Memórias do Rio de Janeiro

Amamos uma cidade por diversas razões. Cheguei ao Rio de Janeiro em um dia de semana, sem lenço e sem documento, em 1972

RAY CUNHA, DE BRASÍLIA – Amamos uma cidade por diversas razões. Cheguei ao Rio de Janeiro em um dia de semana, sem lenço e sem documento, em 1972. Tinha 17 anos e não portava sequer carteira de identidade, e contava apenas com o terceiro ano do antigo curso ginasial, hoje, ensino fundamental. Nasci em Macapá, então capital do Território Federal do Amapá, no setentrião da costa brasileira, mais voltada paras as Guianas, o Caribe e a França. Calculo que Macapá era, então, menos de um terço do que é hoje, uma cidadela acossada pelo maior rio do mundo, o Amazonas, e a selva, e seccionada pela Linha Imaginária do Equador.

Em 1968, aos 14 anos, me meti no meio de um grupo de artistas e desde então nunca mais saí da dimensão azul. Em 1971, publiquei, com Joy Edson e José Montoril um livrinho de poemas, Xarda Misturada, e, com ele, no ano seguinte, peguei o rio e a estrada e fui parar no Rio de Janeiro. Fui de barco para Belém e de lá peguei a estrada e viajei de carona para Brasília, de onde tomei um ônibus para o Rio de Janeiro, levando comigo alguns exemplares de Xarda Misturada. Cheguei no meio da tarde em um dia de semana e da rodoviária tomei um ônibus para o coração do Rio de Janeiro, o cruzamento das avenidas Presidente Vargas e Rio Branco.

Levava comigo o endereço de trabalho de uma amiga do pintor e poeta Manoel Bispo, de Macapá, e a confiança inabalável de um garoto ribeirinho de que a amiga do Manoel Bispo me receberia de braços abertos. Localizei-a já à saída do trabalho; ela me olhou e me disse que eu não poderia ficar na casa dela, desejou-me boa sorte e sumiu na multidão.

A sorte é que eu levava também comigo o endereço de um amigo que conheci no Colégio Amapaense, Sílvio, paulistano que fora para Macapá com o pai, um americano que trabalhava na Indústria e Comércio de Minérios de Ferro e Manganês (Icomi), que, juntamente com a Bethlehem Steel, transportou do município de Serra do Navio, para os Estados Unidos, a jazida do melhor manganês do planeta, a preços vis, e deixou uma imensa cratera no Amapá.

Na época, o Sílvio morava com os tios na Alameda São Boaventura 208, Fonseca, Niterói. Cheguei lá à noite. O Sílvio, sua tia e seus primos me receberam muito bem. No dia seguinte, peguei um ônibus, a barca e outro ônibus e fui a Copacabana; desci no Posto 6 e me dirigi para o mar, onde mergulhei naquela mistura de sal, água, sol e azul. Acho que foi nessa química que comecei a amar o Rio de Janeiro, a partir de Copacabana.

Em novembro daquele ano apresentei-me na Primeira Região Militar do Exército. Eu meço 1,64 metro de altura, e creio que pesasse, naquela época, 50 quilos (hoje, peso 64 quilos), e a mudança de clima e a poluição da grande cidade causaram uma coceira no meu corpo todo, de modo que fui dispensado do serviço militar, e vi meu propósito de morar no quartel esfarinhar-se.

O tio do Sílvio era um oficial da Aeronáutica, negro, coisa rara na Ditadura dos Generais (1964-1985). Acho que o episódio que aconteceu naquela noite foi reflexo daqueles anos de chumbo. O tio do Sílvio chegou mais cedo. Eu estava arranhando um violão na sala. O tio do Sílvio ordenou que fôssemos todos dormir. Eu dormia em um sofá, na varanda. Continuei com o violão. Então o tio do Sílvio veio do quarto dele e ordenou que eu pegasse minhas coisas e fosse embora.

Juntei meus pertences – algumas roupas e exemplares de Xarda Misturada – e fui para a rodoviária central de Niterói. Foi uma longa noite. Só senti mais frio na estação aeroviária de Buenos Aires, em certa noite que lá passei, e da qual surgiu o poema Noite Horrível, publicado no livro Sob o Céu nas Nuvens (edição do autor, Belém, 1982). Só quem passa uma noite dessas é que sente o quanto o sol do alvorecer é vivificante. Nem bem o dia amanheceu, lavei o rosto, tomei café com leite com pão com manteiga e me mandei para a representação do governo do Território Federal do Amapá, no centro do Rio de Janeiro.

O representante, Couto, era conhecido por ajudar amapaenses. Conversamos. Ele me perguntou se eu conhecia o Itabaraci, que é de uma geração ligeiramente antes da minha, de Macapá (onde hoje vive); contudo, seu pai, Aimore (em tupi, não leva acento agudo na última sílaba) Nunes Batista, era padrinho da minha irmã caçula, Rosa Maria. Disse ao Couto que sim, conhecia o Itabaraci, e ele me deu um conselho.

