Integridade da informação: Por que a regulamentação das plataformas digitais deve ser urgente no Brasil

As plataformas digitais podem ser definidas como sistemas tecnológicos que medeiam interações, comunicações e transações em um ambiente digital conectado, fortemente apoiado na coleta e processamento de dados.

Redacao
Por Redacao - Equipe
13 Min Read

Juliano da Silva Borges, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict)

Atualização: No dia 7 de janeiro de 2025, Mark Zuckerberg, presidente da Meta, anunciou que Facebook e Instagram abandonariam os processos de checagem de fatos. Apesar da limitada eficácia do fact-checking em reduzir a crença em desinformação, a decisão revela as reais intenções políticas da corporação frente à nova correlação de forças com a vitória eleitoral da extrema-direita nos EUA. Agora, informações falsas serão apontadas apenas pelos próprios usuários, sem nenhum tipo de marcação especial pela plataforma. As medidas anunciadas incluem ainda o aumento do impulsionamento de conteúdos políticos e a transferência da equipe de moderação da Califórnia para o Texas, uma mudança com forte simbolismo político.

Esse cenário representa uma oportunidade para que magnatas das plataformas digitais fortaleçam a cruzada imperial contra iniciativas que buscam mitigar os danos causados pela proliferação de discursos de ódio, especialmente em países como o Brasil. Enquanto isso, a Meta segue censurando conteúdos que denunciam o genocídio do povo palestino por Israel. O episódio remete ao testemunho de Frances Haugen, ex-gerente do Facebook, que, em 2021, revelou ao Senado dos EUA que a plataforma prioriza o engajamento em detrimento da segurança dos usuários. A retórica da liberdade de expressão é usada como cavalo de troia para justificar a vocalização do fascismo, não importa o quanto isso possa desestabilizar governos e fraturar sociedades. Apesar do impacto negativo para a integridade da informação online, a medida escancara como essas empresas nunca estiveram genuinamente preocupadas com a qualidade do debate público e a preservação da democracia.


Em novembro de 2024 ocorreu no Rio de Janeiro a 1ª Conferência Internacional de Integridade da Informação. Na ocasião, diversos pesquisadores de várias partes do Brasil e de outros países se reuniram para discutir como fortalecer informações mais íntegras na internet, isto é, mais confiáveis, consistentes e seguras.

Entre mesas sobre desinformação ambiental, soberania digital e uso de inteligência artificial para promover desinformação em processos eleitorais, as discussões sempre tocavam um ponto comum: o papel central desempenhado pelas plataformas de negócios digitais no atual contexto sociotécnico, marcado por sobrecarga informacional, falta de privacidade, desinformação e insegurança, problemas que prejudicam a qualidade da internet e vem comprometendo uma série de aspectos do mundo social como um todo.

Diante de tantos problemas, a necessidade de regulamentação implica estabelecer regras de convivência em um ambiente descontrolado ou sujeito apenas ao controle privado, não necessariamente comprometido com os valores republicanos que devem guiar toda a vida pública, incluindo aquela que se desenvolve em contextos virtuais e digitais.

As Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), que emergiram a partir da convergência das indústrias de informática, telecomunicações e mídia, redefiniram profundamente a organização econômica e social global. Desde os anos 1970, essas tecnologias se consolidaram como ferramentas fundamentais para o avanço do capitalismo em sua etapa tardia, financeira e neoliberal, cuja expansão foi marcada pela busca de mercados desregulados, por pressões pela sua desregulamentação e pela promoção da globalização dos fluxos de capital.

Nesse contexto, as plataformas de negócios digitais, como expressão culminante das TICs, tornaram-se um fenômeno central da economia global, transformando não apenas os mercados, mas também as relações sociais, políticas e culturais. As plataformas digitais assumiram posição tão dominante na economia contemporânea porque são capazes de conectar oferta e demanda em um mesmo ambiente tecnológico, onde há massiva coleta de informações com processamento inteligente por meio de programações algorítmicas e sistemas de inteligência artificial.

Essa infraestrutura potencializa a eficiência econômica, ao maximizar transações de mercado e impulsionar a produção de riqueza. Contudo, isso também introduziu novas dinâmicas de controle social e político. Com a expansão da globalização econômica e a integração de mercados, as atividades das plataformas digitais atravessam fronteiras, influenciando não apenas as economias, mas também a organização das relações sociais e políticas globais.

As plataformas digitais podem ser definidas como sistemas tecnológicos que medeiam interações, comunicações e transações em um ambiente digital conectado, fortemente apoiado na coleta e processamento de dados. Elas desempenham um papel central na emergência do que o professor de Humanidades Digitais do King’s College de Londres, Nick Srnicek, chama de ‘capitalismo de plataforma’.

Essa nova fase do desenvolvimento capitalista é caracterizada pela intermediação digital e pelos efeitos de rede, nos quais o valor da plataforma aumenta conforme cresce seu número de usuários, favorecendo assim um ambiente propício à monopolização dos mercados. Essa tendência é reforçada por práticas como subsídios cruzados, que atraem usuários com serviços gratuitos enquanto geram receitas por meio da exploração de dados pessoais convertidos em publicidade personalizada.

Srnicek aponta que a crescente dominância das plataformas digitais foi impulsionada por sua capacidade técnica de organizar mercados e estabelecer novas dinâmicas de interação, nas quais a interdependência entre os usuários é moldada pela prerrogativa das plataformas de definir regras que favorecem seus interesses corporativos.

