Trabalho das parteiras tradicionais resiste ao tempo e à medicalização do parto

“O ofício de parteira é dos mais antigos da humanidade. Em toda comunidade tradicional, em qualquer lugar do mundo, existe a parteira”. Até bem pouco atrás, as mãos que recebiam todas as crianças que chegavam ao mundo eram quase sempre femininas. Um cenário que mudou muito há algumas gerações. No último dia 5 de maio foi celebrado Dia Internacional da Parteira e o Brasil de Fato conta um pouco sobre os saberes e fazeres desse ofício e sua luta para seguir existindo.

A frase que inicia esse texto é de Camila Góes, médica de família e comunidade, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e parteira em Taperoá (BA), que compara as parteiras a joias. “As parteiras tradicionais são pedras preciosas que guardam o saber sobre o sagrado feminino que vem sendo repassado há muitas e muitas gerações, diz.

Elaine Müller, professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e uma das responsáveis pela criação do Museu da Parteira, afirma que, no Brasil, houve uma institucionalização muito brusca do parto nos últimos 50 anos, período em que este evento natural da vida deixou os quartos e a assistência feminina para acontecer em hospitais com assistência quase sempre masculina. “Claro que isso muda a característica do ofício. Há de se valorizar o quanto esse ofício está enraizado na nossa vida comunitária, mesmo quando a gente não nasceu com parteira”, afirma.

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Tanto Camila quanto Elaine ressaltam, no entanto, que o ofício da parteria não está ligado apenas ao evento do parto. “Elas têm uma atuação muito mais abrangente, são figuras de referência nas suas comunidades. É uma abordagem de cuidado integral, que mistura vários saberes”, aponta Elaine.

Camila lembra que uma relação muito íntima vai se construindo entre a parteira e mulher mãe durante a gestação. “A parteira cuida do corpo através das medicinas naturais; cuida do espírito; cuida dos sentimentos, das emoções, da sexualidade, dos carmas ancestrais. A parteira cuida e respeita não só a gestante, mas o pai, as avós, a família. Vira comadre e madrinha”.

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Camila Góes (dir.), médica de família e comunidade, militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e parteira / Letícia Brandão

Violência obstétrica

Junto a essa institucionalização e medicalização do parto, acontecida nas últimas décadas, vimos surgir também a violência obstétrica, ou seja, várias formas de violência física e psicológica cometidas contra mulheres grávidas no seu atendimento institucional ao pré-natal, parto e pós-parto. “Vemos que a segurança do hospital não é assim tão real. É possível mulheres pretas serem estupradas pelo médico branco anestesista durante o parto”, lamenta Camila Góes.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirma que 85% dos partos podem ocorrer sem qualquer intervenção médica, no entanto, no Brasil, os partos cirúrgicos ou cesáreas chegam a 55% do total de nascimentos, de acordo com dados da própria OMS. Essa é a segunda maior taxa de cesáreas do mundo, ficando atrás apenas da República Dominicana.

Na contramão dessa realidade, segundo Camila Góes, muitas grávidas procuram as parteiras tradicionais atualmente em busca dessa reconexão com sua história, com suas origens, com sua herança, na busca por um parto em que haja cuidado físico, mental e espiritual com a mãe que gesta, com a criança por nascer e com toda família.

Tanto Camila, quanto Elaine e mesmo esta jornalista que vos escreve, estamos entre essas mulheres que buscaram o apoio de parteiras tradicionais e/ou urbanas para assistirem seus partos. Camila faz um relato profundo sobre seus partos e o processo de reconexão a que eles lhe levaram, despertando nela o interesse e o dom da parteira. Elaine conta que percebeu tanto nela quanto em outras mulheres da equipe do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), envolvidas no inventário sobre o ofício das parteiras, uma mudança de percepção sobre modelo de assistência ao parto, de pensar sobre o tempo do parto e da gravidez, ao entrar em contato com essas histórias.

“O que nós queremos é que mude a lógica. Queremos ser bem atendidas, assegurar as nossas vidas e dos nossos filhos, com as intervenções necessárias, nem a mais, nem a menos”, explica Camila. E ressalta que não é uma luta das mulheres apenas para se manterem vivas no parto e pós-parto, mas sim pela liberdade dos próprios corpos e ainda pelo direito de poder escolher ter acesso ao parto tradicional e a todas as práticas e saberes de cura e cuidado dos povos originários.

