Governo Bolsonaro liberou fazendas em terras Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul

“Em 2005 a gente perdeu nosso Dorvalino, uma grande liderança que ajudou muito a comunidade. Também perdemos nosso jovem Semião [em 2015], em uma retomada em que aconteceu muita violência. Além dele ter sido morto pelos proprietários [rurais], teve muitas pessoas machucadas que até agora têm trauma.” O relato é da educadora Alenir Aquino Ximendes, liderança da Terra Indígena (TI) Ñanderu Marangatu, em Antonio João, na fronteira do Mato Grosso do Sul com o Paraguai. Ela relembra os últimos conflitos sangrentos que ocorreram entre indígenas e fazendeiros pela ocupação do território, que chegou a ter a homologação concluída em 2005 e pouco depois suspensa por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Desde então, os povos Guarani e Kaiowá disputam a área na Justiça com proprietários rurais. 

A Ñanderu Marangatu é uma das 13 TIs em processo de demarcação no MS, onde o governo de Jair Bolsonaro certificou mais de 50 mil hectares de fazendas, mostra levantamento da Agência Pública. O estado foi campeão em assassinatos de indígenas no Brasil entre 2005 e 2019, segundo estudo do Instituto Socioambiental (ISA) com base em números do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), e nas últimas semanas assistiu a um novo recrudescimento dos conflitos após as mortes de três Guarani e Kaiowá na retomada de Guapoy, em Amambai, a cerca de 350 quilômetros da capital Campo Grande, entre junho e agosto.

Das treze TIs atingidas pelas certificações no Mato Grosso do Sul, dez são de ocupação tradicional dos povos Guarani e Kaiowá, que aguardam a conclusão dos processos de reconhecimento oficial das terras pelo Estado, paralisados em todos os casos. Parte delas é palco de confrontos históricos entre fazendeiros e indígenas, situação agravada pelos registros das propriedades rurais sobre as áreas, de acordo com especialistas ouvidos pela reportagem.

Aldeia Campestre e Marangatu dentro da TI Ñanderu Marangatu, dos Guarani-Kaiowá; território é o mais afetado pela medida da FunaiÉ o caso da TI Ñanderu Marangatu, que teve 72,5% de sua área afetada pela Instrução Normativa (IN) nº 09 da Funai. São sete imóveis rurais registrados quase integralmente dentro do território, onde também foi assassinado, em 1983, o histórico líder Guarani Marçal de Souza, conhecido por sua luta pioneira pelo direito à terra e por ter se encontrado com o papa João Paulo II em 1980.

Publicada em abril de 2020, a normativa da Funai facilitou a realização desses registros, pois na prática autoriza certificações de imóveis privados em TIs não homologadas — ou seja, que ainda não tiveram a demarcação concluída por decreto presidencial de homologação. Elas incluem territórios em estudo, declarados ou delimitados. As certificações são feitas no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) federal, mantido pelo Incra.

O Mato Grosso do Sul é o estado com maior quantidade de fazendas certificadas nessas TIs. São 87 propriedades que somam ao todo 53 mil hectares — ou 53 mil campos de futebol —, extensão que fica apenas atrás dos números identificados no Maranhão, cujos imóveis privados em territórios de demarcação incompleta ocupam 138,4 mil hectares, como a Pública revelou.

Hoje os Guarani e Kaiowá já ocupam cerca de 85% da TI Ñanderu Marangatu, embora a briga por sua titularidade esteja na Justiça. Ximendes diz que a extensão da TI não ocupada por indígenas — cerca de 15% — está nas mãos de arrendatários, que mantêm ali suas plantações de soja. 

Embora não tenham ocorrido conflitos envolvendo mortes no território desde 2015, a memória de episódios passados de violência traz medo. “Espero que aqui em Ñanderu Marangatu não tenha mais derramamento de sangue para termos o documento da nossa terra na mão e podermos usufruir do que é nosso”, afirma a liderança. “Para a gente ser livre, porque por enquanto a gente se sente ainda como um passarinho na gaiola que não pode voar.”

Ela explica melhor: já que a terra não está homologada, os governos deixam de fornecer serviços básicos, como poços artesianos para garantir o abastecimento hídrico — os indígenas, de acordo com a liderança, precisam trazer água de fora em galões. “A gente precisa [também] de posto de saúde, mas quando a gente vai atrás ninguém atende porque não pode ser feito dentro da área da retomada”, relata. “A comunidade sente que os fazendeiros ainda estão mandando na reserva, e isso deixa a comunidade revoltada.”

Família de ruralistas é beneficiada por norma da FunaiLocalizada a cerca de 300 quilômetros de Campo Grande, a TI Ñanderu Marangatu foi a mais atingida pela norma da Funai no Mato Grosso do Sul. Os Guarani e Kaiowá decidiram mais uma vez retomar a área de 9.300 hectares em 2005, depois de publicado seu decreto de homologação, em março daquele ano — antes disso, parte deles vivia numa aldeia próxima à beira da estrada. Em resposta, donos das fazendas sobrepostas à TI entraram na Justiça pedindo o anulamento da demarcação e a reintegração de posse. Começou aí uma batalha judicial que levou à suspensão da homologação pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ainda em 2005, situação que perdura até hoje.

Entre os fazendeiros que disputam o território com os indígenas, cujas propriedades foram verificadas no Sigef após a publicação da instrução normativa, estão os irmãos Pio e Dácio Queiroz Silva (o último, ex-prefeito de Antônio João, município onde fica a TI) e Roseli Ruiz, esposa de Pio e presidente do sindicato rural da cidade. Pio e Roseli criaram até uma ONG para defender os interesses ruralistas no Mato Grosso do Sul, a Recovê, hoje desativada. Roseli tinha entrada em Brasília: chegou a prestar depoimento na Comissão dos Direitos Humanos do Senado, também em 2005, para “denunciar” que o Cimi recebia dinheiro de organizações internacionais para patrocinar