– Vai procurar o Itabaraci; ele mora num apartamento em Copacabana, onde a senhoria, dona Maria Antônia, aluga vagas – disse-me ele, e me deu o endereço: Rua República do Peru 210, Apartamento 204, entre as ruas Tonelero e Barata Ribeiro, Copacabana. Vivi dois anos, lá.

Dona Maria Antônia, paraense, funcionária dos Correios, há muito radicada no Rio, foi uma das mulheres mais bacanas que encontrei. Ela simplesmente me acolheu, e só passei a pagar vaga depois que ela mesma conseguiu emprego para mim, como faz-tudo em uma empresa de conserto e venda de peças de eletrodomésticos, primeiramente numa loja em Ipanema e depois em Copacabana.

Quanto ao Itabaraci, e seu irmão, o violonista e pianista Aimorezinho, que nessa época tocava na banda do Raul Seixas, trataram-me como a um príncipe. Por isso sou eternamente grato a eles.

Logo depois, o compositor amapaense Luiz Tadeu Tavares Magalhães, que estava morando no Rio e trabalhava na White Martins, conseguiu para mim uma vaga como contínuo na filial de Jacaré, na Zona Norte. O Tadeu era músico e radialista em Macapá, e me entrevistara várias vezes, na condição de escritor.

Em 1971, antes de publicar Xarda Misturada, participei de um jornalzinho colegial anarquista, A Rosa – Bonitinha mas ordinária, de modo que eu tinha ideia de como fazer um house organ, e foi o que eu fiz, o jornalzinho da filial da White Martins.

Além disso, eu pagava mensalmente uma empresa que fornecia entradas a pelo menos quatro peças teatrais por mês. O gerente da filial, dr. Arlindo, também era cliente da mesma empresa e andamos nos encontrando nos teatros. Ele morava em Ipanema e passou a me dar carona para Copacabana quando saíamos juntos. O jornalzinho e o interesse comum por teatro entre o gerente da filial e eu, além da companhia do Luiz Tadeu, tornavam o ambiente pesado de multinacional um convívio bastante agradável.

Às sextas-feiras, principalmente na primeira do mês, eu saía com o Luiz Tadeu. Às vezes, íamos para a casa do nosso colega de White Martins, Frank Loiola Matos, em Padre Miguel. Mas bebíamos muito sempre. Também foi nessa época que conheci o Luiz Loyola, Lula, irmão do Frank, no Curso de Interpretação Teatral no antigo Teatro de Comedia do Estado da Guanabara (Teco), na turma do professor e ator Jorge Paulo.

A prova final do curso foi a encenação de Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, com músicas de Chico Buarque de Holanda, no extinto Teatro de Arena no Largo da Carioca. Fiz um dos coveiros. Nessa mesma época, começamos leituras e laboratório da peça Miolo de Pão, texto de Luiz Loyola e que expressava “a realidade conflitante, festiva e utópica de uma família do subúrbio carioca” – como diz o próprio Loyola. Nós nos reuníamos na casa do Jamil Viana, na Pavuna; na casa da belíssima Beth Bello, na Ilha do Governador; e na Vila Valqueire. 

No quarto do Loiola, BOE (Boite Onda Estudantil), na casa em Padre Miguel, “aconteciam reuniões com muita música, teatro, poesia, happenings, num clima underground e ambiente psicodélico, cheio de posters de vanguarda, caricaturas, painel com capas de LP, objetos antigos, como um armário centenário com um enorme espelho de cristal na frente da porta, que encantava os narcisistas, uma luminária em formato de chapéu mexicano vermelho, iluminada por uma tênue luz azul opaca, lembrando cabarés da Avenida Prado Júnior, no Leme; no chão, havia um espelho retrovisor redondo, de aproximadamente um metro de diâmetro, do serviço de trânsito do Rio, apelidado de “poço” pelo companheiro de trabalho Paulo Cesar Americano do Brasil, da Remington Rand, onde trabalhei com Luiz Tadeu no inicio da década de 70” – lembra Luiz Loyola.

“Num desses eventos, em uma noite festiva, tive o prazer de receber o amigo Ray Cunha, sutilmente trajando calça jeans do Lixo (boutique cult de Copa), camisa mangas compridas com gola rolé cor roxa e sapatos bicolor vermelho e amarelo… a figura tinha cabelos ruivos black-power no melhor estilo saltimbanco do ator do filme musical Gospell… em sua companhia chegaram Luiz Tadeu e Iara Picanço, depois de uma viagem de trem da Central do Brasil, direto do subúrbio do Lins de Vasconcelos” – recorda Luiz Loyola.

