Guilherme Casarões, Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP)
A denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República contra o ex-presidente Jair Bolsonaro e outras 33 pessoas é o evento político mais aguardado – e mais importante – dos últimos meses. O documento não traz, propriamente, nenhum elemento novo: quase todos fatos apresentados já constavam no indiciamento apresentado pela Polícia Federal, em novembro do ano passado.
São duas as grandes novidades contidas no documento de Paulo Gonet. A primeira delas é a responsabilização de Bolsonaro sobre todo o processo de subversão democrática, que se estendeu até os eventos de 8 de janeiro de 2023. Tudo começou ainda em 2021, logo que o Supremo Tribunal Federal anulou as condenações contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e abriu caminho para seu retorno ao jogo eleitoral.
A decisão favorável a Lula levou Bolsonaro a adotar, segundo a denúncia, “crescente tom de ruptura com a normalidade institucional”. Desde então, o presidente, seus aliados e apoiadores passaram a questionar a legitimidade do Supremo Tribunal Federal (a partir do lema “Supremo é o povo”), bem como a idoneidade das urnas eletrônicas.
Narrativas antidemocráticas foram inspiradas em slogans de Trump
Em ambos os casos, as narrativas antidemocráticas foram inspiradas nos slogans da campanha de Donald Trump em 2020, como “stop the steal” and “big lie”. A emulação do trumpismo é parte indissociável da estratégia política de Bolsonaro desde sua campanha presidencial de 2018.
A segunda novidade diz respeito à caracterização, como tentativa de golpe, de um conjunto de decisões e planos que não se enquadram no modelo clássico de ruptura institucional. Como a trajetória política republicana do Brasil foi marcada por golpes de Estado, uma estratégia comum da defesa de Jair Bolsonaro se baseia na ideia de que, se não se tentou colocar tanques na rua ou fechar o Congresso, não houve intenção de ruptura da democracia.
Gonet demonstra, em seu relatório de 272 páginas, que um golpe contemporâneo pode acontecer por outros meios. No caso brasileiro, a tentativa foi marcada pelo uso ostensivo de mecanismos de desinformação, muitas vezes por parte do próprio presidente e de membros do governo, para promover desconfiança nas instituições e no processo eleitoral, produzir instabilidade social e assegurar a permanência de Bolsonaro no poder, mesmo após ter sido derrotado nas urnas.
Mas a denúncia vai além. Não se tratou somente de uma tentativa de minar a democracia com narrativas e ataques amplamente disseminados a apoiadores nas redes sociais. Nas palavras do Procurador-Geral, entre os objetivos da organização criminosa montada para o golpe estavam realizar “sequestros, prisões e mortes” para garantir o controle dos três poderes e o restabelecimento da lei e da ordem.
Oficiais de altas patentes integraram planejamento antidemocrático
Segundo o plano golpista, chamado “Punhal Verde e Amarelo”, membros das Forças Especiais do Exército, também conhecidos como “kids pretos”, assassinariam o ministro do Supremo, Alexandre de Moraes, bem como os vencedores da eleição de 2022, Lula da Silva e seu vice, Geraldo Alckmin. O plano já era conhecido há alguns meses, mas Gonet traz elementos para sustentar que Jair Bolsonaro não só estava ciente desses passos, como anuiu a eles.
As acusações contra o ex-presidente também jogam luz sobre o papel dos militares na trama golpista. Oficiais de todas as patentes, a começar por membros do círculo interno do presidente, como o almirante Almir Garnier e os generais Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Walter Braga Netto, foram peças integrais do planejamento antidemocrático.
Não surpreende que, dos 34 denunciados, 24 sejam militares. A tentativa de golpe foi a conclusão de um processo acelerado de militarização da política brasileira, iniciada ainda sob a presidência de Michel Temer, em abril de 2016. Em quatro anos, o número de militares ativos servindo no Poder Executivo subiu de 1834 para 2558. No auge desse processo, em 2020, 8 dos 22 ministérios do governo Bolsonaro eram ocupados por militares.
Bolsonaro segue negando todas as acusações e procura manter-se vivo politicamente. Se parece haver elementos suficientes para que a STF coloque o ex-presidente e muitos de seus associados atrás das grades, alguns elementos podem influenciar o timing e a dinâmica desse processo.
Em primeiro lugar, a denúncia coloca Bolsonaro na posição de perseguido político. A vitimização é uma das estratégias mais populares da extrema direita, uma vez que lhe permite projetar-se, em nome do povo, contra um inimigo vazio e assustador (o “sistema”).
Embora Gonet tenha sido bastante cuidadoso na elaboração de sua denúncia como peça exclusivamente jurídica, o bolsonarismo – no Congresso e nas redes – foi rápido em denunciar uma suposta perseguição contra “o maior líder político que o Brasil já viu”. Ou seja, o tensionamento contra as instituições políticas segue a pleno vapor.
Bolsonarismo segue como a principal força de oposição
Em segundo lugar, a denúncia tem o potencial de inflamar os apoiadores de Bolsonaro, com possíveis desdobramentos eleitorais. Falta um ano e meio para a próxima eleição nacional no Brasil e, apesar do temporário favoritismo de Lula, o bolsonarismo segue como a principal força de oposição. Figuras como a ex-primeira dama, Michelle Bolsonaro, o deputado Eduardo Bolsonaro e o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, projetam-se como concorrentes fortes para a corrida presidencial de 2026.
Diante de um governo fraco, cuja popularidade caiu de 35% para 24% desde dezembro, um bolsonarismo unificado pela narrativa de perseguição será um grande problema para Lula. Essa narrativa será testada em meados de março, para quando se convocaram manifestações nacionais contra o atual governo – e a favor de Bolsonaro.
Por fim, devemos acompanhar como a Casa Branca responderá aos eventos políticos no Brasil. Sabemos que a pressão do governo Biden foi crucial para que se evitasse a concretização do golpe de Estado em 2022. Trump e seus aliados, como Elon Musk e Marco Rubio, são críticos abertos de Lula e das decisões do Supremo Tribunal Federal.
É improvável que o governo Trump, um mês após a posse, irá tratar a situação política brasileira como prioridade. Mas um processo da Trump Media e da Rumble contra Alexandre de Moraes, por suposta violação da soberania americana, mostra que a pressão norte-americana virá – e de vários lugares diferentes. O caminho até 2026, longo e tortuoso, mostra que os desafios à democracia podem vir de dentro para fora, mas também de fora para dentro.
Guilherme Casarões, Professor of Political Science, Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP)
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