Maré: estudo vê efeitos psicológicos e físicos da violência em mulheres

“Semana retrasada, começou às 5h30. Começam os tiros, aí você já fica logo tensa”, conta Ana Lúcia Alves dos Santos, de 61 anos. Ela foi uma das 30 mulheres entrevistadas em uma pesquisa que buscou compreender os efeitos da violência armada na vida das mulheres do Complexo da Maré. Nos relatos colhidos, foram observados efeitos físicos e físicos e revelados estratégias de cuidado e proteção que as mulheres adotaram.

Ana Lúcia explica à Agência Brasil como a operação policial altera completamente sua rotina e seu estado de espírito. “Eu faço aula lá na Vila Olímpica às 7h. Acordo cedo e me preparo. Aí começo a ouvir os tiros, pronto. Acabou o dia. Você fica tensa, preocupada. Minha filha tinha que sair para trabalhar. Meu marido também. Eu peço cuidado. Peço que me ligue quando chegar na Avenida Brasil”.

O estudo qualitativo lançou um olhar científico sobre relatos como esse. Realizado como parte do projeto De Olho na Maré, mantido pela organização não governamental Redes da Maré, ele envolveu pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e de duas instituições britânicas, as universidades de Warwick e de Cardiff. Além das entrevistas, foram utilizadas outras ferramentas metodológicas, como rodas de conversas e oficinas semanais de dança yoga dança.

Considerando todas as atividades desenvolvidas entre setembro de 2021 e novembro do ano passado, mais de 50 participantes de diferentes pessoas foram envolvidos. A Agência Brasil teve acesso com havia ao estudo, que será lançado e apresentado hoje (14), às 15h, na Casa das Mulheres da Maré, em evento aberto os moradores e demais interessados.

O Complexo da Maré compreende 16 favelas onde vivem cerca de 140 mil pessoas. Somente em 2022, segundo monitoramento da Redes da Maré, foram registradas 27 operações policiais nesse território: uma a cada 13 dias. Os homens formam a maioria absoluta dos mortos quando há confrontos. De acordo com o último Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado no ano passado pela organização não governamental Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a maioria das vítimas de mortes decorrentes de intervenção policial no país é do sexo masculino (99,2%), de negros (84,1%) e com menos de 29 anos (74%).

Os investigadores, no entanto, lembram que a presença e circulação de armas em um território provocam, além das mortes, abrangem diversos indivíduos e coletivos: invasões de domicílios, agressões físicas e verbais, restrições de mobilidade e circulação e fechamento de escolas e unidades de saúde. Essa realidade é documentada pelo projeto De Olho na Maré. Entre 2017 e 2022, foram contabilizadas 169 operações policiais e 122 confrontos entre os grupos armados, que resultaram em 195 mortos, 186 feridos por arma de fogo, 572 proteção de direitos individuais, 93 dias sem aulas e 122 dias com serviços de saúde suspensos.

Isabel Barbosa, pesquisadora envolvida no estudo, afirma que as mulheres são vítimas majoritárias em algumas dessas situações, como invasão de domicílio, violência verbal e assédio sexual. “São, muitas vezes, cometidas por agentes do próprio Estado encarregados de garantir a segurança. E quando essa violência é causada por membros dos grupos armados que operam no território, há uma sensação de silenciamento. Como essas mulheres podem se proteger ou até mesmo buscar ajuda?”, observa.

Ela lembra que as mulheres também sofrem impacto pela letalidade, pois as vítimas podem ser seus filhos, companheiros e outros familiares. “Além da dor da perda, elas têm que lidar com a exposição da mídia, com o julgamento das pessoas, com a culpa diante do que aconteceu como se conseguiu fazer alguma coisa para impedir. E é algo que não tem como prever. Você não sabe quando vai ter um tiro atravessando a sua casa”.

A Redes da Maré foi formalizada em 2007 como um treinamento de mobilizações iniciadas iniciadas na década de 1980 e tem como um de seus propósitos a efetivação dos direitos dos moradores em diversas esferas: na segurança pública, saúde, educação, cultura, urbanização etc. com Liliane Santos, coordenadora do eixo Direito à Segurança Pública e Acesso à Justiça da organização, a elaboração de pesquisas sempre foi uma preocupação.

“Nós entendemos que só é possível olhar para as grandes demandas, grandes questões do território, a partir da produção de conhecimento. A partir das demandas identificadas nas pesquisas, buscamos fazer propostas para contribuir com a elaboração de políticas públicas. Não só para a Maré , mas para a cidade e o país como um todo”, disse.

Saúde Mental Liliane explica que os novos estudos buscam dialogar com outras pesquisas e levantamentos sobre a violência armada realizada anteriormente. Em 2021, a pesquisa Construindo Pontes provocou, por meio de abordagem amostral, que 55,6% dos moradores da Maré sentem medo de que alguém próximo seja atingido por bala perdida. Entre aqueles que declararam que já estiveram expostos a tiroteios, 44% relataram danos em sua saúde mental, 12% tiveram pensamentos relacionados a suicídio e 30% à morte.

Outros dados chamam a atenção: 26% dos moradores mencionaram episódios depressivos e 25,5% contaram ter tido ansiedade nos três meses anteriores devido à violência armada. Segundo os pesquisadores, os relatos colhidos no estudo com as mulheres permitem obter informações mais específicas da população feminina e aprofundar o conhecimento sobre esses olhares já revelados nos levantamentos quantitativos.

