Relação com Brasil demonstra pragmatismo da política externa da Rússia

O governo da Rússia possui um histórico de aproximação com líderes da extrema direita ao redor do mundo. As boas relações com o primeiro-ministro húngaro, Victor Orban, o Reagrupamento Nacional da França, o ex-presidente dos EUA, Donald Trump, são alguns dos exemplos mais notórios dessa movimentação.

O ex-presidente Jair Bolsonaro também cultivou uma aproximação e momentos de simpatia com o líder russo Vladimir Putin. No entanto, no caso brasileiro, a Rússia adota uma postura mais pragmática e menos ideológica. A posição favorável do Kremlin em relação ao governo Lula ficou explícita com a vitória do petista nas eleições, quando os russos emitiram uma nota parabenizando Lula pela eleição destacando sua “alta autoridade política”, e ficou mais nítida ainda com a veemente condenação dos atos golpistas promovidos por grupos bolsonaristas, em 8 de janeiro.

A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, destacou que Moscou considera inaceitáveis ​​as tentativas de violação da ordem constitucional no Brasil. Já o porta-voz presidencial russo, Dmitry Peskov, disse que o Kremlin “condena nos termos mais fortes possíveis os instigadores da agitação no Brasil”.

O professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, em entrevista ao Brasil de Fato, aponta que os atos golpistas foram prontamente condenados pela Rússia em uníssono com a posição de países como Estados Unidos, Reino Unido e Alemanha. No entanto, o pesquisador destaca que na Rússia os acontecimentos no Brasil não deixaram de gerar uma repercussão particular em relação aos países ocidentais.

De acordo com ele, diplomatas da missão da Rússia na ONU, além de uma série de repercussões em canais do Telegram (principal rede social russa), manifestaram críticas ao Ocidente por condenar ou apoiar manifestações golpistas pelo mundo de acordo com sua conveniência, acusando os EUA e países da União Europeia de “padrões duplos”.

“Se Biden não tivesse se manifestado de forma clara e óbvia em apoio a Lula, então o apoio da Rússia ao Lula seria muito mais claro. A Rússia tem uma boa relação com Lula, a Rússia considera Lula como um amigo, mas as elites russas querem muito não se manifestar da mesma maneira que o Biden, apesar de que nesta situação eles pensam de maneira igual. Simplesmente não se quer se associar”, analisa.

A condenação russa aos atos golpistas veio do porta-voz do Kremlin e de membros do Senado, mas não houve qualquer declaração aberta do presidente Vladimir Putin.

“No início, a Rússia se pronunciou em uníssono com Biden, [Emmanuel] Macron, mas aparentemente, justamente por isso, a missão da Rússia na ONU resolveu fazer alguns adendos. ‘Duplos padrões’ porque quando há manifestações contra o governo de Lula, se fala em um levante de fascistas, e isso é correto, mas houve um exemplo em Maidan, na Ucrânia, e ali também teve apoio [do Ocidente]. Há uma lógica nessas declarações. Não diria completamente, mas há uma lógica, porque em ambos os casos o presidente foi legalmente eleito”, acrescenta Jeifets.

A crítica russa à posição do Ocidente remete às manifestações ucranianas de 2013 e 2014 que resultaram em um golpe de Estado no país. Na ocasião, uma onda de manifestações tomou conta da capital ucraniana de Kiev, quando grande parte da população do país foi às ruas protestar contra o alinhamento do então presidente Victor Yanukovich à Rússia e pedir uma maior integração com a União Europeia.

Autoridades estadunidenses e europeias apoiaram abertamente os protestos contra Yanukovich. A Rússia considerou que a crise ucraniana foi causada pela interferência do Ocidente, usando a Ucrânia para prejudicar a Rússia. Foi o princípio da crise entre Moscou e o Ocidente, que atingiu o seu ápice com o início da guerra na Ucrânia.

“A política externa da Rússia é dualista. Por um lado, busca parceiros para estabelecer relações, e por outro lado, nas condições de um sério enfrentamento e concorrência com o Ocidente nos últimos tempos, há um entendimento da necessidade de buscar formas de provocar os concorrentes do bloco ocidental”, diz Jeifets.

