Adiada, votação que pode proibir casamentos homoafetivos é puxada por 'intolerância' e 'desumanidade'

As atenções da militância pela causa LGBTQIA+ estavam todas voltadas para uma comissão da Câmara dos Deputados nesta quarta-feira (27). Em um dos plenários da Casa seria votado um projeto de lei pautado por representantes da extrema direita para vetar o casamento civil homoafetivo, direito já consagrado por decisão unânime do Supremo Tribunal Federal em 2011. Porém, após pressão dos presentes e mais de sete horas de debates, o relator do projeto, o deputado federal Pastor Eurico (PL-PE) decidiu adiar o pleito. Agora, um grupo de trabalho vai discutir possíveis alterações no texto pedidas por parlamentares de esquerda. O PL pode ser votado no dia 10 de outubro. O alívio com o adiamento de uma iminente derrota, visto o quórum favorável aos conservadores, não foi suficiente para estancar a preocupação do campo progressista. Sucessivos pedidos de anulação ou arquivamento do projeto foram feitos ao presidente da Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Casa, o também pernambucano Fernando Rodolfo (PL). Um aspecto bastante atacado no relatório, que é uma modificação de um projeto em viés oposto apresentado pelo então deputado Clodovil Hernandes em 2007, é uma possível ‘desumanização’ a partir da negação da diversidade.  “Isso está bastante claro no voto do pastor [Eurico], onde ele fala que deriva do Direito Natural. Se deriva do Direito Natural apenas as pessoas heterossexuais, ele está desumanizando homens que amam homens, mulheres que amam mulheres, e que têm o direito de amar e viver como qualquer pessoa deste planeta”, afirmou durante o debate a deputada Erika Kokay (PT-DF).  Outros argumentos apresentados pelo político do PL, mesmo partido do ex-presidente Jair Bolsonaro, também foram repetidos por deputados de extrema-direita que pediram a palavra. De acordo com eles, um pretenso viés biológico no reconhecimento do casamento e da família, que incluiria apenas a união entre o homem e a mulher, estaria presente no artigo 266 da Constituição.  Nikolas Ferreira (PL-MG) chegou a dizer que a união homoafetiva teria “consequências culturais”, enquanto Marco Feliciano (PL-SP) relacionou a reprodutividade com a proteção da previdência social. “Por conta disso, o constituinte de 1988 explicou que só pode ser convertido em casamento a união estável entre um homem e uma mulher para a proteção do Estado. ‘Pastor, isso aqui é atrasado’. Tudo bem, eu acredito que sim, então o que deve ser feito: alterar a Constituição Federal”, disse o pastor. Os argumentos são amplamente rechaçados pelos deputados progressistas, que mencionam outros trechos da própria Carta que determinam a igualdade universal de direito e a proteção das minorias do país. “Não se pode citar apenas um texto da Constituição, mas ela como um todo. A emenda constitucional é ampla. E essa emenda, meu querido pastor Eurico, diz que todos somos iguais”, rebateu a deputada Laura Carneiro (PSD-RJ). Ofensiva contra o STF e contra direitos humanos Assim como outras pautas em discussão no campo dos costumes, que inclui aborto e uso de drogas, a união entre pessoas do mesmo sexo também se apresenta no Congresso Nacional carregada de preconceitos e de deturpações de viés religioso. Nas últimas semanas, em diversas comissões e plenários, a oposição ao governo Lula (PT) formou um verdadeiro coro contra as decisões do STF, sob a alegação de que se estaria “legislando” no lugar do parlamento. Mesmo assim, o próprio Marco Feliciano admite que os ministros do Supremo apenas reagem às provocações que chegam a eles quando há vazio legal, o que contradiz a própria tese. “É inconstitucional e também completamente ilegal que esse projeto tramite como lei ordinária, porque há uma decisão constitucional do STF. Então, é um gasto de dinheiro público para uma coisa que não tem viabilidade, um absurdo completo”, contra-argumenta o deputado distrital Fábio Félix (PSOL-DF). Durante uma audiência pública realizada na véspera, dia 26, foram mencionadas também outras teses relacionadas à luta LGBTQIA+, mas sem qualquer relação com o casamento civil, como a reivindicação por banheiros unissex e o ensino de educação sexual nas escolas. A corda do radicalismo religioso também é tensionada com uma suposta obrigatoriedade das igrejas em realizar casamentos religiosos de pessoas do mesmo sexo, o que não está em debate. “Nós não queremos casar na igreja, queremos um casamento civil