Estatização de empresa de alimentos pode garantir soberania para a Argentina?

Em 2020, a declaração do presidente argentino, Alberto Fernández (Frente de Todos), de que o conglomerado agroexportador Vicentin seria expropriado causou uma forte reação no país. Setores econômicos saíram em defesa da propriedade privada, com apoio de veículos conservadores. Entre setores progressista, por outro lado, cresceu a expectativa de desarmar a concentração do mercado no ramo alimentício, importante fonte de divisas para o país.

No último fim de semana, o tema voltou ao centro do debate. Em uma entrevista ao jornal Página 12, o presidente afirmou que “este seria o momento certo” para a intervenção. “O Estado nacional, através da dívida [da Vicentin] com o Banco Nación, é um credor privilegiado”, pontuou o presidente. “Assim, pode determinar a quebra ou a continuidade da empresa. Se formos pela continuidade, poderemos estabelecer as condições para que isso custe o mínimo possível.”

O custo ao que se refere Fernández é a dívida que supera US$ 1 bilhão que Vicentin deixou, e se acumula, ao declarar “estresse financeiro” em dezembro de 2019. Segundo a própria empresa, 1.500 postos de trabalho diretos estão em jogo e produtores ainda esperam receber pelos grãos que entregaram à cerealífera.

Em 2020, o conglomerado de grãos e processados (como farinha e óleo) foi a concurso preventivo, um processo de recuperação judicial para evitar a quebra e recuperar a empresa em um acordo entre os credores. A aposta pela estatização seria evitar que uma das principais agroexportadoras do país caia em mãos privadas e, ao mesmo tempo, recuperar o que se considera uma grande fraude da empresa sobre o país.

A dívida de Vicentin com o estatal Banco Nación alcança US$ 300 milhões, créditos concedidos à empresa durante o governo de Mauricio Macri (Partido Republicano). Ao final do mandato macrista, em dezembro de 2019, a cerealífera declarou cesse de pagamentos. Dessa forma, o Estado constitui-se como principal credor da empresa.

Após Fernández anunciar que considerava estatizar a companhia, o setor agitou a opinião pública. Protestos em plena primeira etapa da pandemia alçaram o rechaço à expropriação como sinônimo de inconstitucionalidade. Muitos manifestantes expressaram naquele momento o temor de ter seus bens individuais expropriados, em um paralelo improvável entre cidadãos e a 6ª empresa no ranking de exportações de cereais e oleaginosas, setor que lidera as vendas ao exterior no país.

Em um momento de alta popularidade em seus primeiros meses de gestão, o presidente deu um passo atrás — o primeiro de muitos. A volta à menção sobre o caso reativou a atenção, já não com a mesma expectativa, e o termômetro social, assim como sua popularidade, também se encontram em outro cenário.

O novo cenário

“Na época, tentei avançar sobre o caso. O cenário que Vicentin apresentava naquele momento me levou a desistir, porque faria um favor aos credores, não à Argentina”, disse Fernández ao Página 12. “No cenário atual, com a intervenção da Corte Suprema, e há possibilidade de um cramdown, é um cenário para estudar. Porque é possível.”

Com a Corte Suprema no caso, a possibilidade que surge é o cramdown, última instância para salvar uma firma da quebra ao não alcançar um acordo nos prazos previstos.

O momento mais adequado, nas palavras do presidente, consiste em um novo capítulo do processo de recuperação judicial da cerealífera. A Corte Suprema de Justiça de Santa Fé, província onde se localiza o complexo da Vicentin, assumiu o expediente para avaliar o desempenho do juiz designado para o caso, Fabián Lorenzini. O magistrado é suspeito de irregularidades, como a suspensão dos prazos processuais o que, em outras palavras, dilatou o caso e deu margem para o esvaziamento da empresa.

Um dos jornalistas do Página 12 que realizaram a entrevista com Fernández, Raúl Dellatorre, vem acompanhando de perto o caso Vicentin e destaca duas questões primordiais que marcam este novo cenário. “Uma é a crise do preço dos alimentos que a Argentina padece e preocupa o governo politicamente, sendo a inflação um dos seus principais motores. O segundo ponto é que o caso judicial revelou um universo de delitos que colocaram em questão, inclusive, o papel do juiz que tinha a causa”, afirma Dellatorre ao Brasil de Fato.

A inflação dos alimentos tem sido um fator preocupante no país, e a situação foi piorada pelo aumento dos preços internacionais com a guerra entre Rússia e Ucrânia. A variação entre abril e maio foi de 4,4% apenas sobre o preço dos alimentos, e há estimativas de que junho registre uma variação maior. Segundo o índice semanal do Centro de Estudos Econômicos e Sociais, apenas os alimentos secos, entre os itens mais importantes da cesta básica, registraram um aumento de 3,3% até o dia 20 deste mês.

“O Estado poderia ter uma incidência no negócio dos alimentos em um momento de crise”, pontua Dellatorre sobre uma possível intervenção estatal. “No contexto da exportação de matérias primas, o aumento dos preços internos e até mesmo o desabastecimento que isso gerou sobre alguns produtos, esta poderia ser uma resposta mais audaz por parte do governo e uma aproximação a uma nova ferramenta.”

