por Rudá Ricci – Tenho a impressão de que giramos a chave no Brasil. A perversidade, revestida de fundamentalismo religioso, foi além do imaginável com o projeto de lei (PL) dos Estupradores. Foi como um soco no estômago de quem tem um mínimo de empatia com a vida de crianças que sofreram abusos e atrocidades.
Ao ver o rosto impassível de Arthur Lira após encaminhar nebulosamente a votação simbólica da urgência deste projeto de lei da perversidade, veio à mente uma passagem de uma minissérie sobre Marco Polo. A cena se passa na segunda temporada desta série é uma das mais angustiantes que já assisti: Kublai Khan abraça a criança Zhao Xian e o sufoca até a morte. A criança representaria uma ameaça ao avanço do poder mongol no sul da China porque fazia parte da dinastia que acabava de ser destruída.
A repulsa que a cena causa tem relação direta com o PL do Estupro. A reação das mulheres que saíram às ruas em tantas cidades brasileiras na noite de quinta-feira, dia 13, um dia após o dia que o comércio comemora as vendas do dia dos namorados foi um alento, mas não limpou o gosto amargo que permanece na boca de quem não consegue entender como a maldade avança em nosso país com tanto desembaraço.
Acredito que tudo começou com o arrombamento da “Janela de Overton” a partir de 2015. Esta janela indicaria a tolerância de uma sociedade ou comunidade a respeito de comportamentos ou ideias que passam a ser aceitáveis. Em 2015, o Brasil sofreu um ataque de escroques que articularam ofensas gratuitas no parlamento e que se somaram aos ataques em massa desferidos nas redes sociais. A fusão das duas frentes atordoou os setores progressistas, que demoraram a reagir. O ataque que alargou os batentes da Janela de Overton brasileira envolveu um enorme investimento de setores empresariais. Somente entre janeiro de 2019 e agosto de 2021, período do desmando do governo Bolsonaro, onze canais bolsonaristas no YouTube, responsáveis por propagar fake news sobre as urnas eletrônicas e defender o governo federal, lucraram mais de 10 milhões de reais, segundo o TSE.
Segundo o Intercept Brasil, o Estado brasileiro entregou mais de R$ 11 milhões ao Google, entre maio de 2019 e julho de 2020, para que o gigante da internet distribuísse anúncios do governo de extrema direita pela internet. Parte considerável desse dinheiro (até 68%, segundo o próprio Google) foi parar no bolso dos editores dos sites que veiculavam fake news.
A enorme manipulação da opinião pública disseminada por sete anos seguidos gerou um esgoto informacional que quebrou parte dos limites morais que definia a identidade pública dos brasileiros.
Tenho para mim que o impacto desta quebra de limites morais foi tão significativo que atingiu a leitura dos segmentos democráticos organizados em partidos políticos. A convicção sobre a aliança necessária para se vencer o extremismo fascista no Brasil criou uma chancela para construção de uma amálgama estranho, desequilibrado, quase amorfo.
E é este cenário que liberou as maldades na Câmara dos Deputados. Não se trata de um parlamento majoritariamente conservador. O pensamento conservador, a começar pelos princípios do seu grande formulador, Edmund Burke, nunca rompeu com princípios morais básicos, de defesa da infância, por exemplo. O que temos no parlamento brasileiro não é conservadorismo, mas escárnio. Uma ambição política tão desmedida que não teme dizer seu nome em canais de TV a cabo, declarando que vão impor o fim do aborto “custe o que custar”, incluindo o futuro de crianças abusadas, o que criará um ciclo sem fim de sofrimento e segregação social.
Não há como respirar ar puro num país que não consegue conter mais a maldade dos fundamentalistas que colocam seu poder e ideário acima da vida e da humanidade. Não há como alimentar esperança num país em que fundamentalistas zombam de quem consideram que vive à sua mercê.
No Império Mongol não havia o conceito de sociedade civil. Os mongóis eram caçadores e exploravam rebanhos, passando a maior parte da sua vida na sela de seus pôneis das estepes. Aprendiam a cavalgar e usar armas ainda com pouca idade. Autores como o consagrado Reinhard Bendix sugerem que as sociedades que foram dominadas pelo Império Mongol não conseguem, ainda hoje, consolidar uma democracia porque vivem sob o manto da violência e imposição das elites nacionais.
LEIA TAMBÉM
- “Perversa” se despede da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema
- FAKE NEWS: TSE firma novas parcerias com entidades e empresas para combater notícias falsas
- Canal OFF: Destaques da programação – 5 a 10 de abril
- “Brincar com a morte é perverso”, diz Maia sobre alteração de estatísticas da Covid-19
- Artigo | A Reforma Agrária Popular que ensina solidariedade
Não temos na nossa história qualquer vínculo com o Império Mongol. Porém, o fundamentalismo desumano que toma conta da Câmara dos Deputados procura, de todas as formas, negar os princípios da sociedade civil e sufoca o futuro de muitas crianças brasileiras. Um basta seria pouco para este tipo de ataque à democracia e humanidade em nosso país. É preciso algo grandioso para restabelecermos as bases da nossa Janela de Overton.
Rudá Ricci
Cientista político formado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo na década de 80. Mestrado em Ciência Política pela Unicamp e Doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. Presidente do Instituto Cultiva em Minas Gerais.