Impactos sociais negativos

Mas o impacto das plataformas digitais vai além das dinâmicas econômicas. No âmbito social, essas plataformas reconfiguram também as interações humanas e os processos de formação de opinião. O uso de algoritmos para personalizar conteúdos cria um fenômeno conhecido como ‘filtros de bolha’, conforme descrito por Eli Pariser. Essa personalização invisível expõe os usuários a informações que reforçam suas crenças preexistentes, contribuindo para maniqueísmos e a disseminação de desinformação.

Além disso, a concentração de poder em um pequeno número de empresas – como Google, Meta e Amazon – intensifica as desigualdades econômicas e reduz a concorrência, estabelecendo monopólios digitais. As consequências dessa concentração também se manifestam no acesso desigual a tecnologias, na dependência tecnológica e na exclusão digital de comunidades vulneráveis. Para essas comunidades, a ausência de acesso a plataformas representa não apenas uma lacuna tecnológica, mas também a perda de oportunidades econômicas, educacionais e culturais.

A coleta e o processamento de dados em larga escala também levantam questões sobre privacidade e controle. A economista Shoshana Zuboff aponta a existência de um ‘capitalismo de vigilância’, que transforma a vida humana em uma fonte de dados, extraídos e utilizados para prever e influenciar comportamentos. Esse modelo de negócio compromete direitos fundamentais, como a privacidade, e cria um sistema de vigilância distribuído, que afeta desde a navegação online até as interações cotidianas mediadas por dispositivos conectados.

Em um contexto em que os dados se tornaram uma das principais commodities globais, surgem preocupações sobre a manipulação algorítmica para moldar opiniões, influenciar escolhas de consumo e controlar narrativas públicas. Além disso, essa vigilância constante gera um estado de ansiedade permanente entre os indivíduos, que se sentem constantemente monitorados e avaliados, com impactos deletérios sobre sua saúde mental.

No campo do trabalho, as plataformas digitais reestruturaram relações laborais, promovendo a precarização e ampliando formas de exploração. Modelos como a gig economy ou economia dos ‘bicos’ ilustram como essas empresas externalizam riscos e reduzem custos ao classificar trabalhadores como autônomos, sem garantias trabalhistas.

Além disso, a dependência de dados para a organização de processos produtivos introduz um novo tipo de controle algorítmico, que limita a autonomia dos trabalhadores e reduz sua capacidade de negociação. A precarização do trabalho também tem impacto direto na segurança financeira e nas perspectivas de longo prazo dos trabalhadores, agravando desigualdades sociais preexistentes.

A centralidade das plataformas digitais também tem consequências políticas significativas. O controle sobre os fluxos de informação permite a essas empresas influenciar opiniões públicas e processos democráticos. O escândalo da Cambridge Analytica, por exemplo, demonstrou como dados coletados por plataformas como o Facebook podem ser utilizados para manipular eleitores e moldar resultados eleitorais.

Essa capacidade de influência é potencializada pela opacidade dos processos algorítmicos, que dificulta a responsabilização dessas empresas. Por tudo isso, a influência dessas plataformas nos sistemas democráticos levanta questões sobre a necessidade de regulamentações mais rigorosas para proteger o debate público e assegurar a transparência nos processos decisórios.

Mais transparência e segurança

Diante desses desafios, é fundamental repensar os modelos de negócio e a governança das plataformas digitais. Pesquisadores como Helena Martins, Rodrigo Moreno Marques e Sergio Amadeu da Silveira, conferencistas do evento no Rio de Janeiro, defendem a necessidade de incorporar valores públicos – como privacidade, equidade e segurança – às práticas dessas empresas.

Além disso, é crucial estabelecer regulamentações que limitem práticas monopolistas, protejam os direitos dos usuários e promovam uma distribuição mais justa dos benefícios gerados pela economia digital. Mas essas iniciativas precisam ser acompanhadas de esforços para aumentar a transparência no uso de dados e algoritmos, permitindo que usuários e governos compreendam e regulem melhor as operações dessas corporações.

Afinal, o impacto das plataformas digitais estende-se também à esfera cultural, em que suas dinâmicas de operação influenciam a produção e o consumo de conteúdo. A personalização de experiências e a ênfase na retenção da atenção criam uma economia cultural baseada em ‘cliques’, muitas vezes em detrimento da diversidade e da qualidade dos conteúdos.

Além disso, a crescente dependência de algoritmos para a distribuição de informação traz à tona o debate sobre o pluralismo e a liberdade de expressão na sociedade. Ao mesmo tempo, o avanço do capitalismo de vigilância exige uma reflexão profunda sobre como equilibrar inovação tecnológica e responsabilidade social, de modo a garantir que as plataformas digitais sirvam aos interesses coletivos em vez de perpetuar desigualdades e explorar vulnerabilidades sociais.

No século passado, o crescimento vertiginoso da indústria automotiva exigiu que a sociedade estabelecesse regras elementares para promover um trânsito mais seguro. Essas normas definiram responsabilidades entre usuários, empresas e governos, criando códigos de conduta compartilhados que ajudaram a mitigar os diversos problemas ocasionados pela proliferação de carros nas ruas. Neste século, marcado pela predominância da vida e dos fluxos digitais, enfrentamos o desafio político de implementar regulamentações eficazes que ampliem o controle ético e democrático da cidadania sobre os impactos negativos gerados pela concentração de poder dos monopólios globais das grandes plataformas digitais.

Juliano da Silva Borges, Jornalista e pesquisador de pós-doutorado, Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (Ibict)

This article is republished from The Conversation under a Creative Commons license. Read the original article.

Assuntos:
Compartilhe esta notícia

Assine nossa Newsletter