Análise | Apresentadores de programas policiais violam direitos e usam a mídia como palanque

Não é de hoje que programas policialescos são usados como trampolim para apresentadores e repórteres que se utilizam do capital político acumulado para se lançar na disputa para vagas no Legislativo ou no Executivo. Em 2022, no que tem sido apontada como a eleição mais importante desde a redemocratização, o número de candidatos do segmento é expressivo. Levantamento** do Intervozes apurou a existência de 27 candidatos a Deputado Estadual, 11 a Deputado Federal, quatro a Governador e um ao Senado em 14 estados e no Distrito Federal. Dos 38 candidatos ao Legislativo, cinco são cearenses: Erlan Bastos (Republicanos) e Marcos Antonio Moraes Lima (PSD) disputam uma vaga na Câmara Federal, enquanto Evaldo Costa (Republicanos) e Ferreira Aragão (PSDB) tentam acesso à Assembleia Legislativa do Estado. Além destes, Ely Aguiar (PSDB) também se lançou na disputa para Deputado Federal, mas teve a candidatura indeferida.

À frente de programas veiculados pela TV Cidade (afiliada à RecordTV), TV Diário (do Grupo Verdes Mares, Rede Globo), Band Ceará e TV Jangadeiro (afiliada ao SBT), os nomes são velhos conhecidos da população cearense por conta do uso de concessões públicas de rádio e TV que não são fiscalizadas. Apesar desses personagens serem afastados das suas funções de trabalho durante a campanha eleitoral oficial, as candidaturas oriundas dos programas policiais já saem na frente em termos de visibilidade midiática.

Um dos casos emblemáticos é o do mais jovem do grupo de policialescos candidatos neste pleito no Ceará: Erlan Bastos tem 29 anos e ganhou notoriedade, entre outras coisas, ao comemorar a morte de pessoas no comando do policialesco Balanço Geral, da TV Cidade, afiliada da RecordTV. Além do policialesco, o candidato é dono de um portal de notícias e entretenimento que, após parceria com o IG, figura entre os maiores de audiência. Apesar de estar fora da TV durante o período eleitoral, os perfis do candidato no Instagram e no Twitter seguem publicando notícias do portal de entretenimento do qual ele é dono, mantendo o engajamento outrora conquistado no ramo midiático.

Evaldo Costa foi vereador da capital e agora disputa uma vaga como deputado estadual, já foi militar e apresenta o Cidade 190 (TV Cidade – RecordTV) desde 2009. Ele é conhecido por incitar a violência durante a transmissão como forma de aplicação da “justiça”. Seus alvos preferenciais são adolescentes suspeitos de cometerem atos ilícitos, em sua maioria pretos e pobres, que são julgados e condenados ao vivo e com jargões como “Bom de dar umas lapadas”, provocando a opinião pública contra os jovens.

Também com passagem pelo Cidade 190, além do Brasil Urgente (Band Ceará) e do Comando 22, Ferreira Aragão, candidato à reeleição como deputado estadual, ficou conhecido pela performance à frente das pautas de violência e por proferir bordões de incitação ao justiçamento e ao uso da força pela polícia, como é o caso “Do pescoço pra baixo é canela”. Antes de sair da TV para concorrer às eleições, o candidato realizou a Caravana Brasil Urgente gravando vários programas em cidades do interior do estado e em bairros da capital Fortaleza. Apesar de estar fora do período eleitoral, a ação certamente conferiu ainda mais visibilidade e popularidade ao apresentador.

Marcos Lima (PSD), candidato a deputado federal, se despediu do Rota 22 e da TV Diário no início deste ano, após a emissora anunciar o fim dos programas policiais na grade de programação. Nos 16 anos à frente do policialesco, Marcos Lima herdou além do capital político, o bordão “Por uma sociedade mais justa e mais pacífica”, slogan de sua atual campanha.

Ely Aguiar, por sua vez, tem longa carreira política. Foi eleito deputado estadual pela primeira vez em 2006, pelo Partido Social Democrata Cristão (PSDC), atualmente Democracia Cristã (DC), sendo reeleito em 2010 e em 2014 pelo mesmo partido. Com passagem pelos programas Os Malas e a Lei, Cidade 190 e A hora dos Mala, o apresentador, repórter e político tem a marca de fazer sátira e chacota com suspeitos de atos criminosos e com pessoas em privação de liberdade.

Apesar de guardarem diferenças entre os estilos próprios de condução dos programas, os candidatos policialescos têm em comum a exploração sensacionalista da violência e apelam para a exposição indevida de crianças e adolescentes em conflito com a lei, desrespeitam a presunção de inocência de suspeitos de cometer crimes, incitam o desrespeito às leis e atentam contra a dignidade humana.

Histórico

Em 2014, o programa Os Malas e a Lei era apresentado por Ely Aguiar que na época estava no seu terceiro mandato de deputado estadual. Na ocasião, a emissora TV Diário, do Grupo Verdes Mares e afiliada à Rede Globo, foi alvo de ação do Ministério Público Federal (MPF-CE) por exibir cenas impróprias e violar direitos humanos. Na Ação Civil Pública, o MPF pediu a condenação da TV no valor de R$ 1 milhão pela exibição de corpos esquartejados, imagens de adolescentes em situação de vulnerabilidade, entrevistas com pessoas sob guarda do Estado antes mesmo do julgamento, cenas de exploração sexual, entre outras violações.

