Rio de Janeiro – O tráfico de drogas no Rio de Janeiro passa por uma transformação simbólica. A facção Terceiro Comando Puro (TCP), uma das mais poderosas da cidade, está estampando a Estrela de Davi em tijolos de cocaína e pacotes de maconha. O símbolo, no entanto, não faz referência à religião judaica, mas sim a uma crença evangélica ligada à volta dos judeus a Israel, um evento que, segundo seus membros, precede a segunda vinda de Jesus Cristo.
Essa mudança ocorre dentro de uma organização criminosa conhecida por sua forte identidade religiosa. O Complexo de Israel, formado pelas comunidades de Parada de Lucas, Cidade Alta, Pica-pau, Cinco Bocas e Vigário Geral, é a área de domínio do TCP, onde a facção se vê como “soldados de Jesus”. Vivian Costa, teóloga e autora de “Traficantes Evangélicos”, explica que a presença da fé evangélica no tráfico começou a se expandir com o crescimento da população evangélica no Brasil.
A Religião e o Tráfico
O movimento religioso dentro do tráfico está sendo identificado em várias regiões do Brasil, não apenas no Rio. De acordo com Ana Paula Miranda, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), o fenômeno não é restrito à cidade carioca, mas tem sido replicado em outras favelas de grandes cidades como Fortaleza e Salvador, onde grupos como o Comando Vermelho também adotaram práticas de intolerância religiosa. Em Fortaleza, por exemplo, traficantes picharam paredes e destruíram terreiros de umbanda e candomblé com a assinatura “CV abençoado”.
Intensificação da Intolerância Religiosa
No Complexo de Israel, a intolerância religiosa se intensifica. As manifestações de fé que não sejam evangélicas são proibidas, e a facção impõe sua própria visão de mundo. A teóloga Vivian Costa observa que terreiros de religiões afro-brasileiras foram destruídos ou queimados, com a facção declarando: “Jesus é dono do lugar”. Esse comportamento é um reflexo do aumento da presença evangélica no país, o que também impacta o controle territorial em áreas dominadas pelo tráfico.
Christina Vital, professora de sociologia da UFF, alerta para o cerco religioso imposto à população dessas comunidades, onde é permitido professar a fé evangélica, mas sem visibilidade pública de outras crenças. Rita Salim, delegada da Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), destaca que os ataques a templos religiosos têm um caráter mais grave quando partem de grupos criminosos, pois eles conseguem impor suas normas sem resistência.
A Religião Como Forma de Legitimação
A vinculação entre religião e crime não é novidade no Brasil. Vivian Costa lembra que, no passado, os traficantes buscavam proteção em figuras de santos católicos e de entidades afro-brasileiras, como São Jorge e Ogum. No entanto, a expressão religiosa no tráfico se reconfigura hoje com a popularidade do evangelismo, especialmente entre as facções criminosas.
“Neocruzada” no Brasil
O conceito de “neocruzada” é utilizado por Márcio de Jagun, babalorixá e líder da Coordenadoria de Diversidade Religiosa da Prefeitura do Rio, para descrever esses ataques a religiões de matriz africana. Segundo ele, os traficantes utilizam a fé evangélica como uma forma de justificação para ações violentas, promovendo um discurso que se opõe às religiões consideradas “demoníacas”.
A Experiência do Pastor Diego Nascimento
Por outro lado, o pastor Diego Nascimento é um exemplo de alguém que deixou o tráfico para seguir a fé cristã. Antes de se converter, Nascimento era chefe do tráfico no Complexo da Vila Kennedy, onde liderava o Comando Vermelho. Depois de passar por um período de vício e exclusão social, ele foi convencido por um traficante convertido a Cristo a procurar uma igreja e mudar sua vida.
Hoje, Nascimento utiliza seu testemunho para ajudar outros que estão em situações semelhantes, pregando em presídios e oferecendo apoio a pessoas dispostas a mudar de vida. Ele acredita que a ideia de um “traficante evangélico” é uma contradição, pois, segundo ele, um verdadeiro seguidor de Jesus não pode continuar praticando crimes.
Entenda o Caso: O Tráfico Evangélico e a Intolerância Religiosa
- TCE-RJ: O Complexo de Israel no Rio de Janeiro é dominado pelo Terceiro Comando Puro (TCP), que adota o cristianismo evangélico como base para sua atuação.
- Símbolo da Estrela de Davi: A Estrela de Davi aparece nos produtos do tráfico, sem relação com o judaísmo, mas com a crença de que a volta dos judeus a Israel precede a segunda vinda de Jesus Cristo.
- Crescimento Evangélico: A presença da fé evangélica nas comunidades, especialmente nas favelas, tem se expandido, influenciando práticas criminosas.
- Intolerância Religiosa: A facção impede manifestações religiosas de outras crenças, especialmente as de matriz africana, e promove ataques a templos de umbanda e candomblé.
- Religião e Crime: A ligação entre religião e tráfico sempre existiu no Brasil, mas a relação agora se reflete na crescente presença do evangelismo nas facções criminosas.
Com informações da BBC