Esse dualismo da política externa russa também pode ser ilustrado se considerarmos a associação entre os atos golpistas no Brasil com a invasão do Capitólio nos EUA por parte dos apoiadores de Donald Trump. Na ocasião, quando manifestantes de extrema direita interromperam a sessão do Congresso dos EUA que certificava a vitória do democrata Joe Biden nas eleições, a chancelaria russa aproveitou a oportunidade para criticar o sistema eleitoral dos EUA, classificando-o como “arcaico”. No caso brasileiro, Moscou reforçou a autoridade política de Lula.

O professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo observa que a liderança russa “em algum momento chegou à conclusão que a direita pode gerar alianças mais prósperas do que a esquerda”, mas, particularmente em relação à América Latina, “o Ministério das Relações Exteriores da Rússia assume uma posição legalista”.

“É uma antiga tradição da chancelaria russa, ao menos em relação à América Latina. A Rússia sempre buscou, acima de tudo, trabalhar com o governo em exercício. Muito raramente buscou trabalhar com oposições”, destaca Jeifets.

Papel de Lula em relação à guerra na Ucrânia

Durante a campanha eleitoral, ao comentar a guerra da Ucrânia, Lula fez duras críticas ao presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e ao Ocidente, afirmando que o líder ucraniano é “tão responsável” pela guerra quanto Vladimir Putin.


Soldados ucranianos disparam projétil em direção a posições russas nos arredores de Bakhmut, leste da Ucrânia, em 30 de dezembro de 2022. / Sameer Al-Doumy/AFP

“Ele [Zelensky] fica se achando o rei da cocada, quando na verdade deveriam ter tido conversa mais séria com ele: ‘Ô, cara, você é um bom artista, você é um bom comediante, mas não vamos fazer uma guerra para você aparecer’. E dizer para o Putin: ‘Ô, Putin, você tem muita arma, mas não precisa utilizar arma contra a Ucrânia. Vamos conversar!'”, afirmou Lula, em maio de 2022.

As declarações do petista ganharam grande repercussão internacional e geraram um estremecimento com Kiev, que chegou a incluir o nome de Lula em uma lista organizada pelo governo ucraniano de pessoas que apoiam a narrativa da Rússia sobre a guerra. Posteriormente, o nome do presidente brasileiro foi retirado da lista.

Do ponto de vista do Kremlin, a posição de Lula reforçou a perspectiva positiva para as relações entre Rússia e Brasil.

O diretor do Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia, Andrey Kortunov, lembra que nem Lula, nem Bolsonaro, apoiaram as sanções ocidentais contra Moscou, o que reforça o discurso pragmático da Rússia em relação ao Brasil.

“Ao mesmo tempo, [Lula] da Silva pode ser um pouco mais ativo. Por exemplo, no caso de tentar atuar como um dos mediadores na resolução da crise russo-ucraniana”, disse Kortunov ao porta Moskva 24.

No entanto, o analista aponta que a questão das relações com a Rússia em um futuro próximo não será o principal foco do governo brasileiro, pois “Lula da Silva provavelmente se concentrará em questões domésticas, e não na política internacional”.

Já o professor de Relações Internacionais da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, destaca que a posição mais neutra do presidente brasileiro em relação à guerra da Ucrânia não se traduz em um apoio à Rússia no contexto do conflito. 

Segundo ele, a expectativa de que Lula continuará sua linha, pronunciada em 2022, quando ele criticou firmemente o presidente da Ucrânia é “infundada”, porque “uma coisa é o Lula candidato, outra coisa é o Lula presidente”.

“Lula deixou muito claro que ele está pronto para ser mediador, pronto para ajudar em negociações de paz, mas a princípio o Brasil não pode apoiar alterações das fronteiras territoriais sem acordo entre ambas as partes, por isso aqui eu acho que não vale esperar que o Brasil seja um aliado nessa questão. Se parte das elites russas esperam isso, eles não estão entendendo plenamente a inclinação das elites brasileiras”, diz.

Edição: Thales Schmidt