aplicado é o que importa nessa classificação.

Nesse sistema não se aplicam dogmas religiosos.

No Brasil, conforme soprem os ventos, ora se deseja a uniformização de decisões por súmulas vinculantes e precedentes, ora se deseja afastar das mãos dos tribunais a edição de súmulas alegando-se se tratar de ativismo judicial.

Exemplos eloquentes e antagônicos se situam no surgimento das súmulas vinculantes do STF e as dificuldades impostas à justiça especializada trabalhista, no caso o TST, de criar súmulas.

Enfim, esse é o Brasil, e essa realidade é fruto do sofrível conhecimento jurídico dos legisladores.

Podemos encontrar, ainda, em termos de grandes famílias de sistemas jurídicos, o sistema islâmico, em países alguns árabes, asiáticos e africanos, onde a xaria é aplicada.

Temos também a família Hindu, como destaque para Índia e Nepal, e o sistema chinês, aplicado na China.

No direito romano-germânico, como seria o caso do Brasil, há a ideia central do Estado de Direito (Rechtsstaat), conceito surgido na Alemanha do Século XIX, e normas abstratas previamente criadas para dirimir situações fáticas da sociedade.

Esse princípio também fundamenta a separação de poderes, conforme teoria de Montesquieu, de inspiração aristotélica.

Desde Rousseau, o culto à lei como fonte da vontade geral, é fundamento para o sistema romano-germânico, de onde nasce a legitimidade do poder político.

Voltando a Rousseau, temos que a tolerância religiosa, é o alicerce que garante a existência deste Estado Democrático de Direito, sendo inaplicável uma hegemonia religiosa:  

(…) deve-se tolerar  todas (religiões) as que se mostram tolerantes com as outras desde que seus dogmas nada tenham de contrário aos deveres do cidadão. Mas quem quer que ouse dizer: Fora da Igreja não há salvação, deve ser banido do Estado, a menos que o Estado seja a Igreja, e o príncipe, o pontífice. Tal dogma só pode ser útil num governo teocrático; em qualquer outro, é pernicioso.

De forma sintética, diverge o sistema romano-germânico, com leis nascidas de uma vontade política delegada pelo povo, do sistema do islã, naqueles países onde prevalece a Xaria.

Na Xaria, o núcleo se concentra na religião, com regras constantes do Corão e da Suna, relatos acerca das falas e atos de Maomé, compilados pelos doutores do Islã.

Temos na Xaria, um “direito revelado”, não tendo nenhuma autoridade qualquer ser humano que queira modificá-lo. Nisto se distingue também do Direito Canônico, pois neste há atuação de uma autoridade eclesiástica.

Porém, nas democracias ocidentais, há clara separação da influência de leis da igreja e aquelas de delegação do povo;  Tomás de Aquino, afastou o conceito do processo medieval inquisitório promovidos pela Igreja Romana por meio dos padres da Inquisição.

Pois bem.

O artigo 101 da Constituição determina que o “Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. ” A nomeação será do Presidente da República após aprovação pela maioria absoluta do senado.

Os critérios para indicação são poucos, alguns de ordem objetiva outros de ordem subjetiva.

O critério de notável saber jurídico deveria ter relação com as obras jurídicas publicadas, bem como artigos científicos. Porém, há tempos que o único critério é político.

Se o critério é político, por obviedade, não se pode jamais reclamar posteriormente de decisões políticas. Pura hipocrisia de quem o faz.

Não é sem razão que recentemente passamos a acompanhar citações bíblicas em sustentações orais no STF.

Mas não parou por aí.

Temos que a alardeada indicação de um ministro para o STF, tendo como critério ser “terrivelmente evangélico”, é inconstitucional na raiz, pois se trata de uma afronta ao Estado Democrático de Direito e contrária a toda milenar construção histórica/jurídica/ filosófica do Direito.

Um juiz pode possuir religião, mas a religião não pode possuir o juiz. É o que dois mil anos de história nos ensina.