Trabalhadores rurais cobram com urgência a criação de assentamento nas terras da Cambahyba (RJ)

É com orgulho que os camponeses lembram, a cada conversa, que já faz 25 anos que o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) luta pelo direito de plantar e produzir nos latifúndios improdutivos da região de Campos dos Goytacazes, no Norte Fluminense, quase na divisa com o Espírito Santo.

Há 21 anos, um dos maiores e mais tensos focos desta luta está nas extensas terras das fazendas da antiga Usina de Cambahyba, que tem no histórico a exploração de trabalhadores nos canaviais para a produção de açúcar e álcool. 

São muitos os fatores que tornam o acampamento Cícero Guedes – que está de pé há três meses ao lado dos escombros do parque industrial da usina – histórico e simbólico. Foi nessa terra que o militante Cícero foi assassinado em 2013. Liderança carismática, o alagoano de voz forte e coração generoso fez história em Campos. Já assentado em outra área do município, mantinha viva a luta por reforma agrária na Cambahyba.

Cícero esteve na primeira ocupação das terras da região nos anos 2000, no acampamento Oziel Alves. O grupo, que já colhia na terra, foi despejado em 2006, mas, ainda assim, conseguiu que uma pequena fatia fosse destinada à construção de um assentamento – hoje em regime de posse de 35 famílias.

Em novembro de 2012, Cícero foi um dos responsáveis por organizar centenas de famílias para voltarem à área e construírem o acampamento Luiz Maranhão. Três meses depois, em janeiro de 2013, Cícero foi assassinado a tiros em uma das estradas que dão acesso à propriedade – um crime pelo qual ninguém foi responsabilizado. Em 2018, seus companheiros, outra vez já instalados e produzindo na terra, sofreram com um novo despejo. 

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O crime que tirou a vida do militante não foi o único sem condenação na Cambahyba. Em 2014, Cláudio Guerra, ex-delegado do DOPS, admitiu à Comissão Nacional da Verdade (CNV) que os fornos da usina serviram para incinerar ao menos 12 corpos de opositores da ditadura militar – entre eles Fernando Santa Cruz, David Capistrano e Luiz Maranhão.

O então dono da propriedade, Heli Ribeiro Gomes, foi vice-governador biônico do Rio de Janeiro entre os anos 1968 e 1970, indicado pelo regime militar. Sua família segue com poder político em Campos.

Das platações de cana

Não foi, porém, apenas de sangue e cinzas que se colocou de pé o acampamento Cícero Guedes no último 24 de junho. Nos barracos e na horta, na cozinha coletiva e no barracão recém cimentado está a memória das lutas por reforma agrária na região. A grande maioria dos que formam o acampamento carregam como história a exploração ilegal do trabalho no campo.

É o caso de seu Antônio Bigode, de 59 anos. Amigo próximo de Cícero, seu Bigode, como é conhecido, é ex-cortador de cana. “Quando recebia o salário do mês, já tava devendo no barracão da fazenda”, relembra.

Bigode fez questão de puxar as palmas quando, na última semana, no meio da reunião da coordenação do acampamento, um companheiro informou que sua mãe recém havia colhido uma batata doce de pouco mais de 1 quilo em outro assentamento também localizado em Campos. 

Pai de sete e avô de 19, ele aprendeu com o ex-companheiro assassinado o significado da bandeira do MST. “O branco é da paz. O vermelho do sangue. O verde é da terra. Os camponeses representam a família. Aqui nós plantamos o alimento sem agrotóxicos. Não há adubo melhor para a terra do que o suor do trabalhador”, acrescenta.




Pai de sete e avô de 19, ele aprendeu com o ex-companheiro Cícero Guedes o significado da bandeira do MST / Brasil de Fato RJ

Notícias da Justiça

Nos últimos 21 anos de luta do MST na Cambahyba, nunca as notícias vindas da Justiça foram tão positivas para os trabalhadores. Ainda antes da nova ocupação, em 5 de maio de 2021, a juíza substituta da 1ª Vara Federal de Campos, Katherine Ramos Cordeiro, desapropriou 1,3 mil hectares de terras de três fazendas da antiga usina – entre elas, a Cambahyba.