“É um constante estado de alerta. Qualquer helicóptero que a gente escuta, já vem à cabeça uma operação policial. Então, há sempre uma preocupação com seus familiares que saíram para trabalhar ou para estudar. E aí, será que eles vão voltar bem? Há essa tensão, que pode agravar ou causar quadro de ansiedade e depressão”, afirma Isabel.

Para a pesquisadora, a iminência do confronto a qualquer hora causa sensação frequente de medo e tensão. Nos relatos colhidos, há menção ao temor pela vida de filhos e netos, à aflição envolvendo o barulho de helicóptero, à sensação de impotência e de silenciamento diante de uma perda, além de outros sofrimentos psicológicos e emocionais. Algumas mulheres comentaram sobre danos físicos e vivenciaram marcas de tiros em suas residências.

Joselita Pereira da Silva, de 63 anos, que também foi ouvida no estudo conta à Agência Brasil que, em dia de operação policial, não consegue relaxar. “Já acordo com o meu coração muito agitado. É muito difícil. Eles entraram nas nossas casas, reviram tudo. Tratam como se todos fossem bandidos. criação. Ninguém é bandido, todo mundo é formado, graças a Deus. Cada um tem a sua profissão”.

A moradora relata seus temores. “Fico com medo de o meu esposo sair do trabalho. Fico com medo de meus filhos saírem do trabalho. As crianças não podem ir para a escola. O posto de saúde não funciona. É uma agressividade tão grande. Quando dá 5h da tarde, a gente pergunta para os vizinhos: ‘Já acabou? Já foram embora?’. É muito triste”, acrescenta.

Por meio dos depoimentos das mulheres, os investigadores buscaram identificar também o comportamento diante da morte de um filho ou de um ente querido. Eles indicam que a exposição na mídia, muitas vezes de forma depreciativa, pode gerar raiva e indignação. Com o tempo, as mulheres buscam lidar com a perda de outras formas: algumas, por exemplo, se engajam em organizações de base comunitária ou de luta política e outras tentam ocupar seu tempo com o trabalho.

O estudo também associa a violência armada a quadros de síndrome do pânico e de transtornos alimentares. Aponta ainda que a piora da saúde mental pode estar vinculada ao desenvolvimento ou agravamento de doenças como hipertensão e diabetes. Além disso, os confrontos gerados negativos para o enfrentamento de casos de violência doméstica: alguns serviços responsáveis ​​​​por proteger as mulheres vítimas desses crimes se recusam a entrar no território.

proteção O estudo buscou entender também as estratégias adotadas pelas mulheres diante da violência armada. Foram identificadas medidas concedidas. O uso de roupas brancas ou claras foi citado e justificado pela percepção de que a polícia interpreta o uso do preto como adesão aos grupos armados. Outra estratégia é o acompanhamento de redes sociais e serviços de mensagem, por onde se informa sobre a dinâmica do território, incluindo ocorrência de confrontos.

Mulheres disseram ainda que trancam a porta e se escondem em locais mais externos e protegidos da casa quando as operações estão em curso. Uma entrevistada negra relatou ter o hábito de guardar os comprovantes de compra dos bens que têm em casa, para provar que seu patrimônio é legal.

Entre aqueles que moram sozinhas, também foi mencionada a preferência de ir para as ruas, onde se sentiram menos expostas ao risco de assédio sexual por agentes de segurança pública, caso eles invadissem suas residências. Em algumas das 16 favelas do Complexo da Maré, uma reunião de mulheres em espaço público para se protegerem coletivamente é comum. Os investigadores também observaram a existência de esforços voltados para a criação coletiva de redes de cuidado, que proporcionavam melhor qualidade de vida e ofereciam ambiente de amparo e reflexão.

Isabel Barbosa afirmou que o estudo reúne informações úteis para a elaboração de políticas públicas. Os próprios investigadores recomendam que envolvam, por exemplo, mudanças no modelo de segurança pública, implantação de equipamentos de saúde e de acesso à Justiça voltada para mulheres, capacitação de profissionais que atuam em territórios e elaboração de programas de planejamento para mães e familiares de vítimas de violência armada.

Também são sugeridas políticas de implementação de atividades artísticas e corporais como estratégia de promoção de saúde física e mental, como a realizada no âmbito da pesquisa. “A falta de alternativas ou a existência de alternativas de precárias de cuidado faz com que a mulher se veja muitas vezes atendida. Um acolhimento é muito importante diante de todo esse sofrimento que elas passam. E essas atividades artísticas, conseguem olhar para si, se cuidar . E, muitas vezes, isso abre espaço para outros tipos de expressão. Quando você sofre uma violência, a tendência é se isolar e se silenciar. Então, esses espaços de expressão são importantes”, acrescenta Isabel.

Amanda Jerônimo da Silva, 29 anos, aprova. “As mulheres dão um bom apoio. Cada uma conta seus problemas. Às vezes, é uma chorosa daqui, fora de lá. Melhorou a minha sabedoria, meu jeito de agir com todo mundo. A gente ri, brinca, a gente entende o sentimento da outra. Às vezes, uma não quer ir porque está angustiada com alguma coisa. A gente vai à casa dela e busca, conversa. Acaba criando aquele afeto de mulher para mulher”.