Desde a Rio 92, a conferência no Rio de Janeiro que estabeleceu as Convenções do Clima, da Biodiversidade e da Desertificação realizada 33 anos atrás-, ficou acertado que a Convenção sobre Biodiversidade precisaria de um fundo próprio para implementar suas decisões.
Na época, o mecanismo provisório escolhido para desempenhar essa função foi o Global Environment Facility (GEF), vinculado ao Banco Mundial. Países em desenvolvimento questionam até hoje o desequilíbrio na governança, já que precisam realizar rodízio para poder votar. Questionam que ao invés de basear o peso do voto principalmente nas contribuições financeiras, poderia ser levado em conta o impacto ambiental nos países em desenvolvimento e suas necessidades específicas.
A necessidade de rodízio se dá como formar de gerenciar a participação de 184 membros onde há apenas 32 cadeiras disponíveis. O agrupamento ocorre por razões regionais e logísticas dentro do sistema de representação regional do GEF, no qual países são organizados em blocos que compartilham um único assento no Conselho.
Assim, Brasil, Colômbia e Equador se juntam em um único voto para o Bloco América Latina; no Bloco Africano os 52 países africanos compartilham dois votos no Conselho, divididos entre o norte e o sul do continente; no Bloco da Ásia e Pacífico, países como Bangladesh, Nepal e Maldivas compartilham um único voto, assim como pequenos estados insulares do Pacífico; e no bloco Europa Oriental e Ásia Central, países em transição econômica, como Ucrânia, Cazaquistão e Armênia, também revezam suas representações. Enquanto isso, os Estados Unidos têm voto fixo e maior poder de decisão sobre o uso dos recursos, por ser um dos maiores doares do Fundo, mesmo sem serem signatários da Convenção.
Na COP 15, em Montreal, pela primeira vez, houve unanimidade entre os países participantes ao assinar o acordo chamado Marco Global para a Biodiversidade Kunming-Montreal. Este acordo compromete-se a proteger 30% das terras e mares por meio de quatro objetivos e 23 metas, a serem atingidos até 2030 – 30×30 –, além de apoiar financeiramente a conservação da natureza nos países em desenvolvimento até 2050.
Nesse contexto, foi acordado que, para que o Marco da Biodiversidade fosse rigorosamente cumprido, os países desenvolvidos desembolsariam US$ 20 bilhões de dinheiro público para financiar políticas de conservação da biodiversidade nos países em desenvolvimento até 2025. No entanto, o compromisso dos países ricos na COP16 foi limitado a doações pontuais que somaram US$ 400 milhões – cinquenta vezes menos que o prometido.
Assim, já era esperado que sua regulamentação não seria fácil. A realidade é que o que está em “jogo” é o modelo econômico atual, que representa a principal ameaça à conservação da vida no planeta.
Um estudo recente da Earth Track, publicado em setembro de 2024, destaca o apoio direto dos governos ao desmatamento, à poluição da água e ao consumo de combustíveis fósseis. A análise mostra um aumento de US$ 800 bilhões em apoio direto a atividades como o desmatamento e o uso de combustíveis fósseis. Segundo o relatório, os gastos globais com subsídios prejudiciais ao meio ambiente aumentaram para US$ 2,6 trilhões. A plataforma The Conversation já havia apresentado este cenário no artigo sobre finanças e biodiversidade[RR3].
A negociação sobre subsídios já havia sido estabelecida nas Metas de Aichi, com o compromisso de eliminar os subsídios prejudiciais à natureza até 2020. Contudo, isso não ocorreu.
No novo texto de 2022, na meta 18, que trata da redução dos subsídios prejudiciais, o documento previa o redirecionamento de US$ 500 bilhões (R$ 2,8 trilhões) de subsídios prejudiciais à natureza, que deveriam ser convertidos em incentivos para atividades positivas para a biodiversidade.
Desmatamento, agricultura, pesca industrial e o setor energético estão entre os setores que deverão rever sua relação com os recursos naturais. Também entra nesse escopo o uso de combustíveis fósseis, cujos efeitos nas mudanças climáticas são amplamente conhecidos e que, por sua vez, também ameaçam a biodiversidade dos ecossistemas. Ana Carolina Amaral, colaboradora da Ecoa UOL em Cali, abordou esse tema em sua matéria sobre da COP16[RR4].
No caso do desmatamento, por exemplo, estima-se que o planeta perca cerca de 10 milhões de hectares por ano e que 75% da superfície terrestre já esteja significativamente alterada. Assim, a mudança no uso da terra é um dos principais motores da perda de biodiversidade em todo o mundo.
Apesar das negociações sobre a regulamentação do mecanismo financeiro terem se estendido até as primeiras horas do último dia da COP16, os negociadores não conseguiram conciliar visões opostas sobre como financiar e monitorar a implementação do GBD (Global Biodiversity Framework – Quadro Global da Biodiversidade). O delegado da União Europeia (UE) pediu a palavra e, em vez de apontar um problema específico e propor uma solução, rejeitou todo o texto. Noruega, Japão e Canadá adotaram a mesma postura.
A diplomata brasileira Maria Angélica Ikeda fez uma declaração assertiva criticando a falta de disposição das nações para negociar pontos específicos do texto e foi aplaudida ao lamentar que a discussão sobre financiamento deveria ter sido um dos primeiros temas abordados, em vez de ser relegado para a madrugada, quando, ao ultrapassar o prazo, muitos membros das delegações de vários países começaram a deixar a plenária para pegar seus voos de volta aos seus países. Essas discussões devem continuar em uma nova reunião no próximo ano, embora os detalhes ainda não tenham sido confirmados.
