Lucas Pedretti, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Para além de representar a esperança mais concreta da história de o Brasil finalmente trazer uma premiação importante da 97ª Cerimônia do Oscar, marcada para este domingo à noite em Los Angeles, o filme “Ainda Estou Aqui” tem gerado profundas expectativas ao país, por outros motivos muito mais relevantes.
Com a enorme repercussão do longa, familiares de mortos e desaparecidos políticos e movimentos sociais assistiram a alguns tímidos, mas importantes, avanços em suas demandas por memória, verdade, reparação e justiça pelos crimes da ditadura militar.
O Brasil lida muito mal com seu passado ditatorial. Não levamos os torturadores para o banco dos réus, não construímos museus sobre o período, não localizamos os corpos dos desaparecidos, não reformamos nossas Forças Armadas e nossas polícias. A ausência dessas e de outras medidas abre caminho para a repetição da violência do Estado, seja na forma do genocídio negro nas favelas, seja na forma do 8 de Janeiro.
Avanços tímidos e desmonte
É certo que houve avanços, e o filme aborda dois deles. O primeiro é o momento em que a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) entrega à Eunice Paiva (personagem de Fernanda Torres pelo qual ela concorre ao Oscar de melhor atriz) o atestado de óbito do seu marido Rubens Paiva, 25 anos paós seu sequestro, desaparecimento e morte. Na cena, que reproduz fielmente a vida real, a fala de Eunice sobre como “é estranho comemorar” o recebimento de um documento daquela natureza é emblemática da importância e dos limites da lei 9.140/1995, que criou a comissão.
Pois não se tratava de localizar os corpos dos desaparecidos, muito menos de responsabilizar os assassinos. Era singela e tão somente permitir que algumas das vítimas fossem finalmente reconhecidas oficialmente como pessoas mortas, para fins meramente civis.
O segundo momento é o da Comissão Nacional da Verdade (CNV). Atuando quase 20 anos após a CEMDP, a CNV logrou desmontar de vez a farsa que os militares haviam criado para justificar o assassinato de Rubens Paiva. A família teve, enfim, o direito à verdade. Mas, novamente, sem qualquer perspectiva de justiça.
O pouco que a CNV fez, no entanto, foi muito para os militares. Não à toa, a entrega do relatório da comissão coincide com a decisão das Forças Armadas de retornarem para o primeiro plano da vida política nacional.
Daí em diante conhecemos o roteiro, com o projeto político-militar em torno de Jair Bolsonaro e todas as mazelas que ele trouxe ao Brasil. Inclusive, é bastante simbólico que um dos últimos atos de seu governo, promovido ao mesmo tempo em que militares tramavam um novo golpe de Estado, foi a extinção ilegítima e ilegal da CEMDP.
Filme traz nova esperança de justiça
O completo desmonte das políticas de memória e reparação operado por Bolsonaro foi sendo paulatinamente (e, mais uma vez, de forma bastante tímida) desfeito por Lula. A recriação da Comissão de Anistia no primeiro ano de governo e da CEMDP em 2024 foram importantes sinalizações, mas ainda havia, entre os movimentos sociais que atuam nessa pauta, enorme insatisfação com a limitação das medidas adotadas. Com o sucesso do filme, há uma nova esperança.
A maior expectativa veio com uma decisão do Ministro do Supremo Tribunal Federal Flávio Dino, em que ele determina que a Lei de Anistia de 1979 não é válida para o crime de desaparecimento forçado. Na decisão (citada no filme), o Ministro acata o argumento de que a ocultação de cadáver é um crime continuado, cujos efeitos não cessam até que o corpo apareça.
Como a lei de 1979 anistiou os crimes que haviam sido cometidos até aquela data, então ela não pode abarcar os desaparecimentos. A decisão, caso seja acompanhada pelo restante do STF, pode fazer com que finalmente os que torturaram e assassinaram em nome do Estado tenham de responder à justiça.
Outro avanço ocorrido na esteira do filme tem a ver exatamente com os atestados de óbito. Finalmente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) acatou uma das recomendações da Comissão Nacional da Verdade de retificar esses documentos. Até então, a causa da morte aparecia como “Lei 9.140/1995” (trata-se da lei que criou a CEMDP). Agora, deverá constar: “morte não natural, violenta, causada pelo Estado a desaparecido no contexto da perseguição sistemática à população identificada como dissidente política no regime ditatorial instaurado em 1964”.
Nas primeiras semanas de 2025, a imprensa brasileira noticiou que, no contexto dessas mudanças, o governo estaria preparando um ato oficial de pedido de desculpas às famílias das vítimas da ditadura. Caso se concretize, o evento será exemplar de como a maré mudou para essa pauta.
O filme também tem potencializado ações não oficiais sobre a temática. Um exemplo é a exposição “Rua da Relação, 40 – Testemunho material da violência de Estado”, que ficou em exibição no Museu da República, no Rio de Janeiro, entre janeiro e fevereiro de 2025. A mostra trata do prédio onde funcionou o Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Rio de Janeiro, e, embora já estivesse planejada desde antes do filme, tem recebido grande atenção, dada a centralidade que o tema está tendo no debate público. O objetivo da exposição é chamar a atenção para a ausência de um museu sobre o período no Rio de Janeiro e demandar que o referido prédio seja transformado num espaço de memória dos direitos humanos.
Críticas geram debates valiosos
Até mesmo quando criticado, o filme tem sido capaz de levantar importantes debates. Os apontamentos feitos pelo professor e sociólogo da USP Thiago Torres – conhecido pelo seu canal no YouTube “Chavoso da USP” – sobre a prevalência de uma narrativa branca e de classe média sobre a ditadura geraram enorme discussão.
A despeito de eventuais exageros típicos dos discursos de redes sociais, essas críticas têm fundamento. De fato, prevalece até hoje uma imagem limitada de quem foram as vítimas da ditadura no Brasil, que subdimensiona a violência que se voltou contra os povos indígenas e as populações negras e periféricas, por exemplo.
Este está longe de ser um problema específico de “Ainda Estou Aqui”, mas é uma marca mais geral da produção artística e mesmo acadêmica sobre o período. Nesse sentido, se essas críticas se desdobrarem numa potencialização de outras narrativas sobre o período (como por exemplo o podcast Chumbo & Soul, produzido pela Rádio Novelo, que traz a história da ditadura a partir de uma visão afrocentrada), aí estará mais um mérito do filme.
Há, ainda, outra questão que se tornou incontornável devido a uma coincidência temporal. A onda de sucesso do filme coincidiu com as revelações da PF sobre os intentos golpistas de 2022. Assim, o filme ajudou a chamar a atenção para qual é o tipo de regime que Bolsonaro e seus militares gostariam de ter implantado à força no país. Nesse sentido, uma discussão mais ampla sobre as próprias Forças Armadas e a necessidade de reformas institucionais em seu interior também ganha força.
Por tudo isso, para além de seus méritos propriamente artísticos e cinematográficos, “Ainda Estou Aqui” já adquiriu uma enorme importância política. Que venha o Oscar, pelo cinema brasileiro, por Fernanda Torres (e por sua mãe!), mas também para potencializar ainda mais todas essas lutas pelas quais, há tantas décadas, mobilizam Marias, Clarices e Eunices.
Lucas Pedretti, Doutor em sociologia e historiador, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
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