“O tempo da natureza não cabe no serviço fast-food dos hospitais, que coloca as pessoas em série como se todas fossem iguais, pouca empatia que tentam substituir por tecnologia”, defende a médica e parteira Camila Góes. “O que a gente entende por parto e nascimento hoje em dia está completamente colonizado pela biomedicina”, acrescenta Elaine Müller. Ela ressalta que o saber biomédico é valioso e salva vidas quando aplicado adequadamente, o que não exclui a possibilidade de convivência com outras abordagens, como as tradicionais.

D. Hilda, parteira tradicional de Seabra, na Chapada Diamantina, ainda na ativa aos 84 anos, defende o lugar do cuidado e atenção das parteiras. “A importância da parteira é fazer tudo com responsabilidade e carinho. Se eu puder fazer o bem para uma pessoa, jamais deixarei de fazer”, afirma. Dona Hilda conta que já assistiu a mais de 5 mil partos, dentre os quais os das filhas, noras e algumas netas também.

Dona Hilda, parteira tradicional de Seabra (BA), na Chapada Diamantina, tem 84 anos, ainda está na ativa e já assistiu a mais de 5 mil partos / Açony Santos

Quando pergunto como se tornou parteira, ela me conta que começou acompanhando um amigo que era parteiro. As mulheres da cidade, aos poucos, passaram a chamá-la para assistir aos seus partos. “E eu fiquei parteira assim”, conta sorrindo.

Risco de desaparecimento

Dona Hilda também conta que nenhuma das filhas ou noras segue no ofício da parteria. A professora Elaine Müller acrescenta que esta, infelizmente, é uma realidade muito comum entre as parteiras tradicionais em todo o país: muitas não estão mais passando esse saber adiante. Camila Góes acrescenta que há uma grande invisibilização do ofício de parteira pelo Estado.

“O ofício de parteira resiste, apesar disso. Esse não lugar entre a saúde e a cultura, acaba fazendo com que elas sejam agentes de uma resistência, porque elas nunca são totalmente valorizadas pelo poder público, mas, para muitas mulheres, [a parteira] continua sendo a principal alternativa de atendimento obstétrico”, afirma Elaine.

E é no esforço de não deixar desaparecer o ofício, que surgem várias iniciativas como o pedido ao Iphan para que reconheça o saber das parteiras como patrimônio cultural brasileiro; a criação do Museu da Parteira; e mesmo a atuação do Cais do Parto, organização da qual Camila Góes também faz parte.

Em 2011, foi feito o primeiro pedido ao Iphan para reconhecimento do ofício das parteiras, a partir de uma provocação da sociedade civil. Elaine Müller, que fez parte da equipe que realizou um dos inventários sobre o ofício, explica que esse primeiro pedido não foi visto como pertinente pelo Iphan. “A gente entende, hoje, que houve um atravessamento por uma visão biomédica. Um receio de referendar uma prática que não seria aprovada pelos médios”, explica.

Em 2018, o processo foi retomado no Iphan e ainda segue em aberto. Nessa nova mobilização, as detentoras dos saberes em Pernambuco, especialmente as parteiras d. Prazeres e d. Zefinha, apontaram a necessidade da criação de um Museu da Parteira. Elaine Müller, à época, já professora da UFPE, junto com outras professoras da instituição, criam o projeto de extensão vinculado à universidade, do Museu da Parteira. Ainda sem sede física, o museu reúne um acervo de livros, documentos e filmes em um site, tudo construído a partir de editais públicos de fomento à cultura.

É também em Pernambuco, em 1991, que surge o Cais do Parto, organização idealizada pela parteira tradicional Suely Carvalho. Desde esse início, o Cais oferece atendimentos terapêuticos, processos de educação popular, além de apoio a parteiras tradicionais, pessoas refugiadas e juventude de modo geral. A partir de 2019, a organização expande sua atuação também para curandeiras, raizeiras, benzedeiras, pajés e lideranças religiosas de matriz africana.

Nesses 32 anos, o Cais do Parto já realizou congressos nacionais e internacionais de parteiras tradicionais no Brasil e no exterior, além de encontros estaduais na Bahia, Amapá, Amazonas, Rio Grande do Norte e Minas Gerais. Há 16 anos, Suely Carvalho fundou também a Escola de Saberes Cultura e Tradição Ancestral (ESCTA), uma resposta às pessoas que lhe procuravam com o dom de parteira, mas sem uma ancestral viva que pudesse ensinar. Atualmente, a ESCTA é uma rede internacional que envolve 10 países.

“Apesar de haver muitos obstáculos, eu tenho certeza que as parteiras vão continuar vivas, se reinventando e preservando esses saberes e práticas tão antigos quanto a humanidade”, finaliza Camila Góes.

Fonte: BdF Bahia

Edição: Alfredo Portugal