Também em 2014, o Cidade 190 por onde passaram nomes como Vitor Valim (ex-Deputado Federal e atual prefeito da cidade de Caucaia), Ferreira Aragão e Evaldo Costa (candidatos a Deputado Estadual em 2022) figurou de forma vergonhosa nacionalmente por exibir cenas de um estupro de uma criança de nove anos, dentro da sua própria casa. As imagens veiculadas pela TV Cidade, afiliada da RecordTV, na hora do almoço – que chegaram a ter 30 mil visualizações, em apenas um dia, nas redes sociais da emissora – permitiam identificar facilmente tanto a vítima quanto o agressor.

Após um amplo processo de repúdio e mobilizações da sociedade cearense, a emissora foi multada em pouco mais de R$ 23 mil, um valor ínfimo considerando a força econômica dos veículos de comunicação e a quantidade de anunciantes que os programas policialescos têm em geral.

Apesar de recentemente a emissora local TV Diário ter anunciado o fim dos programas do gênero na sua grade de programação, os policialescos seguem fortes nas demais emissoras em versões locais de programas que estampam a grade nacional como Brasil Urgente e Alerta Nacional. Os programas policialescos – fenômeno midiático com pelo menos 30 anos de presença na radiodifusão brasileira e que registraram dados alarmantes de 15,7 mil violações de direitos mensais, em 2016 – infelizmente não é coibido na mesma intensidade com que pratica os crimes, seja pela dificuldade de fiscalização do sistema de Justiça ou pelos entraves políticos oriundos das relações entre os sistemas de poder.

Ao contrário, a fórmula de violar direitos para buscar conquistar audiência e para ganhar capital e poder político têm se mostrado eficiente, uma vez que não há fiscalização concreta dos órgãos responsáveis e que a população não têm meios fáceis de denunciar. A lista de anunciantes que financiam esses programas é grande e com grande participação do Governo Federal como demonstrou pesquisa feita pelo Instituto Alana e pela Rede Andi em 2016.

Mídia sem violações

O levantamento feito pelo Intervozes faz parte do projeto Mídia Sem Violações de Direitos, uma iniciativa permanente do coletivo Intervozes. Em 2022, o projeto buscou por candidaturas ao Governo do Estado, Assembleias Legislativas estaduais, Câmara dos Deputados, Senado e suas suplências, além de pesquisar os programas policialescos de radiodifusão das 10 maiores cidades, em número de habitantes, de cada estado.

Em 2018, os policialescos figuraram 23 candidaturas em 10 estados. Em 2022, esse número quase dobrou chegando a 43. Desses, um candidato renunciou, mas permaneceu no levantamento pela emblemática liderança entre os policialescos.

A esmagadora maioria dos candidatos policialescos no atual pleito são homens, com 50% de brancos, 49% pardos e 1% pretos autodeclarados, e quase todos com larga experiência em eleições. Apenas 12 candidatos participam pela primeira vez de uma corrida eleitoral.

Quase metade dos policialescos (17) são do PP (4), PL (5) e Republicanos (8), partidos que compõem a base aliada do atual presidente da República. Desses, ao menos 13 são apresentadores de programas na Rede Record. Os demais partidos que representam essas candidaturas são: PSD (7), União Brasil (4), Solidariedade (3), Avante (2), MDB (2), PSDB (2), PDT (2), Cidadania (1), Podemos (1), Patriota (1) e PTB (1).

No Ceará, o Republicanos de Erlan Bastos apoia a candidatura de Capitão Wagner (UB) para Governo do Estado e de Bolsonaro (PL) para presidência na mesma toada de  Evaldo Costa, que também se lançou na sigla. Já Marcos Lima (PSD) e Ferreira Aragão (PSDB) apoiam a chapa de Roberto Cláudio para Governo do Estado e de Ciro Gomes para presidência da República.

Na próxima terça-feira, 27, o Intervozes realiza, em seu perfil no Instagram, debate ao vivo com pesquisadoras/es, ativistas e o Ministério Público Federal onde apresenta os dados completos do monitoramento sobre os candidatos oriundos de programas policialescos e também dos donos de canais de rádio de TV, os donos da mídia. A transmissão acontece às 19h pelo perfil @intervozes.

*Jornalista, mestra em Comunicação (UFF) e Coordenadora Executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

**O levantamento completo está no site do Intervozes. Os dados foram coletados a partir de um trabalho coletivo que envolveu a colaboração de Jonaire Mendonça, Iago Vernek, Iury Batistta, Mabel Dias, Nataly Queiroz, Paulo Victor Melo, Raquel Baster e Sheley Gomes. A pesquisa foi coordenada por Tâmara Terso e Olívia Bandeira, todes integrantes do Intervozes.

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Fonte: BdF Ceará

Edição: Camila Garcia