“Numa única visita à casa de Ray Cunha, na Rua República do Peru, em Copacabana, na década de 1970, o poeta me recebeu em seu quarto (vaga), onde havia uma cama beliche e o seu estado de saúde era gripal e febril; driblamos aquele quadro e resolvemos sair pra respirarmos uma brisa do mar caminhando pelo calçadão, depois paramos numa lanchonete e tomamos um delicioso café e suco de laranja com sanduíche, e, serpenteando pelas ruas sombrias do bairro, o poeta fez uma citação irreverente dizendo que Copacabana era uma enorme cama…” – Luiz Loyola mergulha mais naqueles anos dourados, referindo-se ao poema Essa Copacabana Triste Mulher, publicado no livro De Tão Azul Sangra.

“Não posso deixar de relatar, uma noite, quando eu e o poeta chegamos em minha casa, em Padre Miguel, fomos para a cozinha e nos deliciamos com café com bolo, pães, cuscuz de fubá preparados por minha mãe, dona Maria Amélia (in memorian); foi quando o poeta, degustando uma banana, começou a declamar versos de Xarda Misturada, dando um toque tropicalista romântico àquela noite de inverno tímido” – registra Luiz Loyola.

Nessa mesma época, Manoel Bispo foi fazer um curso de pintura no Parque Lage, e foi vizinho do Luiz Tadeu, no Lins. Havia fins de semana que o Bispo e eu saíamos para bater perna. Parávamos para ver os pintores que expõem nas ruas da Zona Sul, entrávamos nas galerias, íamos a cinema e conversávamos sobre tudo. Eu ia muito a teatro, cinema de arte, circos, como o Moscou, e a grandes shows, como o Santana. Ia muito, também, aos programas de auditório da extinta TV Tupi. Varava o Rio noite adentro. Em 1974, já como balconista da filial da White Martins de Jacaré, pedi demissão e voltei para a estrada.

Em 1982, em Belém, com o matrimônio fracassado, parti novamente para o Rio de Janeiro. Mas era como se eu estivesse sonhando. Lembro-me que fui com o Luiz Tadeu para Pedra de Guaratiba, onde o Luiz Loyola festejou seu aniversário, com muita batida do Primo, de Olinda, mais ao norte de Padre Miguel, vinho, cerveja, happenings e a bela voz do Luiz Tadeu. Dessa vez, minha estada no Rio durou pouco tempo. Retornei para Belém e concluí o curso de jornalismo.

Nos anos 1990, eu estava novamente no Rio quando o pintor Olivar Cunha expôs em um espaço em Botafogo, defronte ao Shopping Rio Sul. Ao coquetel de abertura estavam presentes Luiz Tadeu e sua filha e minha querida amiga Luciana Magalhães, carioca, e Luiz Loyola.

Em 1992, fui ao Rio para lançar o livro de contos A Grande Farra (edição do autor, Brasília, 1992). Foi uma estada etílica. Em 2000, participei da Bienal do Livro, com Trópico Úmido – Três Contos Amazônicos. Naquele ano, em uma manhã de domingo, eu acabara de sair da praia de Ipanema, com Luciana Magalhães, quando houve o primeiro arrastão televisionado – cenas aterrorizantes. Eu continuava mergulhado em um sonho etílico.

Em 2010, passei uma semana com a minha gata, a psicóloga Josiane Souza Moreira Cunha, no Rio. Ela fora participar do décimo primeiro Congresso Brasileiro de Psicooncologia e do quarto Encontro Internacional de Cuidados Paliativos em Oncologia, de 22 a 25 de setembro, no Centro de Convenções do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC), em Botafogo.

Hospedamo-nos no Hotel Inglês, ao lado do Museu da República, onde Getúlio Vargas se matou, no Flamengo. Jantávamos em um restaurante defronte ao Museu, quase sempre camarão. Todas as comidas, ali, eram deliciosas. Aquela parte do Flamengo, até Botafogo, passando pelo Largo do Machado, é a Europa no trópico, como de resto toda a Zona Sul.

Enquanto a Josiane estava no Colégio Brasileiro de Cirurgiões eu incursionava pela Zona Sul, em um resgate memorialístico redentor. Durante aquela semana eu esquadrinhei a Zona Sul, agora com o olhar maduro do homem de 56 anos de idade e que não mergulhava mais em bebedeiras mortais.

Perambulei por muitas ruas da Zona Sul, observei a arquitetura, a Lagoa Rodrigo de Freitas à noite, bati perna em Copacabana, Ipanema, Leblon, Barra da Tijuca, Flamengo, Botafogo, centro do Rio, e retornei ao Pão de Açúcar, com minha amada. Lá de cima sabemos de pronto por que o Rio é a Cidade Maravilhosa.

Aonde quer que eu vá estarei sempre em algumas cidades, porque elas, como o Rio de Janeiro, florescem no meu coração. Hoje, escrevo para o DIÁRIO CARIOCA. É como um namoro com a cidade, e que não acaba nunca