Neste sentido, Fernández destacou que o governo, de fato, precisa de novas ferramentas: os acordos com as grandes empresas não funcionaram, uma vez que a trágica e crescente falta de acesso da população aos alimentos não entram nas prioridades do poder econômico concentrado; tampouco as sanções tiveram efetividade.

Uma agroexportadora estatal

Com participação ativa do Estado, Vicentin seria o que na Argentina se chama empresa testemunha — ou seja, uma estatal que funciona como parâmetro para avaliar as empresas privadas do setor, neste caso, do mercado de grãos. Uma saída considerada não apenas útil mas necessária em um contexto de alta pressão sobre os preços internos, conformados pelas multinacionais que resistem às políticas de controle da inflação.

Um exemplo já existente de empresa testemunha no país é a petrolífera YPF, que recentemente completou 100 anos. “Hoje, pagamos US$ 3,40 pelo gás em boca de poço, e nos Estados Unidos está US$ 6,50. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que a YPF esteja nas mãos do Estado”, pontuou o presidente. “Agora, no quesito alimentar, temos que fazer algo que nos permita ter uma ferramenta como uma empresa testemunha para ordenar esse setor”, concluiu. Com seu braço no setor agro, a firma YPF Agro, seria incorporada com a cerealífera em uma suposta intervenção .

Se bem há dúvidas sobre os ânimos e a força política da coalizão governista para avançar sobre a cerealífera, o consenso reside na fala do presidente sobre a necessidade de repensar a estrutura do setor alimentício no país, e isso inclui o controle e a presença do Estado na comercialização, na logística e na legislação que rege o negócio dos alimentos.

Alimento como mercado mundial

Um dos principais problemas nessa estrutura foi detalhada recentemente pela Equipe de Pesquisa Política (EdiPo) e o Monitor de Atualidade do Trabalho e a Economia (Mate): aumentam as exportações, mas não aumentam as reservas do país. A pesquisa, publicada neste mês na revista Crisis, destacou que entre 8 e 10 empresas que controlam o comércio exterior argentino se sustentam em um decreto da época da ditadura, jamais revogado, que permite uma via legal para a fuga de divisas rumo a paraísos fiscais: a chamada “planificação financeira criativa”.

“Consiste em um desenho financeiro com a rede de empresas internacionais para transportar parte do lucro e das vendas para praças de baixa tributação fiscal”, explica o jornalista Mario Santucho, integrante da EdiPo. “Mais de 95% das vendas argentinas aos países asiáticos [principais compradores] são trianguladas, em geral em quatro praças principais: Países Baixos, Suíça, Estados Unidos ou Uruguai. Assim, se subnotifica com menor preço o que efetivamente vendem ao comprador final.”

O decreto da ditadura que facilita essas operações com tom de legalidade define que as vendas ao exterior sejam registradas em forma de declaração jurada ao Estado, e a exportação efetiva pode ser realizada até um ano depois de apresentado o documento. A retenção sobre o valor exportado é aplicado sobre o valor da data declarada, e não o da exportação concretizada.

“No dia em que a Rússia invadiu a Ucrânia, 24 de fevereiro, se sabia que o mercado de commodities subiria exponencialmente”, conta Santucho. “Nesse mesmo dia, os CEOs dessas oito multinacionais que concentram 95% do setor de cereais e oleaginosas decidiram declarar uma quantidade de vendas que representa, só em azeite de soja, 40% de toda a colheita do ano.”

“Essas empresas concentram 95% das exportações, o que representa metade das vendas ao exterior do país”, afirma. “A grande pergunta é como exercer algum tipo de soberania sobre isso, porque desde os anos 1990, esse funil define metade das exportações na Argentina e está em mãos privadas, concentradas e, além disso, estrangeirizadas.”

Recuperar soberania

O debate sobre a possível intervenção estatal na Vicentin ganha, então, uma amplitude que alcança toda a região. Como portadores de matérias primas e da dependência do ingresso de dólares, os países da América Latina compartilham a sujeição imposta pelo desenho geopolítico que, como aponta o deputado do Parlamento do Mercosul, Gastón Harispe, definiu o abandono regional do processo de industrialização. Isso envolveu a série de privatizações nos anos 1990 que, na Argentina, implicou na entrega das ferrovias, da construção naval e das próprias hidrovias.

“É uma fortaleza simbólica enorme que a sociedade possa debater sobre Vicentin e o Canal de Magdalena, assuntos que antes não eram tema de debate”, aponta, mencionando um dos canais que poderia funcionar, junto com o investimento na indústria naval, como ferramenta para transportar os alimentos do país.

“A grande luta pela soberania alimentar é a conexão entre os sistemas de comércio exterior e sobre toda a produção de alimentos”, opina Harispe. “O dia em que rompermos com as cadeias logísticas financeirizadas e discutirmos entre as nossas sociedades e comunidades organizadas em prol de uma transformação profunda da matriz produtiva e da logística, vamos estar falando de um grande ciclo de distribuição.”

Edição: Thales Schmidt