Funai nega, mas permitiu que empresa de NFTs violasse isolamento de indígenas na pandemia

A Fundação Nacional do Índio (Funai) negou em nota ter autorizado o ingresso durante a pandemia de uma empresa que produz NFTs (sigla em inglês para Tokens Não Fungíveis) na Terra Indígena (TI) Baixo Seruiní/Baixo Tumiã, no sul do Amazonas. 

A declaração foi uma resposta à reportagem do Brasil de Fato que mostra como a empresa, chamada Nemus, tem violado o direito à consulta livre, prévia e informada do povo Apurinã do baixo rio Seruiní, no município de Pauiní (AM), com o aval do órgão indigenista. 

Entenda: Empresa que faz NFTs para “preservar a Amazônia” viola direitos indígenas com aval da Funai

O ingresso em terras indígenas durante a pandemia estava vedado pela portaria 419/2020 assinada pelo presidente da Funai, Marcelo Xavier. A norma impedia a entrada de não indígenas nas comunidades e previa que as exceções à regra deveriam ser concedidas apenas pelas Coordenações Regionais (CRs) da Funai. 

A versão da Funai contraria depoimentos de indígenas, servidores da própria Fundação e documentos internos do órgão indigenista obtidos pela reportagem, que atestam que a Funai sabia que a empresa pretendia entrar na TI Baixo Seruiní/Baixo Tumiã, mas não fez nada para impedi-la, violando a portaria 419/2020.

Ofício da Funai ignorou que propriedade da Nemus é terra indígena

No comunicado enviado ao Brasil de Fato, a Funai afirmou que “a empresa Nemus não obteve autorização do órgão para entrar na Terra Indígena do Baixo Seruini – Baixo Tumiã durante a pandemia de covid-19”. Citou ainda que “informou à empresa que a concessão de autorização para entrada em terra indígena encontrava-se vedada, devendo ser respeitado o distanciamento da área indígena”.

A suposta negativa alegada pela Funai está no ofício 32/2022, de 17 de março de 2022, da Assessoria de Acompanhamento aos Estudos e Pesquisas (AAEP), ligada à presidência da Funai e então chefiada pelo delegado da Polícia Federal Alexandre Rocha dos Santos. Embora não autorize textualmente o ingresso, o documento não o proíbe, liberando na prática a entrada na TI Baixo Tumiã/Baixo Seruiní.

O caso começa com a Nemus solicitando à Funai permissão para navegar no rio Seruiní, que corta a TI habitada pelos Apurinã. A solicitação é assinada pelo engenheiro Horácio Luz, integrante da diretoria técnica da Nemus. No pedido, Luz afirma: “nosso interesse [em navegar pelo rio Seruiní] está baseado em sermos PROPRIETÁRIOS de uma Fazenda limítrofe às atuais T.I. Guajaharrã [sic] e também T.I. Peneri/Tacaquiri”. 

A solicitação é respondida pelo delegado da PF Alexandre Rocha dos Santos, que na época dirigia a AAEP. Ele diz que “não se verifica ser possível” a “autorização para entrada em terra indígena”. “Contudo”, prossegue Rocha, “a passagem pelo rio Seruiní está liberada, desde que seja respeitado o distanciamento da terra indígena”.

A resposta do assessor da AAEP omite que a fazenda onde o engenheiro quer ingressar é, na verdade, a TI Baixo Suruiní/Baixo Tumiã, que está com o processo de demarcação incompleto e, por isso, registrada em cartório como um imóvel particular. Por isso, é impossível que a Nemus tenha respeitado “o distanciamento da terra indígena”, já que a propriedade da Nemus e a TI Baixo Tumiã/Baixo Seuiní são o mesmo território. 


Acima, contorno da Terra Indígena Baixo Seruiní/Baixo Tumiã; Abaixo, propriedade da Nemus acessada com aval da Funai/ Reprodução

Embora o ofício 32/2022 da AAEP afirme – genericamente – que o ingresso nas TIs está vedado durante a pandemia, não há no documento qualquer proibição de que a Nemus entre na TI Baixo Seruiní/Baixo Tumiã, como de fato fez a empresa, segundo apurou a reportagem junto aos indígenas. 

Melquisedeque Lopes Soares Apurinã, morador da TI Baixo Tumiã/Baixo Seruiní, afirmou que a empresa entrou no território durante a pandemia sem pedir autorização para o conjunto das comunidades. “No tempo da pandemia forte, eles estavam vindo. Na pandemia eles entraram sem permissão de ninguém”, relatou.

Além de violar o direito à saúde dos indígenas durante a pandemia, representantes da Nemus se valeram de um suposto aval da cúpula da Funai em Brasília para pressionar, fora dos registros oficiais, as unidades locais do órgão indigenista. O objetivo era acelerar a entrada de funcionários e permitir atividades econômicas no interior da TI. 

“Aquela terra é indígena desde sempre”

Pela Constituição, a demarcação de terras indígenas não cria o direito dos povos originários de habitar suas terras, apenas os reconhece, já que esse direito é originário. A demarcação, segundo juristas, não é um ato constitutivo de posse, mas meramente declaratório de um direito que já existe. 

“Aquela terra é indígena desde sempre”, concorda Daniel Lima, integrante do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que ajudou os Apurinã a denunciar o caso ao MPF. “E mesmo que não haja ainda a demarcação homologada, isso não quer dizer nada. A Constituição Federal prevê isso: onde os índios estão vivendo, ali é Terra Indígena”.

A Nemus alega que a TI Baixo Seruiní/Baixo Tumiã é sua propriedade particular comprada da antiga dona do território, a Madeireira Nacional SA (Manasa). A compra da terra foi feita pela Manasa há 50 anos com o aval da Funai, que ignorou a presença dos Apurinã na região apontada pelos indígenas como o berço do povo. 

Melquisedeque Apurinã não tem dúvidas de que a fazenda da Manasa é uma terra indígena. “Nossos bisavós e tataravós nasceram, cresceram e morreram lá. Estão enterrados lá. Os ossos, os cemitérios, tudo está lá. Então nós temos aquilo como sendo terra indígena. Lá é o tronco velho dos Apurinã.”

Outro Lado

A reportagem procurou pela segunda vez a assessoria de imprensa da Nemus, mas, assim como na primeira, não obteve resposta. A Funai também não se pronunciou. 

Edição: Felipe Mendes