Segunda resex mais desmatada da Amazônia tem 185 mil cabeças de gado e só 2 multas

Há anos a Reserva Extrativista (Resex) Jacy-Paraná, em Rondônia, sofre com invasões, A fiscalização quase inexistente e o avanço da pecuária – tanto em número de cabeças de gado como de fazendas registradas – ocorrem apesar da existência de um acordo firmado entre o governo de Rondônia e o Ministério Público do estado (MPRO) para combater a pecuária ilegal através do compartilhamento de dados relativos à presença de gado na Resex, como mostram informações obtidos pela Agência Pública através da Lei de Acesso à Informação (LAI). A criação de gado é proibida por lei nesse tipo de unidade de conservação.

Desde a homologação do acordo em março de 2021, apenas dois autos de infração foram lavrados na Resex pela Secretaria de Desenvolvimento Ambiental (Sedam), ambos em setembro de 2022 por desmatamento. 

O baixo número de autos de infração lavrados na Resex Jacy-Paraná, localizada nos municípios de Porto Velho, Buritis e Nova Mamoré, contrasta com o alto desmatamento registrado no local. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (

Ainda de acordo com dados obtidos da Idaron, 203 novos estabelecimentos agropecuários foram registrados na Jacy-Paraná desde 2021, sendo 96 destes entre janeiro e setembro de 2022. Ao todo, existem 1.171 desses estabelecimentos na Resex com registro na Idaron. A autarquia é responsável pela vigilância e defesa sanitária animal em Rondônia e possui dados sobre todos os produtores e propriedades rurais, inclusive os que criam gado em fazendas localizadas em áreas protegidas, como a Resex Jacy-Paraná.

Bois em fazenda ilegal na Resex Jacy-Paraná, à beira do rio de mesmo nome
Bois em fazenda ilegal na Resex Jacy-Paraná, à beira do rio de mesmo nome

A origem do acordo e seus termos

O acordo surgiu de uma ação civil pública ajuizada pelo MPRO contra a Idaron em julho de 2019. Na ação, o MP requereu que a agência suspendesse a prestação de serviços públicos a pecuaristas estabelecidos ilegalmente na Resex Jacy-Paraná. O MP afirma que a Idaron está ciente da situação ilegal desses pecuaristas e que a prestação de serviços, como a emissão de Guias de Trânsito Animal (GTAs) para a entrada de gado na Resex, fomenta a continuidade da pecuária em uma unidade de conservação onde a atividade é proibida.

GTAs são documentos sanitários obrigatórios emitidos pela Idaron para a movimentação de rebanhos. Eles contêm diversos dados sobre a movimentação do gado, como origem, destino, quantidade, idade, sexo e finalidade da movimentação.

Em sua defesa, a Idaron afirma que o objetivo de sua atuação é a defesa sanitária agropecuária e que a suspensão desse serviço colocaria em risco o controle sanitário do rebanho bovino e a saúde da população em Rondônia. 

No âmbito desse processo, o MPRO, a Idaron e a Sedam firmaram um acordo, homologado pelo Tribunal de Justiça de Rondônia em março de 2021. Pelos termos do acordo, a agência reconhece “que é seu dever colaborar com a Sedam na proteção das unidades de conservação estaduais, mediante o compartilhamento de informações relativas à ocupação indevida desses espaços territoriais especialmente protegidos”. Para tal, a Idaron se comprometeu a compartilhar com a secretaria “dados alusivos ao seu cadastro de produtores e propriedades rurais, bem como todas as informações disponíveis em relação ao transporte e localização de semoventes no interior de unidades de conservação estaduais”. 

Os dados compartilhados pela agência incluem, portanto, nomes dos produtores, endereço e localização das fazendas, bem como destino e origem do gado que entra e sai de fazendas localizadas na Resex. 

O acordo homologado não proíbe a Idaron de prestar serviços a pecuaristas estabelecidos ilegalmente na reserva, como o cadastro de novos estabelecimentos agropecuários. 

Pelos termos do acordo, cabe à Sedam a gestão e fiscalização da Resex Jacy-Paraná, “sendo responsável pela adoção das medidas administrativas cabíveis visando à preservação dos recursos naturais nela existentes”. 

Os dados obtidos pela reportagem relativos aos autos de infração foram fornecidos por duas coordenações da Sedam: a Coordenação de Proteção Ambiental (Copam) e a Coordenação de Unidades de Conservação (CUC). 

Os dois autos de infração lavrados na Resex Jacy-Paraná constam no banco de dados de autos de infração da Copam. Em sua resposta ao pedido de informação feito pela reportagem, a Copam explicou que apenas em 2022 o banco de dados passou a incluir informações sobre a unidade de conservação onde ocorreu a infração. Dessa forma, é possível que a Copam tenha lavrado outros autos de infração na Resex desde a homologação do acordo.