igualitário, que dê o direito do meu esposo, se eu morrer, conseguir a partilha de bens. Muitas vezes as famílias dos nossos parceiros são preconceituosas e na hora da morte querem pegar todo o bem que a gente construiu juntos. Precisamos do casamento igualitário, com relação à convênio de saúde e outras questões relacionadas diariamente com o cotidiano de qualquer casa heterossexual”, protesta Fábio de Jesus, presidente da Rede Gay Brasil. De acordo com a Arpen-Brasil (Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais), os cartórios contabilizaram 76.430 casamentos homoafetivos até abril de 2023. Esse cenário só foi possível após a decisão do STF em 2011 e após a regulamentação aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2013, o que motivou um questionamento de Sâmia Bomfim (PSOL-SP) durante a audiência. “O que vai acontecer com todas essas pessoas que já se casaram legalmente até hoje e com as que ainda pretendem se casar?”. “No começo, tivemos resistência de muitos cartórios que não queriam fazer casamento. No meu município, muitas vezes tive que entrar no Ministério Público para as pessoas terem esse direito assegurado. Depois que o CNJ fez um decreto que todos os cartórios eram obrigados a fazer o casamento civil e igualitário ficou mais fácil. Hoje, todos os cartórios fazem, o que é um grande avanço, especialmente para nós LGBTs negros e periféricos que queremos constituir nossas famílias”, complementa Fábio de Jesus. Interesses paralelos turvam debate Em outra frente de batalha, no dia 22, o Ministério Público Federal já havia pedido a rejeição e o arquivamento do projeto em questão. No documento, alega-se inconstitucionalidade e uma afronta a princípios internacionais reconhecidos, como um parecer de 2017 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. “Nesse sentido, pouco importa a orientação sexual de quem está se unindo, e isso não diz respeito a toda coletividade, em um Estado democrático que garanta as liberdades fundamentais, em especial as dos indivíduos”, continua a nota, que vê uma tentativa dos propositores em dizer que os homossexuais têm menos direitos que os heterossexuais, “criando uma hierarquia de seres humanos com base na orientação sexual”. Há quem aponte também um aspecto eleitoreiro na pauta conservadora, visando a disputa por cargos municipais no ano que vem. “Estamos às vésperas de eleições municipais e muitas pessoas querem usar o nosso movimento, a nossa luta como palanque político para seu curral eleitoral. E a gente sempre viu isso bem às véspera de eleições, então precisamos mostrar que vamos continuar avançando e que não vamos retroceder”, diz Jesus. Apesar da fumaça criada, parlamentares progressistas e boa parte da militância organizada enxergam um amadurecimento do tema, com um caminho de progressivo acolhimento nas famílias e pacificação na sociedade. Também sabem tratar-se de uma reação conservadora aos direitos conquistados nos últimos 50 anos, pintados como privilégios de uma minoria ainda marginalizada.    O pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) relembra que, mesmo com os avanços, o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo. “Eles tentam colocar dessa forma muito perversa como se (o casamento) fosse um privilégio. Não tem a ver com privilégio, tem a ver com existir, ter os seus direitos reconhecidos e não ser alvo de preconceito, intolerância e violência”, afirma.  “Daí um projeto como esse, que não reconhece o casamento civil, portanto diante do Estado, ele é uma reação a essas conquistas e ao mesmo tempo tem um tom de escárnio, de insensibilidade, de antipatia. Eu chamo de petrificação do coração. O coração é de pedra que não consegue respeitar o próximo”, protesta Vieira, que destaca a adesão à causa LGBTQIA+ de deputados da direita, como Silas Câmara (Republicanos-AM) e Pastor Sargento Isidorio (Avante-BA). Já Erika Hilton (Psol-SP) confronta o conservadorismo com a óbvia evidência de que nem a insegurança jurídica será capaz de frear as liberdades individuais e íntimas das pessoas. “Independentemente dos debates que vossas excelências façam nessa Casa, nossos amores seguirão firmes e fortes, nós seguiremos de pé, amando, beijando, sentindo os nossos desejos, que não se tratam de escolhas, que não se trata de opção. Assim como vossas excelências não optaram escolheram ser cis gêneros ou heterossexuais, nós também não escolhemos ser transexuais, travestis ou homossexuais”, conclui. Edição: Thalita Pires