COP16 tem sim o que celebrar
Se a questão financeira, tão crucial, não foi resolvida, o que temos então para comemorar com relação a COP16? Destaco aqui quatro pontos fundamentais que podem ser divulgados e celebrados:
O primeiro se refere ao fortalecimento dos direitos dos povos indígenas, afrodescendentes e comunidades tradicionais. Os afrodescendentes também foram incluídos no Artigo 8(J) da Convenção sobre Diversidade Biológica. Quem protege a biodiversidade são, em sua maioria, essas populações.
A conservação dos recursos naturais e dos territórios depende da atuação das comunidades locais de diversas origens – indígenas, quilombolas, ribeirinhos –, bem como da capacidade de desenvolver meios de subsistência baseados em soluções naturais. Uma das reivindicações desses povos é o reconhecimento e a demarcação de seus territórios, o que, por si só, garantiria grande parte da estratégia de proteger 30% das terras (30×30). No entanto, esse ponto específico foi abordado apenas nos protestos realizados pelas lideranças indígenas ao longo do evento, sem encaminhamentos concretos dos governos.
Como segundo ponto, destaca-se a repartição de benefícios envolvendo informações de sequência digital (Digital Sequence Information – DSI), com a criação do Fundo de Cali, que garante 50% do montante aos povos indígenas e comunidades locais. Ilana Cardial, da Reset, explicou[RR5] “: “o uso de DSI não estava previsto no Protocolo de Nagoia nem em outra frente da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB).
Ou seja, quem desenvolve um produto baseado em algo real, mas acessado em sua essência digitalizada, pode evitar a obrigação de remunerar os países de onde vieram as fontes originais”. Essa conquista é, portanto, muito relevante, pois regula o mercado e garante que os benefícios alcancem as comunidades locais de todas as origens.
No Fundo de Cali os recursos virão daqueles que se beneficiarem da DSI, direta ou indiretamente, como empresas de cosméticos e farmacêuticas, que deverão contribuir com o fundo global com um por cento de seus lucros (1%) ou 0,1 por cento de suas receitas, dependendo de seu tamanho.
Em entrevista ao HubCast, Carina Pimenta, Secretária de Bioeconomia do MMA, afirmou: “… a situação do mecanismo que garantirá o funcionamento do Fundo Cali exige cautela. Avançar muito em uma negociação pode resultar em um acordo desfavorável. Precisamos de uma boa negociação, já que estamos falando de um fundo perene, pensado para gerações futuras”. Carina também ressaltou que, no Brasil, o DSI já está coberto pela Lei de Acesso ao Patrimônio Genético e Conhecimento Tradicional Associado.
No entanto, poucas empresas brasileiras declaram, sendo geralmente as de pequeno e médio porte, que estão isentas de pagar pela repartição de benefícios, as que realizam suas declarações. As empresas podem ser o ponto de virada na valorização da natureza, se agirem em escala e mobilizarem financiamentos significativos para proteger, restaurar e usar a natureza e seus recursos de forma regenerativa.
Terceiro, o reconhecimento de que as agendas do clima e da biodiversidade são duas faces de uma mesma moeda, como afirmou a ministra do Meio Ambiente da Colômbia e presidente da COP 16, Susana Mohammad. Essas agendas precisam caminhar juntas e se fortalecer mutuamente. O sucesso da pauta de biodiversidade, focada principalmente em conservação e restauração/regeneração, repercute positivamente na agenda climática, e essa conexão já está estabelecida. A COP 30, em Belém, será uma COP do Clima fortemente entrelaçada com a agenda da biodiversidade.
Na COP29, em Baku, o chefe de Clima da ONU, Simon Stiell, reforçou que toda a economia mundial pode entrar em colapso se os países não fortalecerem suas cadeias de suprimentos diante do aumento dos custos associados aos choques climáticos. Além do financiamento, na COP29 espera-se que os signatários apresentem, até fevereiro, uma nova rodada de NDCs (Nationally Determined Contributions) como são chamadas as estratégias nacionais. Espera-se que os países elevem a barra dos cortes prometidos pelos países.
Entretanto, sediada em uma região impactada por dois conflitos e realizada após a eleição de um presidente norte-americano hostil à pauta climática, a Conferência sofreu um esvaziamento de autoridades, agravado pela proximidade da Cúpula de Líderes do G20, que ocorreu no Rio quase que simultaneamente. Mas os papéis e os mandatos das duas reuniões são diferentes.
O G20 do Rio de Janeiro declara, enquanto a COP29 decide.
Os líderes reunidos no Brasil representaram um tratado, e seus comunicados não têm força de lei internacional. O G20, formado por um grupo de 19 países, mais a União Europeia e a União Africana, tem como foco as questões econômicas – que impactam nas mudanças do clima, mas que olham para outros diversos temas. O fato é, que a poucos dias do fim da COP29, ainda não se vê saída para os recursos que os países em desenvolvimento demandam e o que o mundo industrializado está disposto a pagar.
Por fim, seja na agenda da biodiversidade ou do clima, o planeta suplica por uma ação coletiva. Iniciativas como a Business for Naturevêm liderando capacitações e aprendizado, encorajando mais empresas a desenvolverem estratégias para a natureza e planos de transição. Pelo menos 230 empresas líderes solicitaram à UE e a governos de todo o mundo que demonstrem liderança imediata para fortalecer – e não enfraquecer – as políticas, incentivos e legislações que impulsionarão as ações empresariais necessárias para deter e reverter a perda da natureza até 2030.
É fundamental que todos se envolvam: ampliar o número de empresas, especialmente as grandes, envolver a academia e todos os movimentos e organizações é essencial para o futuro do planeta e de todas as suas espécies.
Rosana Rezende, Bióloga, mestre em Ciências Florestais, PUC Paraná
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