Por sua vez, a CUC, responsável pela gestão das unidades de conservação estaduais, informou que não foram realizados autos de infração na Resex entre 2020 e 2022. 

Paulo Bonavigo, presidente da Ecoporé, organização não governamental que há 34 anos trabalha com preservação ambiental em Rondônia, reconhece que retirar o gado da Resex não é uma tarefa fácil. Ele foi chefe da CUC entre 2011 e 2013 e esteve envolvido em várias tentativas nesse sentido.

“É uma tarefa complexa. Existem grandes pecuaristas dentro da Resex e há interesses políticos por trás. Órgãos dos três níveis de governo precisam estar envolvidos”, afirma. “O poder público tem que cumprir o seu papel: tirar o gado, punir os responsáveis e obrigá-los a recuperar as áreas degradadas.” 

Contatada pela reportagem, a Idaron informou que a Sedam possui acesso aos seus dados desde 11 de maio de 2020. A Idaron também afirmou que passou a emitir GTAs apenas para saída da Resex. 

A Sedam e o MPRO não responderam aos questionamentos da reportagem até o momento.

Imagem aérea da Resex Jacy-Paraná, cortada ao meio por um rio sinuoso
Legislação proíbe pecuária nesse tipo de unidade de conservação

A trajetória de destruição da Resex Jacy-Paraná

Pela lei, reservas extrativistas são definidas como unidades de conservação de uso sustentável com os objetivos de proteger os meios de vida e a cultura das populações extrativistas tradicionais que vivem na reserva e assegurar o uso sustentável dos seus recursos naturais. Os moradores de reservas extrativistas vivem do extrativismo e, complementarmente, da agricultura de subsistência e da criação de animais de pequeno porte.

No entanto, a realidade da Resex Jacy-Paraná é outra. Ela é a segunda unidade de conservação mais desmatada da Amazônia Legal nos últimos dez anos. De acordo com dados do Inpe, o desmatamento na Resex foi de 943 quilômetros quadrados entre 2013 e 2022, ficando atrás apenas da Área de Proteção Ambiental do Xingu, no Pará. Onde havia floresta hoje existe pasto para gado. Em 2021, segundo a plataforma MapBiomas, 68,9% do total da área da Resex estava coberto por pastagens. 

Imagem aérea de área queimada e desmatada na Resex Jacy-Paraná
Reserva Jacy-Paraná é a segunda UC mais desmatada da Amazônia

Em 2021, como mostrou a Pública, houve uma tentativa de legalizar a grilagem de terras na Resex e no Parque Estadual Guajará-Mirim através de uma lei estadual, estimulando novas invasões. Em abril daquele ano, a Assembleia Legislativa de Rondônia aprovou uma lei que reduzia a área da Resex para 22,4 mil hectares, o equivalente a 11,8% de sua área inicial. A mesma lei reduziu em 23,3% a área do Parque Estadual Guajará-Mirim, que, localizado ao sul da Resex, também sofre com invasões e aumento do desmatamento. Segundo dados do Inpe, entre agosto de 2021 e julho de 2022 o desmatamento do Parque Guajará-Mirim atingiu 84,8 quilômetros quadrados, quase o triplo do registrado no período anterior.

Apesar de o Tribunal de Justiça de Rondônia ter revogado a lei por a julgar inconstitucional em novembro de 2021, o futuro da Jacy-Paraná segue em risco. O destino da Resex interessa também a outras áreas protegidas da região, como a Terra Indígena (TI) Karipuna. Vizinha à Jacy-Paraná, a TI Karipuna registrou o maior desmatamento de sua história. De acordo com o Inpe, 17,4 quilômetros quadrados foram desmatados em 2022, um aumento de 147% em relação ao período anterior. Invasores utilizam a Resex para entrar na TI. Em maio e outubro deste ano, operações da Polícia Federal e do Ibama destruíram pontes que dão acesso ao território indígena a partir da reserva.

Paulo Bonavigo destaca que o futuro da Resex Jacy-Paraná também importa pela mensagem que passa para a sociedade: “Retomar e reflorestar a Resex passa a mensagem de que não se deve invadir área protegida. A Resex pode se tornar um exemplo de uma área protegida que foi invadida e depois reflorestada. Por outro lado, se as invasões forem regularizadas, a mensagem transmitida é de que o crime compensa”.

*Esta reportagem faz parte do especial Emergência Climática, que investiga as violações socioambientais decorrentes das atividades emissoras de carbono – da pecuária à geração de energia. A cobertura completa está no site do projeto.