Feminismos

Quando a vítima do estupro coletivo reage

Na França, Gisèle Pelicot, violentada muitas vezes com participação de seu marido, confronta criminosos. Muitos saíram às ruas para apoiá-la. Buscam quebrar tabu da cultura do estupro que leva, muitas vezes, vítimas a assumir a culpa

Os protestos na França em apoio a Gisèle Pelicot e contra a violência sexual
Os protestos na França em apoio a Gisèle Pelicot e contra a violência sexual

Por Sergio Ferrari | Tradução: Rose Lima – Milhares de pessoas se manifestaram neste mês de setembro em várias cidades da França em solidariedade a Gisèle Pelicot, vítima de um dos estupros coletivos mais midiáticos da Europa contemporânea.

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Em 2 de setembro, começou o julgamento extraordinário contra 51 homens, incluindo seu ex-marido Dominique, que entre 2011 e 2020 a estupraram repetidamente na própria casa dos Pelicot, em Mazan, uma pequena cidade na região sudeste da Provença-Alpes-Côte d’Azur. Embora o julgamento recaia, no momento, sobre cinquenta réus, os participantes desses ultrajes teriam sido cerca de 80 indivíduos, todos entre 26 e 74 anos de idade e residentes nas comunidades vizinhas daquela cidade.

Eles aproveitaram os momentos em que Gisèle dormia profundamente devido aos fortes medicamentos que seu ex-marido a fazia ingerir. Para completar a tarefa mórbida, Dominique Pelicot filmava e fotografava as cenas, que ele cuidadosamente armazenou em seu celular e no disco rígido de seu computador. Para realizar tais ultrajes, ele convocava os estupradores pela Internet, prontos para agredir sexualmente uma mulher adulta, sedada e indefesa por puro prazer.

De acordo com a BBC britânica, que se baseia em fontes policiais, “os homens recebiam instruções precisas sobre o que deveriam fazer: deixar o carro a uma certa distância da casa para não levantar suspeitas e esperar uma hora até que as drogas que Dominique lhe dera fizessem efeito em Gisèle”. Uma vez dentro de casa, “eles deviam despir-se na cozinha e aquecer as mãos com água quente ou no radiador. O uso de tabaco e perfume foi proibido por medo de que essas fragrâncias pudessem despertar Gisèle. Eles não precisavam pagar para participar, nem usar preservativo. Segundo a fonte de informação, “enquanto alguns a estupraram apenas uma vez, outros são acusados de tê-lo feito pelo menos seis vezes”.

Em 17 de setembro, o principal réu reconheceu ante o tribunal o que havia aceitado anteriormente diante dos investigadores que o interrogaram no início do caso, há quatro anos. Os fatos foram descobertos quase fortuitamente em setembro de 2020, quando um oficial de segurança de um shopping center perto de Mazan notou que Pelicot, 71, estava filmando várias mulheres sob suas saias na escada rolante. O policial alertou a polícia, que o prendeu. Quando tomaram seu celular, descobriram uma parte das imagens do horror de uma década inteira, forte prova do ataque à esposa, com quem conviveu por 50 anos e com quem teve três filhos, agora adultos, e sete netos. Até o final deste ano, quando o julgamento for concluído, se o tribunal confirmar a culpa de Pelicot e dos outros 50 réus (incluindo 18 com histórico de violência sexual), todos eles poderão receber sentenças de até 20 anos de prisão.

Mulher corajosa que não aceita vitimização

A decisão de Gisèle Pelicot de confrontar abertamente seu marido e os cinquenta homens acusados do mesmo crime no Tribunal de Avignon foi bem recebida por organizações de mulheres, políticas e associativas. Além disso, a imprensa que cobre o processo considera isso um sinal de coragem. Inicialmente, o tribunal havia sugerido que o julgamento fosse realizado a portas fechadas para proteger a imagem da vítima e de sua família. No entanto, Gisèle Picot pediu que fosse público e que também fossem mostrados os vários vídeos filmados por seu ex-marido e nos quais muitos desses homens aparecem abusando sexualmente de seu corpo nu e inerte.

No início desta semana e à porta do Tribunal de Avignon, onde acontece o julgamento, Gisèle Pelicot, acompanhada pelos seus advogados, agradeceu as numerosas manifestações de apoio “desde o início desta terrível experiência, e especialmente a todas as pessoas que se reuniram no sábado passado [14 de setembro] em toda a França”. Ela acrescentou: “Estou profundamente emocionada com este apoio, que me dá uma grande responsabilidade [para com todas as vítimas]. Graças a vocês, tenho forças para levar essa luta até o fim.” E ela dedicou essa luta “a todas as pessoas – mulheres e homens – que são vítimas de violência sexual em todo o mundo”. Concluiu afirmando que quer dizer a todas elas para olharem ao seu redor, que não estão sozinhas.

Da raiva à ignomínia: poucas horas depois de suas declarações, na terça-feira, 17 de setembro, foi a vez de seu ex-marido. “Eu sou um estuprador”, admitiu Dominique Pelicot. “Eu reconheço todos os fatos. Peço desculpas”, enfatizou ele ao assumir plenamente as humilhações daqueles dez anos. Nem mesmo sua própria história no contexto de uma família disfuncional (o próprio fato de ter sido estuprado aos 9 anos), consegue explicar à sociedade a perversidade de seu comportamento.

