Victor Cabral, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Fábia Muneron Busatto, Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU)
O primeiro governo de Donald Trump (2017–2021) mostrou que ele tinha dois importantes inimigos públicos: a China e as migrações irregulares de latino-americanos para os Estados Unidos. No Project 2025, documento com propostas de governo produzido pela Heritage Foundation, que tende a servir de base do segundo mandato do republicano, esses dois inimigos são reforçados. Porém, dessa vez, a América Latina figura como um espaço de disputa por influência entre os Estados Unidos e a China.
O Project 2025 alega que a China está conquistando a América Latina por meio de empréstimos e investimentos que, desde 2005, já teriam ultrapassado US$ 240 bilhões, seja via entidades estatais ou não. Para os conservadores, a entrada de países latino-americanos na Nova Rota da Seda é um risco à segurança nacional estadunidense, pois a China poderia extrair e comprar mais barato recursos naturais, conseguir apoio político e diplomático para isolar Taiwan e obter acesso a portos e bases para fins militares. Em novembro de 2024, o presidente chinês, Xi Jinping, esteve no Peru para inaugurar o Porto de Chancay, construído com financiamento da estatal chinesa Cosco Shipping Company, totalizando US$3,4 bilhões. O objetivo: reduzir de 40 para 28 dias o transporte de mercadorias entre o Peru e a Ásia.
O Project 2025 faz críticas ao governo democrata de Joe Biden (2021–2025), afirmando que suas “políticas climáticas progressistas” destruíram a rentável indústria petrolífera da América Latina, reduzindo as receitas de exportação e promovendo instabilidade econômica e política. Segundo eles, com a região em crise, a China se aproveitaria para expandir seus negócios e afastar as nações latino-americanas dos Estados Unidos. Além do negacionismo climático, esse argumento conservador é falso.
Conforme relatório de 2023 da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a queda na produção de petróleo se deu por lacunas de investimento; aumento na competição internacional; variação da demanda internacional; e queda do superávit do setor na região.
Ademais, a queda do preço do petróleo globalmente fez a região investir mais em energia renovável para reduzir sua dependência dos combustíveis fósseis, como mostra o gráfico abaixo.
Leia mais: Meta enfrenta STF sobre responsabilidade digital
Tentando reverter a perda de influência estadunidense na América Latina, a iniciativa conservadora defende que o segundo governo de Trump utilize a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID). A USAID deve priorizar investimentos em projetos pró-democracia e livre-mercado; tecnologia 5G; desenvolvimento tecnológico; e prevenção da pesca ilegal chinesa.
Ademais, argumenta-se pelo aumento do financiamento a atores locais, especialmente entidades religiosas, voltadas para funcionarem como uma barreira à “promoção do aborto, radicalismo de gênero, extremismo climático e outras ideias woke”. A pauta reprodutiva, conforme o Project 2025, é fundamental para a região, pois as ONGs que receberem ajuda financeira da USAID devem priorizar as agendas antiaborto, anti-LGBT e econômicas pró-EUA.
Por considerar a América Latina uma região crucial para a segurança dos EUA, por sua proximidade geográfica e riquezas naturais, o Project 2025 sugere que Trump, via USAID, também invista em projetos de reformas do Judiciário para ser mais “funcional” (não há especificação do que isso significa); promoção de reformas trabalhistas e previdenciárias; e redução de impostos e de regulamentação do comércio para ampliar trocas com os EUA, pois, assim, a região poderia encontrar “estabilidade econômica e política”. Adicionalmente, o projeto indica que “ideias socialistas” devem ser desafiadas por capturarem governos e juventudes.
Leia mais: Alemanha e Reino Unido criticam mentiras de Elon Musk
Um dos caminhos para isso está no financiamento de universidades e think tanks pró-livre mercado e que “defendem ideias democráticas” e transferência de seu portfólio financeiro e tecnológico para organizações latino-americanas até 2030. Sim, o documento afirma categoricamente que os EUA devem investir em atores locais para desestabilizar governos de esquerda. Não, não estamos na Guerra Fria e no período de financiamento de ditaduras militares, mas sim, em 2025, com as mesmas ideias de intervenção em busca do fantasma do comunismo —e isso é dito abertamente.
Leia mais: Meta dobra à direita, encerra checagem de fatos e nomeia aliado de Trump
A falácia migratória
Quanto às migrações, o Project 2025 enfatiza que as fronteiras devem ser “seguras”, e os fluxos, “controlados”, pois a entrada “ilimitada de mão de obra barata” reduziria os salários dos trabalhadores estadunidenses. Segundo dados do Banco Mundial, durante a gestão Trump (2017–2021), o PIB per capita dos Estados Unidos teve média de US$ 63.384, enquanto no governo Biden (com dados até 2023), o valor foi de US$ 77.374.
Dados de desemprego da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) também desmentem os conservadores, pois Biden assumiu em janeiro de 2021 com o desemprego em queda, em 6,1%. Seu mandato conseguiu permanecer abaixo de 4% em boa parte do quadriênio e obteve 3,4% em abril de 2023, o menor valor da série histórica da OCDE desde janeiro de 2005. Ou seja, migração não promove perda de renda e desemprego nos EUA.
Ainda assim, o Project 2025 insiste na teoria conspiratória com base no supremacismo branco de que as migrações destroem a economia e a sociedade estadunidenses. Eles acusam Wall Street, empresários de tecnologia do Vale do Silício e grandes varejistas de serem pró-migração para reduzir salários e lucrarem mais com “trabalhadores baratos latino-americanos”.
Outrossim, defendem que os EUA transfiram suas cadeias globais de produção da Ásia para a América Latina e para o país em si, recorrendo a um novo ciclo de industrialização para garantir empregos e renda, além de infringir perdas econômicas à Ásia. Os negócios ampliados na América Latina reduziriam a pobreza, o que, segundo eles, tornaria a migração para os EUA menos atrativa.
A China não é a única inimiga na América Latina, pois países da região são citados como ameaça à segurança regional, devido ao narcotráfico, e vulneráveis a potências hostis, como a China, Irã e Rússia, sendo eles: Colômbia, Equador, Guiana e Venezuela. O México surge como um país que perdeu sua soberania para o narcotráfico e que precisa ser protegido. Segundo o Project 2025, Trump deve retomar a implementação do programa “Remain in Mexico” (“Permaneça no México”), que determina que o país será responsável por acolher migrantes para os EUA; lutar contra narcotraficantes de fentanil que seriam aliados da China (que forneceria matéria-prima e equipamentos), influenciando na letal epidemia de drogas contra americanos.
Ademais, a defesa da construção do muro na fronteira EUA-México é renovada, mas com a inserção de militares da ativa e guardas nacionais (convocadas por governadores republicanos) para prender migrantes na fronteira, supostamente contrabandistas de fentanil. Nesse contexto, o Departamento de Segurança Interna tem seu papel reforçado.
O Project 2025 não aborda a luta contra a demanda por drogas, mas menciona a intervenção no México e no suposto financiamento chinês ao fentanil como maneira de suprimir a oferta. Em diversas passagens, a China aparece como a inimiga desestabilizadora da América Latina, seja com dinheiro, seja com homens armados na fronteira. O que vemos como discurso norteador para o mandato Trump 2.0 é, portanto, a utilização de um rival geopolítico como argumento para intervenções ilegais na região.
Victor Cabral, Doutorando em Relações Internacionais, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e Fábia Muneron Busatto, Pesquisadora colaboradora do INCT-INEU, Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU)
This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.