Artigo | Concessão descarrilhada: os trens estão sem rumo no Rio de Janeiro

A Região Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), a mais complexa do Brasil, onde vivem mais de 70% da população fluminense, é marcada por profundas desigualdades e desafios intransponíveis, como é o caso da mobilidade urbana, que castiga cotidianamente a vida da população trabalhadora: tarifas caras, interrupção constante de serviços, atrasos, desconforto, insegurança, falta de acessibilidade. Tais características, que se aplicam integralmente ao transporte ferroviário de passageiros, também estão presentes nos outros modais de transporte.

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A situação é ainda mais grave porque o transporte ferroviário é o pivô da mobilidade regional. São quatro ramais que compreendem 270 km de malha ferroviária e 104 estações. O trem é o elemento articulador do direito de ir e vir para quem circula entre Baixada Fluminense e bairros das zonas oeste e norte do Rio e o eixo centro-sul da capital do Rio.

Como outros modais, o transporte ferroviário no estado, com base em agenda de matriz neoliberal, foi concedido ao setor privado no ano de 1998. Estava em voga a panaceia pela qual o estado era tido como inevitavelmente perdulário e ineficiente, enquanto o setor privado era alçado ao sacrossanto lugar de gestor competente e exemplar. Nesse diapasão, os trens foram privatizados, passando o serviço a ser prestado por concessionária privada, mas com sucessivos investimentos públicos na operação, como na aquisição internacional de novas composições.

É o modelo clássico da privatização de serviços públicos no Brasil: investimentos e prejuízos públicos e lucros privados.

Vinte e cinco anos depois, o evidente colapso do modelo de privatização dos trens colocou o estado do Rio – e os usuários – nas cordas. A situação hoje, inegavelmente crítica, foi desnudada em minúcias pela CPI instalada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio (Alerj), em fevereiro do ano passado: estações controladas pelo crime; ausência de estrutura de fiscalização por parte da agência reguladora estadual (em 2022, havia apenas nove fiscais para toda a malha ferroviária!); prorrogação antecipada da concessão até 2048, decisão temerária tomada pelo poder concedente na metade da vigência do atual contrato; escolha do IGPM (atrelado ao dólar) como indexador das revisões tarifárias em detrimento do IPCA, comumente adotado como referência nas contas públicas estaduais, quando, a rigor, o correto seria adequar as tarifas ao percentual de revisão do salário mínimo regional – congelado por Claudio Castro desde que virou governador, em 2020. 

Além disso, a CPI evidenciou o abandono das vias permanentes (trilhos e dormentes), vazadouros de lixo ao longo da via férrea, inexistência de capina em várias estações onde o mato chega a atrapalhar a visão de maquinistas, falta de acessibilidade e banheiro em 2/3 das estações, perigosos vãos entre o trem e a plataforma, além do gravíssimo problema de roubo e furto de cabos, mais uma faceta da violência e insegurança que a autoridade estadual não consegue resolver.

Agora, depois de ter recebido repasse de R$ 400 milhões do governo estadual no ano passado, como compensação pelo desequilíbrio econômico-financeiro acarretado ao contrato pela pandemia do novo coronavírus, a concessionária Supervia, em recuperação judicial desde 2021, anunciou recentemente, através da empresa japonesa Mitsui, sua controladora, que não quer mais manter o contrato de concessão, originalmente vigente até este ano mas surpreendentemente prorrogado, com incrível antecedência, até 2048, pelo 8º Termo Aditivo, assinado em 2010. 

O governador falou grosso: lembrou do polpudo aporte emergencial feito em 2022, que ainda não produziu efeitos positivos sobre a qualidade do serviço, e disse que, se a atual concessionária saísse, colocaria outra em seu lugar para prestar um serviço melhor.

Apenas não explicou por que razão quedou inerte até o início do ano passado, quando inclusive chegou a autorizar aumento de 40% nas tarifas (barrado pela CPI da ALERJ), mesmo diante da precariedade dos serviços e do quadro de desemprego e de extrema pobreza e miséria no Rio. Não explicou tampouco por que só começou a sair da inércia, após a instalação da CPI da Alerj, em fevereiro de 2022. Não detalhou, muito menos, qual é a proposta do governo para modificar o atual modelo de concessão de trens, comprovadamente fracassado. 

Assim, com base no relatório final da CPI, presidida pela Deputada Lucinha (PSD), da qual fui relator, vale a pena indagar: em face da malograda experiência de privatização, não seria o caso de examinar criteriosamente a ideia da reestatização do transporte ferroviário de passageiros no estado?

Essa é, a propósito, a primeira recomendação do relatório final da CPI, integralmente aprovado no plenário da Alerj, ao governo do estado: “Diante da fracassada experiência de privatização, efetuar, em caráter de urgência, estudo de viabilidade sobre a reestatização do serviço de transporte ferroviário de passageiros”. Por que não? Afinal, a cidadania fluminense merece respeito.  

*Waldeck Carneiro é professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e foi deputado estadual do Rio de Janeiro (2015-2022).

Edição: Mariana Pitasse