Primeira página da imprensa europeia

Nos últimos dias, dezenas de artigos, comentários e editoriais sobre “o caso Pelicot”, também conhecido como “o estupro de Mazan”, inundaram a imprensa europeia. Em seu editorial de primeira página na terça-feira, 17, o progressista diário suíço Le Courrier publicou um editorial que inclui uma profunda análise global e sistêmica. O editorial diz que, para Gisèle Pelicot, “a vergonha já mudou de lado [porque] ela apareceu no julgamento do ex-marido com a cabeça erguida e o rosto descoberto, recusando-se a testemunhar a portas fechadas”.

O editorial enfatiza que “A dignidade desta mulher de 71 anos quebra o tabu da violência sexual, que muitas vezes leva as vítimas a assumir a culpa”. E antecipa que, talvez, “o caráter monstruoso dos atos de Dominique Pelicot possa ser qualificado psiquiatricamente”. No entanto, acrescenta, à luz das declarações iniciais, nem todos os réus que comparecem perante o Tribunal Criminal de Vaucluse podem esperar que suas respectivas acusações sejam examinadas psiquiatricamente, pois “enquanto alguns deles têm um histórico de violência contra as mulheres, muitos outros parecem ser bons pais ou vizinhos tranquilos”. Com “empregos normais” (como bombeiro, diretor de prisão, vereador) e “vidas normais”. “Mas, a ‘normalidade’ de nossas sociedades”, enfatiza o editorial, “permanece atormentada por uma misoginia profundamente arraigada (às vezes) inconsciente e brutal”.

E comenta que há quem se excite com a passividade da vítima, que considere que não há estupro, porque “foi o marido que propôs”. “A mulher como mercadoria, mulheres como propriedade privada: uma fantasia sistêmica”, reflete o editorialista Dominique Hartmann, responsável pela seção “Igualdade” do jornal. “Este julgamento, que teve repercussões de longo alcance, conta a história de como o direito de se apropriar e dominar os corpos das mulheres cimenta a cultura do estupro e permanece profundamente enraizado em nossa civilização – se é que essa palavra ainda tem algum significado”.

De acordo com Hartmann, além de garantir condenações no caso, as ativistas feministas esperam dar mais um passo para reconhecer a realidade do estupro. Uma realidade em que os estupradores não são monstros ou párias, mas pessoas como “todo mundo”. Como afirmou a atriz Adèle Haenel, em 2019, em um programa de televisão, recorda o editorial: “Monstros não existem. É a nossa sociedade. Nossos amigos, nossos pais: é isso que temos que olhar. Não estamos aqui para eliminá-los, estamos aqui para mudá-los. Mas tem que haver um momento em que olhem para si mesmos, em que olhemos para nós mesmos”.

Planeta machista

No início da terceira semana de setembro, a ONU Mulheres (entidade das Nações Unidas dedicada às questões de gênero), juntamente com o Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais da mesma ONU, publicou a última edição de seu relatório Progresso nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável: Panorama de Gênero 2024, que inclui expressões muito diversas de disparidade de gênero no mundo.

O relatório revela vários avanços em matéria de igualdade de gênero e no empoderamento de mulheres e das meninas. Exemplos: As mulheres ocupam um em cada quatro assentos parlamentares, o que representa um aumento significativo em relação a uma década atrás. A proporção de mulheres e de meninas que vivem em extrema pobreza finalmente caiu abaixo de 10% após uma série de aumentos acentuados durante a pandemia de covid-19. E cerca de 56 reformas legais foram promulgadas em todo o mundo para fechar a lacuna de gênero.

No entanto, aponta o Panorama de Gêneros 2024, “os dados apresentados mostram que nenhum dos indicadores e subindicadores do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 (o da Igualdade de Gênero) está sendo cumprido”. Consequentemente, no ritmo atual, a paridade de gênero nos parlamentos continuará sendo um sonho distante que pode não ser alcançado até 2063. Aproximadamente, 1 em cada 4 meninas continua casando quando ainda é menina, e levará mais 137 anos para tirar todas as mulheres e meninas da pobreza.

O custo da inação em matéria de igualdade de gênero é imenso. E os benefícios de alcançá-la são grandes demais para serem ignorados, diz um porta-voz das Nações Unidas, comentando o relatório. O custo anual global dos países que não educam adequadamente suas populações jovens é de mais de US$ 10 bilhões. Enquanto isso, os países de baixa e média renda que não fecharem a brecha digital de gênero podem perder outros US$ 500 bilhões nos próximos cinco anos.

Do estupro monstruoso de Mazan às desigualdades cada vez mais profundas entre homens e mulheres, são todas facetas de uma realidade global que se estende da “França moderna” ao canto mais distante de cada nação. Uma realidade que exige tarefas pendentes e tabus importantes a serem desconstruídos. Nesse esforço diário, milhares de organizações de mulheres e o movimento feminista em geral assumem o papel primordial de promotoras de mudanças. Na grande maioria dos casos, identificam o estupro e a desigualdade de gênero com o atual sistema hegemônico: machista, patriarcal e excludente em âmbito econômico-social.