No despacho, histórico para o movimento, ela obrigou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) a tomar posse da área para dar seguimento à reforma. No entanto, o Incra se omitiu da obrigação por mais de um mês. Foi quando o MST decidiu reocupar a área. Em 5 de julho, finalmente, as terras improdutivas da fazenda Cambahyba foram concedidas ao Incra.

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Uma das empresas que detinha parte da propriedade da antiga usina, a AVM (que constrói condomínios de luxo em Campos) ainda tentou a reintegração da posse, mas a juíza voltou a dar decisão favorável aos trabalhadores. No despacho, há ainda a autorização para o acampamento permanecer na terra.

Uma das que comemorou muito a decisão foi Nádia Silva, responsável pelo único mercadinho do acampamento, chamado de “birosca”. Nascida em Campos há 56 anos, passou a juventude “na roça”, até a sua avó morrer atingida por um raio. Foi obrigada, então, a evadir do campo e agora, mais de 30 anos vivendo nas cidades, diz que não se acostumou à vida urbana.




Nádia Silva é responsável pelo único mercadinho do acampamento, conhecido como a “birosca” / Brasil de Fato RJ

“Eu amo a terra. Amo. Ela é viva, ela é vida. Olha as minhas mãos, tudo calejada. Eu fiz meu barraco ali e já plantei na roça atrás: banana, tomate, milho, abacaxi, mandioca, goiaba, côco, pitanga, couve, cebolinha, pimentão, guando, salsinha. E tem mais. Quando sair nossa terra, eu vou feliz da vida mas vou chorar um pouquinho de saudade daqui também. Mas vai ser melhor, se Deus quiser”, afirma.

Pressão e apoio

O maior adversário na luta pelas terras da Cambahyba é aquele que deveria ser o maior parceiro: o superintendente estadual do Incra no Rio Cassius Rodrigo. Apoiador declarado de Jair Bolsonaro (sem partido) e contrário ao MST, Cassius visitou o acampamento de surpresa há algumas semanas, mesmo sem marcar reunião com as lideranças do acampamento. 

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Na visita, segundo os acampados, disse que o Incra não transformaria as terras em assentamento se as famílias permanecessem no local. Autoridades do Estado se apressaram para desmentir o superintendente. O defensor público federal Thales Arcoverde foi um deles. “Não existe nenhum impeditivo legal pra que se faça reforma agrária com vocês na terra”, disse em vídeo gravado para os acampados.

Em audiência virtual realizada na última segunda-feira (13), os próprios procuradores do Incra reforçaram a mensagem. O procurador David Lucas garantiu que “havendo possibilidade dos servidores do Incra trabalharem na área, não há razão pra condicionar uma coisa à outra. Na lei, não diz que é preciso desocupação para a reforma agrária”.




Dezenas de autoridades e organizações engrossam o coro e pressionam para que o Incra assente rapidamente as famílias / Brasil de Fato RJ

Dezenas de autoridades e organizações engrossam o coro e pressionam para que o Incra assente rapidamente as famílias. Representantes da diocese de Campos já se colocaram em defesa do acampamento. O bispo dom Roberto Paz e o diácono Kauê Martins gravaram mensagens aos acampados lembrando que o próprio Papa Francisco defende que nenhum camponês viva sem terra.

No último 7 deste mês, representantes de movimentos sociais, partidos políticos e de universidades localizadas em Campos estiveram na ocupação para dar apoio ao movimento.

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O cubano Raúl Palácio, reitor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), disse que a universidade dá total apoio aos trabalhadores do acampamento. 

“É importante que a nossa universidade se mantenha junto a esse movimento. Primeiro é preciso apoio político para a entrega já da terra. No segundo momento, vamos ter uma série de projetos para poder desenvolver aquele assentamento. E, terceiro, a UENF também quer ser consumidora dos produtos produzidos por lá”, explicou.

Já Ana Costa, diretora da Universidade Federal Fluminense (UFF) de Campos, que também era amiga de Cícero e estuda a questão agrária na região há mais de duas décadas, ratificou o histórico da luta do MST na região.

“A luta pela terra em Cambahyba é pela justiça social, igualdade, condições de trabalho. As famílias precisam se alimentar e sobreviver dignamente. Assentar Cambahyba é fazer justiça por tanta gente que lutou e morreu ali”, afirmou. 

Edição: Mariana Pitasse